Uma ideia genial (e perdida) de Freud 

Depois de escritos, os textos, ideias e livros são organismos, estão vivos, seguem se desenvolvendo e se transformando, não pertencem mais àquele que os escreveu.
Detalhe de uma colagem com nanquim e guache de Loui Jover

por Felipe Pimentel

Era uma conversa prosaica de bar em São Paulo com uma amiga. Falávamos sobre psicanálise, e após explanar sobre uma idéia “x” de Freud, eu, enfático, dedo em riste, pontifico: “A ideia mais genial de Freud não foi o complexo de Édipo ou a sexualidade infantil, tampouco a castração ou o princípio do prazer. A idéia mais genial de Freud foi esta…”

A ideia a qual me referia era uma recomendação de Freud aos terapeutas de que, a cada novo paciente que chega ao consultório, eles deveriam esquecer tudo o que sabem sobre a psicologia humana.

Extasiado pela lembrança de tão luminar ideia (acrescida pelas luzes etílicas que já se anunciavam), decido que vou escrever a próxima coluna do Estado da Arte sobre ela.

Retorno à minha cidade natal, Porto Alegre, e recorro às estantes de livros do meu consultório, onde estão as obras completas do velho mestre. Encontrar essa sugestão freudiana era facílimo, pois, dada sua natureza de recomendação técnica, certamente estaria nas suas “Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise”, incluídas no volume que os psicanalistas intitularam Artigos sobre técnica. Nem me dei o trabalho de reler o texto, pois as páginas já estão todas sublinhadas e marcadas nos seus trechos mais especiais. Eu sabia que a maravilhosa formulação freudiana estaria destacada pelo mais reluzente marca-texto, quem sabe até por um maltratado post-it, que a faria saltar aos olhos daquele que folheasse aquelas páginas.

Vou e volto pelas páginas e não encontro a tal ideia genial de Freud. Perplexo e indignado, arranco os post-its e me ponho a ler o texto “de cabo a rabo”. Nova perplexidade: nada indica a presença da formulação. Um pouco incomodado, talvez até angustiado, recorro ao índice do volume, onde a leitura do título de outro artigo de Freud me alivia: “Sobre o início do tratamento”. Digo a mim mesmo: “Ah, sim, é evidente; é uma ideia sobre o início do tratamento. Foi só uma pequena confusão. Agora sim; a fórmula genial está nesse texto!”

Ponho-me a ler a nova suposta fonte do incrível insight de Freud, e, estranhamente, ele também não está lá. “Não é possível, deve estar em algum outro desses artigos sobre técnica”. Nada. Levanto-me, já irrequieto, e começo a rememorar as obras de Freud (em ordem cronológica, cacoete que a profissão de historiador me deixou), percorrendo as possibilidades de ocorrência dessa ideia, hesitante: “estaria nas ‘Conferências introdutórias’… não, não é possível… deve estar no ‘Esboço de psicanálise’ talvez… jamais estaria no…” Eis que me surgem ideias mais concretas: a formulação estaria no clássico “Análise selvagem”, um texto no qual Freud busca diferir a psicanálise “verdadeira” da “falsa”. Releio-o. Nada. Sobra uma única opção: “A questão da análise leiga”, um texto estranho (e suficientemente chato) sobre a possibilidade de não-médicos exercerem a psicanálise. Mesma decepção. Indícios de pânico.

Recorro a colegas – nada surge. Desesperado, rebaixo-me à vilania da pesquisa no Google. Surgem-me os mais esquisitos, falsos e esotéricos blogues; e os (não menos estranhos) artigos científicos – nenhum cita a obra de Freud que conteria a tal ideia luminosa. Pesquiso em inglês, depois em francês e espanhol; chegando à vergonha de pesquisar em línguas que desconheço, através do Google tradutor.

Passaram-se algumas horas, e a manhã de sábado dedicada sempre tão plácida e lindamente à escrita da coluna do Estado da Arte tornou-se um turno de aflição, auto-engano e desesperança. Não me resta alternativa senão cogitar que a ideia não podia mais ser de Freud, que deveria ser de algum de seus discípulos, sendo Lacan e Bion os mais prováveis. Mas, ao mesmo tempo, era inaceitável que não estivesse em Freud e pouco me importava que estivesse nestes outros autores.

Eu já tinha quase desistido, quando, num gesto de desespero, escrevi na caixa de pesquisa do Google uma daquelas frases absurdas que nos acostumamos, tais como “frase freud paciente esquecer o que sabe onde está que artigo livro”. Poderia ter acrescido “socorro”, “por favor” ou o atual “nunca pedi nada”. Ao pressionar a tecla enter, o onisciente Google me apresenta uma de suas ferramentas, o Google Books, contendo um dos livros do Marco Antônio Coutinho Jorge, livros de que tanto gosto e tanto me ensinaram, com o trecho:

É munido do saber sobre a constituição do sujeito pelo Outro que o psicanalista recebe alguém para análise. Contudo, trata-se de um saber que não lhe permite dizer nada ao sujeito de saída, mas sim escutá-lo. . . . Trata-se, para Freud, de esquecer todo o saber psicanalítico a cada caso e, logo, de dar espaço à singularidade da constituição simbólica do sujeito.

Emocionado, entre o alívio e o triunfo, lanço os olhos para o final da frase, onde estaria contida a referência bibliográfica, indicada naqueles minúsculos números flutuando sobre a última letra; exponenciais matemáticos, seja 1 ou 67, pouco importa, só queria o número que me levaria ao rodapé, que me levaria, por sua vez, àquela forma insólita que a ABNT encontrou de citar as pessoas em maiúsculo com os nomes e sobrenomes em ordem trocada.

Qual não é a minha surpresa quando, ao fim da frase, nada consta! Não há referência bibliográfica, menção ao texto original, citação em itálico, nada! Por pouco, eu quase me irritei com você, Marco Antônio: como é possível que tenha me tirado o doce da boca, assim de surpresa! Que tenha de forma tão explícita me iludido! Que tenha me estendido a mão vazia! Porém, logo percebi a beleza da ocasião. Os textos, as ideias, os livros, após escritos, são organismos, estão vivos, seguem se desenvolvendo e se transformando, não pertencem mais àquele que os escreveu. Eu te entendo, meu amigo Marco Antônio: esta ideia poderia estar em Freud, ela, inclusive, deveria estar em Freud, nós podemos ter lido isso nele; ela é uma de suas ideias mais geniais – mas ele esqueceu de a escrever.

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