O viés do progresso tecnológico

Compreender a maneira como o processo tecnológico ocorre, os ganhadores e os perdedores, bem como as consequências para o desenho das políticas econômicas de curto e de longo prazo é crucial para um futuro com mais oportunidades para todos. Um ensaio do Prof. João Ricardo Costa Filho.

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O viés do progresso tecnológico

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Laura Knight, ‘Ruby Loftus Screwing a Breech Ring’, 1943

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por João Ricardo Costa Filho

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Progresso é aquela palavra que carrega o peso da história e a responsabilidade pelo futuro. Esse futuro pode oferecer um maior padrão de vida (do ponto de vista material), fundamentalmente, pelas diferentes formas de aumentar a produtividade. O caminho alternativo, aquele que se baseia no acúmulo cada vez maior de fatores utilizados para gerar os bens e serviços disponíveis em uma economia, como o capital e o trabalho, até pode funcionar por um tempo, mas, como trabalhei neste ensaio, uma vez exploradas essas oportunidades, o tal do “fazer mais com mais” não se sustenta no longo prazo.

Naturalmente, você pode me perguntar, padrão de vida de quem? Eu poderia ser tentado a responder, ingenuamente, “o de todo mundo”. Mas você me olharia com desconfiança, afinal, como diria a minha mãe, “todo mundo é muita gente”.

Será que o avanço da tecnologia beneficia todos da mesma forma?

Os dados de mais de cinco décadas revelam um fato curioso: os salários dos trabalhadores com maior educação aumentam sistematicamente, mesmo com a oferta desses trabalhadores também crescendo. Como explicar isso?

Sabemos que, ao estudarmos e nos qualificarmos, podemos oferecer no mercado de trabalho uma mão-de-obra mais produtiva, que as empresas podem vir a valorizar e pagar maiores salários. Obviamente, o mercado de trabalho é muito mais complexo do que isso. Há problemas para que empresas e candidatos se encontrem, há dificuldades em garantir que os dois lados da barganha cumprirão o combinado, há o que chamamos de “poder de monopsônio” (ou de oligopsônio), quando há apenas uma empresa (ou poucas empresas) que contrata(m) e muitos trabalhadores disputando poucas vagas, o que aumenta a capacidade dessas empresas de jogar os salários de todos para baixo, sem falar em diversos problemas de discriminação e outras falhas, apenas para dar alguns exemplos. Mas fiquemos com essa relação: educação aumenta a produtividade (e/ou sinaliza que o indivíduo é mais produtivo) e isso pode abrir oportunidades para um salário maior, em média.

Quando as pessoas percebem essa relação da educação e dos salários, aquelas que têm acesso a essas oportunidades buscam se capacitar ainda mais e mais pessoas qualificadas participam do mercado de trabalho. O resultado desse aumento da oferta “deveria” ser a queda na diferença entre os salários dos trabalhadores mais qualificados em relação aos menos qualificados. O que observamos, no entanto, é que essa diferença tem aumentado!

Como explicar esse fenômeno? Quantidade e salário só podem aumentar, simultaneamente, se algo fizer com que a demanda pelos trabalhadores mais qualificados cresça mais do que a oferta. E o que faria isso acontecer? Pode ser que exista um mecanismo no progresso tecnológico que favoreça os trabalhadores mais qualificados. Um certo viés do tipo de tecnologia empregada/desenvolvida. O termo técnico é o skill-biased technical change, ou em uma interpretação livre, o viés para certas habilidades que a mudança tecnológica possui.

Como o progresso tecnológico pode favorecer um tipo de trabalhador? Podemos obter algumas pistas na síntese escrita por Gianluca Violante ao dicionário de economia da Palgrave.[1] Trabalhadores mais qualificados possuem uma maior adaptabilidade a novas tecnologias (eles aprendem a aprender). Isso faz com que sejam ainda mais atrativos para as empresas. Adicionalmente, novas tecnologias podem diminuir a “hierarquização”, produzindo menos atividades rotineiras e especializadas e mais atividades em equipes, o que necessita de certas habilidades específicas que esses trabalhadores com maior educação possuem.

Mas as novas tecnologias não são feitas para substituir a mão de obra por máquinas? Bom, tudo depende de como o trabalhador ‘sobe na construção’.[2] Se após beijar os seus filhos (sejam eles únicos ou pródigos) o trabalhador “subi[r] a construção como se fosse máquina”, teríamos o que os economistas chamam de substituibilidade entre o capital e trabalho. Agora, caso ele “sub[a n]a construção como se fosse sólido”, talvez exista aí o que chamamos na literatura de complementaridade entre capital e trabalho.

O tipo de progresso econômico no século passado e, ao que parece, também neste começo de século, tem sido feito com tecnologias que tornam o capital complementar aos trabalhadores mais qualificados. No século 19, no entanto, o progresso foi feito com avanços que proporcionaram a troca de trabalho por capital, e o efeito, curiosamente, foi o de diminuir as diferenças salariais.[3] Essa mudança de tipo de viés do progresso tecnológico pode, inclusive, ajudar a explicar por que há um declínio nas economias desenvolvidas da parcela da renda apropriada pelos trabalhadores.[4]

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Lewis Hine, ‘Addie Card, 12 years old. Spinner in cotton mill, North Pownal, Vermont, 1910’

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Mais do que habilidades, tarefas

Se há esse viés do progresso tecnológico em função do tipo de capital que empregado na produção (o que chamamos de investment-specific technological change), quais são as fontes do da diferença entre os salários dos trabalhadores com base nas habilidades que eles possuem? Krusel, Ohanian Ríos?Rull, e Violante elencam três pilares: o crescimento da quantidade relativa entre trabalhadores, o crescimento da eficiência relativa entre os trabalhadores e o efeito da complementaridade.[5]

No primeiro caso, se a taxa de crescimento da quantidade de trabalhadores com menos habilidades for maior do que a taxa de crescimento da quantidade de trabalhadores com mais habilidades, há um aumento do salário relativo desses últimos, que se tornam mais escassos ao longo do tempo.

O segundo ponto diz respeito à produtividade relativa entre os trabalhadores. Se a produtividade dos trabalhadores com mais habilidades cresce mais rápido do que a produtividade dos trabalhadores com menos habilidades, os primeiros veem os seus salários serem aumentados em comparação a esses últimos.

Finalmente, se a taxa de crescimento do estoque de máquinas e equipamentos for maior que a taxa de crescimento da quantidade de trabalhadores com menos qualificação, há outra fonte de aumento relativo dos salários. Por isso que os autores elaboram que a proteção de certos setores não funciona, uma vez que não se trata apenas da quantidade relativa dos tipos de trabalhadores (ou dos tipos de bens e serviços que são vendidos e que utilizam mais um ou outro tipo de trabalhador), mas também a complementaridade entre habilidades e capital é um fonte dessa desigualdade.

Há, no entanto, uma literatura que ganha corpo e aborda a questão do viés no progresso tecnológico não necessariamente pelas habilidades que os trabalhadores possuem, mas em relação aos tipos de tarefas que eles desempenham nas empresas. Acemoglu e Restrepo abordam a questão da automação e o diferencial de salários como resultado do conjunto de tarefas desempenhadas pelos trabalhadores menos qualificados.[6] Não seria algo de substituir o tipo de trabalho, mas sim o tipo de tarefa e é a relação entre essas tarefas e as características do trabalhador que faz com que um grupo se torne mais beneficiado e outro perca no processo de avanço tecnológico.

A automação aumentaria a produtividade da economia e dos fatores de produção como um todo, mas se esse aumento não for grande o suficiente e se os trabalhadores mais qualificados possuem vantagens no tipo de tarefa nova surge com a automação, a diferença dos salários aumenta.

Nessa linha, o recente trabalho para discussão de Brinca, Duarte, Hans e Oliveira é interessante, porque apresenta uma explicação para o aumento na desigualdade de renda dos salários nos Estados Unidos em função da investment-specific technological change.[7]

Os autores utilizam quatro tipos de tarefas em função de quão rotineira elas são e se são predominantemente cognitivas ou mais manuais. Os trabalhadores se veem defrontados com a escolha sobre quanto capital humano acumular em um ambiente no qual não conseguem se proteger perfeitamente de riscos idiossincráticos (como, por exemplo, serem demitidos) e a consequência disso é que o tipo de investimento que é feito afetam a demanda por capital e trabalho e, consequentemente, a exposição das famílias.

Quando o preço de máquinas e equipamentos cai, as tarefas mais rotineiras e manuais feitas por trabalhadores começam a ser desempenhadas por máquinas, o que diminui a demanda por trabalhadores com menor educação (por serem substituídos), mas aumenta a procura por trabalhadores com maior educação (por serem complementares às máquinas e equipamentos).  Como o custo para adquirir maior qualificação torna impraticável que todos aqueles que queiram possam aproveitar o consequente aumento relativo nos salários, aumenta a dispersão da remuneração e a desigualdade.

Assim, compreender a maneira como o processo tecnológico ocorre, os ganhadores e os perdedores, bem como as consequências para o desenho das políticas econômicas de curto e de longo prazo é crucial para que possamos objetivar um futuro com mais oportunidades para todos. Não é lutar contra o processo nem, necessariamente, contra o seu viés, mas acomodá-lo e criar mecanismos para que a sociedade como um todo se beneficie dele.

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William Bell Scott, ‘Iron and Coal’, 1855-60

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Notas:

[1] Violante, G. L. (2008). Skill-biased technical change. The new Palgrave dictionary of economics, 2, 1-6.

[2] Tomo a liberdade aqui de me apropriar (e utilizar certa licença poética) de trechos da música “Construção” de Chico Buarque para uma analogia sobre a substituição e/ou a complementaridade entre capital e trabalho.

[3] Acemoglu, D. (2002). Technical change, inequality, and the labor market. Journal of economic literature, 40(1), 7-72.

[4] Karabarbounis, L., & Neiman, B. (2014). The global decline of the labor share. The Quarterly journal of economics, 129(1), 61-103.

[5] Krusell, P., Ohanian, L. E., Ríos?Rull, J. V., & Violante, G. L. (2000). Capital?skill complementarity and inequality: A macroeconomic analysis. Econometrica, 68(5), 1029-1053.

[6] Acemoglu, D., & Restrepo, P. (2020, May). Unpacking skill bias: Automation and new tasks. In aea Papers and Proceedings (Vol. 110, pp. 356-61).

[7]Brinca, P., Duarte, J., Holter, H. & Oliveira, J. (2019). Technological Change and Earnings Inequality in the U.S.

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