por Felipe Pimentel
A David Zimerman, in memoriam
Ele contava já mais de 70 anos. Era um profissional renomado, tanto por sua prática – décadas de consultório como psicanalista – quanto por sua produção literária – caracterizada pela escrita de manuais de teoria e técnica psicanalítica. Porém, sobre isso pairava a sua virtude maior, a primeira a ser referida quando alguém mencionava seu nome, ilustrada pelo apelido que recebeu: Davidzinho. Um homem generoso, afável e sensível. Foi a ele que eu recorri quando, pela primeira vez, muitos anos atrás, precisei de (mais do que desejei ou me interessei por) um analista.
Eu liguei para ele, e ele me comunicou que não recebia mais novos pacientes, mas que conversaria comigo, pois sabia do que se tratava e poderia me encaminhar para um colega. Eu perdera tragicamente um irmão que era muito jovem e a morte dele foi comentada na minha (não tão grande) cidade.
Solidarizado, suponho, Davidzinho me disse com voz calma ao telefone:
– Venha, menino, eu vou conversar contigo.
Fazia dois meses da tragédia. Eu não trabalhava, nem estudava, ficava na sala de casa, fugindo da hora de dormir, pois quando acordava era sempre terrível. Qualquer trauma recente é aliviado pelo sono e o despertar nos horroriza ao relembrá-lo. Quando cheguei ao seu consultório, ele me recebeu muito carinhosamente, não sei através de qual movimento corporal, se um abraço ou um mero olhar. Como era de se esperar, me pus a falar e chorar por cerca de hora e meia, ao que ele prestou atenção sempre de modo acolhedor. Após esse tempo, num dado momento parei de falar e de chorar, esgotado pelas forças que saíram de mim. Eu somente perguntei o que deveria fazer. Ele me respondeu:
– Você está muito bem.
Eu devo ter feito alguma expressão de incompreensão, surpresa e perplexidade. Sagaz, ele acrescentou:
– É assim que você tem que estar.
Ele se levantou, movimento que me fez supor que encerrava assim a sessão, e me deu um abraço. De pé, me disse que estaria ali disponível.
Fui para casa e segui meu luto por alguns meses. Depois de um tempo, surgiram algumas dúvidas: Como retomar a vida? Como lidar com os familiares? Com os pais? O que significa sobreviver à morte de um irmão? Quanto deveria falar disso?
Por óbvio, são perguntas que eu jamais respondi. Sigo fazendo-as cotidianamente. Mas naquela época, quando elas pela primeira vez surgiram, eu liguei pela segunda ao Davidzinho vez e disse somente:
– David, é o Felipe.
Ele respondeu com a voz grave, mas doce:
– Eu estava esperando a sua ligação.
No meu imaginário, ele estava sentado ao lado do telefone, esperando minha ligação. Num certo sentido, ele estava. Ao dizer isso, do modo como o disse, foi exatamente a imagem que ele quis me passar. E então ele me indicou um colega, que se tornou meu primeiro analista.
Nunca esqueci o que aquele senhor fez por mim com tão poucas palavras, tão bem colocadas, em sua generosidade, síntese e compreensão. Anos depois, creio que cerca de dez, fiquei sabendo do seu falecimento, com mais de 80 anos. Nunca pude lhe agradecer, embora não fosse necessário. Nem ele esperava, nem eu deixei de fazê-lo, seja na própria ocasião, com o olhar que lhe dirigi, ou todos os dias, atualmente, quando tenho esse horizonte de amparo na minha escuta. No seu obituário, soube que perdera um filho, também precocemente. Tenho seu livro de técnica psicanalítica, ainda lerei. Não é preciso, por ora.
Obrigado, David Zimerman.
Digo, Davidzinho