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A insustentável leveza do crescer

por João Ricardo Costa Filho

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“Tudo começou com um erro”.[1] Tomo emprestada a primeira frase de “Cartas na Rua”, de Charles Bukowski, para te convidar para um passeio. Bom, eu reconheço que talvez um convite que comece com “erros” não seja a proposta mais atraente aos seus olhos. Mas confie em mim, a jornada é importante. Ela é a jornada das nossas vidas, é a busca daquele mais belo sim que o escritor alemão que nos acompanha neste texto elaborou no poema “Paraíso Bastardo”.[2]

Uma nota de aviso: essa jornada fará com que nos deparemos com as velhas dificuldades que a economia brasileira possui para crescer de forma que o status de “emergente” continue fazendo sentido. Você está preparado? O Brasil, certamente, não.

Há mais ou menos quatro décadas o país não experimenta um ritmo de crescimento econômico sustentadamente compatível com o seu nível de desenvolvimento. O país cresce muito pouco. Antes de seguirmos, é importante entender que isso não significa que os problemas estavam equacionados antes desse período. Longe disso. Em grande medida, o Brasil cresceu, fundamentalmente, com base no que os economistas denominam como “acúmulo de fatores”, o que nada mais é do que recrutar uma quantidade maior de capital e trabalho para aumentar a produção. É fazer mais, com mais. Não parece algo difícil, nem excepcional. Até porque não é mesmo.

Com o movimento de urbanização que houve no país, trabalhadores deixaram o campo e foram para setores que eram naturalmente mais produtivos, o que suscitou um período em que até parecia que havíamos aprendido a fazer mais, com menos. Nem perto disso. Ao “tirarmos” um trabalhador do campo — onde trabalhava com um enxada — e colocá-lo para trabalhar na indústria, onde tinha máquinas e técnicas de produção mais sofisticadas à época, isso já fazia com que as suas horas de trabalho rendessem mais, o que é observado nas estatísticas de produtividade. Mais produtivos, sim, mas também mais desiguais e vulneráveis. Disso tudo, só os dois últimos permanecem conosco até hoje.

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Candido Portinari, ‘Retirantes’, 1944

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E o que isso tem a ver com as “nossas” vidas? E que tipo de jornada é essa que me oferece, você deve estar se perguntando neste momento, caso tenha que bravamente decidido me acompanhar nesse passeio? É a busca para a resposta da seguinte pergunta: o que explica a diferença na riqueza das nações? Só assim poderemos entender a falta dela. E para que tenhamos um Brasil de roupa nova e colorida, é preciso a consciência de que o passado é uma roupa que não nos serve mais.[3]

A resposta para a pergunta de alguns trilhões de reais é: a produtividade. É conseguir produzir mais com menos recursos. Quando olhamos, por exemplo, para o que é considerada como a fronteira tecnológica global, 80% do crescimento do PIB por hora trabalhada nos EUA é decorrente da dinâmica da produtividade, de acordo com o trabalho “The Facts of Economic Growth”.

Tudo bem, você me diz (com certa desconfiança, o que me parece natural), e devolve com a seguinte pergunta: e o que determina a produtividade? Que comece nossa jornada!

Você já deve ter percebido que venho tomando emprestadas as expressões daqueles que tratam as palavras muito melhor do que eu. É na poesia, na literatura, na música que podemos buscar a energia necessária para enfrentar o difícil exercício de olharmos para nós mesmos. Neste caso, nós mesmos em conjunto. Como um país. No título deste ensaio eu brinco, apropriando-me da ideia de apresentar uma mesma história a partir de diferentes pontos de vista, como fez Milan Kundera, e elenco aqui, de maneira (definitivamente) não-exaustiva, pilares que ajudam a explicar o fracasso brasileiro na matéria de crescimento econômico. Cada um desses itens pode ajudar a contar essa história, e é a partir desses diferentes “pontos de vista” que podemos conceber a construção de um futuro melhor. Ou que percebemos as consequências de mantermos as mesmas escolhas.

“Tudo começou com um erro”. Ou com vários.

O sistema tributário tupiniquim é um caos. Gera distorções sobre i) qual produto as empresas decidem produzir (o que deveria ser fruto de uma interação das forças de mercado, não uma escolha só para pagar menos impostos), ii) sobre que a decisão entre comprar de outras empresas e auferir ganhos de especialização ou de produzir “em casa” por questões fiscais, iii) além de possuir um alto custo gerencial (estar em conformidade com as obrigações junto ao fisco; no Brasil, estima-se que, em média, são necessárias 1.500 horas para essa atividade, em torno de 10 vezes o tempo no Azerbaijão, na Espanha ou na Costa Rica, de acordo com dados do Banco Mundial). Não bastasse tudo isso, ainda iv) cria incentivos para as empresas não crescerem.

Para que o Brasil possa crescer, os investimentos em infraestrutura são fundamentais e o país deixa muito a desejar nesse quesito. Muito. Temos dificuldade não só para repor o capital existente que se deprecia, mas também para possibilitar o acesso a novas tecnologias. É crucial (e deveria ser óbvio) que superemos agendas do século 18 (como o saneamento básico) e avancemos naquelas mais contemporâneas, como nas áreas de transmissão de dados, por exemplo. Afinal, o que algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo. E precisamos todos rejuvenescer.

Mas acumular capital não é suficiente. Nossos trabalhadores precisam acompanhar os avanços nos processos produtivos, as descobertas das melhores formas de realizar tarefas e se prepararem para os desafios que ainda nem temos no radar. Só que os nossos trabalhadores acumula(ra)m pouquíssimo capital humano e há 500 anos temos sistematicamente negligenciado as agendas relacionadas à educação. Sem uma educação (especialmente a básica) de qualidade e acessível à população, continuaremos perpetuando desigualdades (em um criminoso plural) e perdendo oportunidades.

Capital humano não é só educação e treinamento, também está relacionado à saúde. Trabalhador saudável produz mais. Isso deveria ser óbvio mesmo antes do mundo ter sido assolado pela maior pandemia em um século.

Além de trabalhadores qualificados e saudáveis, precisamos que as empresas tenham acesso a insumos de qualidade e máquinas e equipamentos de última geração que uma abertura econômica de verdade pode proporcionar, sem falar no aumento da competição. Quando olhamos a corrente de comércio em proporção do PIB, o Brasil figurava em 2019 entre os sete países mais fechados do mundo, com base nos dados do Banco Mundial.

Mas a competição de qualidade vem com bons marcos regulatórios. E para isso, temos que reforçar as agências dedicadas a esse tipo de atividade. Temos que fiscalizar se as mudanças legais determinaram que a sua administração deve ser feita por especialistas da área, não apenas por indicação política, está sendo cumprida. Precisa ficar claro o que esperamos de cada agência, quais são as suas contribuições, quais são as suas metas, para que a sociedade possa pressionar os reguladores.

Esses fatores todos são, geralmente, impulsionados e amplificados com o desenvolvimento do mercado financeiro, para melhor mobilização da poupança agregada. O Banco Central tem feito um movimento interessante nessa direção, mas precisamos ir mais além. Por exemplo, podemos melhorar a arquitetura do sistema ao desenvolvermos mercado de dívida privada, o que faria com que as empresas possam não apenas se apoiar em bancos, mas também no mercado de capitais de uma maneira mais expressiva para financiar os seus projetos, duas formas de financiamento que apresentam complementaridades que beneficiam a eficiência econômica.

Neste ponto do nosso passeio você pode estar se perguntando, se esses (e outros) pilares já foram identificados na literatura sobre crescimento econômico, por que não foram resolvidos? Mais que isso, pode ser que a angústia em relação a existência de caminhos (já percorridos — não sem muito trabalho, é verdade — por outras nações) comece a rivalizar com a atenção que você dá a este texto. Permita que o seu cérebro passeie pelas reflexões que surgem a partir dele por um instante (ou por um longo tempo). Quando ele voltar, pode ser reconfortante saber que, como ressaltou o nosso bucólico escritor em “Às vezes quando você fica triste há uma razão”:

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é preciso apenas 6 ou 8 líderes políticos inaptos / ou 8 ou 10 escritores, compositores e pintores pedantes para / fazer o curso natural do desenvolvimento humano / retroceder / 50 anos / ou mais[4]

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Embora eu não compactue, necessariamente, com Bukowski no que tange escritores, compositores e pintores (pedantes ou não), podemos encontrar na poesia (e na economia política) explicações para esses anseios.

As regras do jogo importam. O termo técnico, por vezes opaco, que utilizamos é instituições. E Acemoglu e Robinson já mostraram em “Por que as Nações Fracassam” que quando elas são inclusivas, o que no caso deles implica em proteger os direitos de propriedade e proporcionar igualdades de oportunidades, elas podem induzir positivamente o crescimento econômico durante mais tempo do que instituições consideradas extrativistas.

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(Reprodução)

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Por que as instituições importam? Porque todos os pilares elencados anteriormente, além dos outros vetores deixados de fora neste texto, são impactados diretamente e a má-alocação de recursos pode minar o crescimento econômico de longo prazo. Mas não só. Sem um ambiente propício para a livre circulação de ideias, para a difusão de conhecimento, o progresso tecnológico é freado e com ele, a dinâmica da riqueza das nações.

Construir uma economia onde as ideias sejam livres para germinar, ganharem corpo e as ruas é crucial. Foi assim que escapamos da armadilha maltusiana que aprisionou as economias durante mais ou menos 18 séculos. Philippe Aghion e Céline Antonin têm um novo livro todo dedicado ao que convencionamos chamar de destruição criativa e a importância desse fluxo de ideias para o crescimento econômico.[5] Como diria Fred Turner, não podemos criar um mundo melhor sem antes o imaginarmos. O Brasil de hoje impede os sonhos que podem resultar em um Brasil melhor amanhã.

As regras do jogo são diretamente decorrentes da interação entre Estado e sociedade. Acemoglu e Robinson elaboram em um segundo livro intitulado “The Narrow Corridor” que, para mantermos um Estado que beneficie a sociedade, a construção de um “Leviatã acorrentado” é uma tarefa contínua e exige participação da população e vigilância constantes, uma vez que não é simplesmente “passar por uma porta” e sim percorrer um longo corredor, um esforço contínuo da sociedade civil em pressionar tanto para que o monstro não solte as amarras e acabe por cercear a liberdade, como as amarras não o impeçam de exercer o seu papel, resolver conflitos e problemas de coordenação e, minimamente, nivelar oportunidades e proteger vulneráveis de tal forma que grupos organizados não capturem a democracia e a condenem à estagnação econômica e social. Mais uma vez, nas palavras de Bukowski:

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nem grandes nações nem grandes belezas / deixam nada a não ser o resto / da reputação para ser lentamente corroído[6]

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Na verdade, tudo não começou apenas com um erro. Foram vários. Continuam sendo. e enquanto continuarmos repetindo os erros do passado, não abriremos espaço para que cometamos novos erros. Pessoas cujos talentos poderiam impulsionar a sociedade são privadas de buscar o seus sonhos porque falhas nos mercados e tamanho nível de desigualdade impedem, por exemplo, que uma talentosa empreendedora tenha sua startup financiada em função da cor da sua pele ou outras formas de discriminação que se acumulam. Políticas econômicas e sociais são desenhadas com benefícios privados e prejuízos difusos ao invés de proteger os vulneráveis, nivelar oportunidades e criar um espaço para que o talento floresça.

Para crescer, o Brasil tem que mudar, porque afinal,

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caminhar para trás

não combina

com caminhar para frente.[7]

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Candido Portinari, ‘Favelas’, 1957

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Notas:

[1] Bukowski, Charles. Cartas na Rua. L&PM, 2011.

[2] Todos trechos de poemas de Charles Bukowski citados neste ensaio são da coletânea “Amor é tudo que nós dissemos que não era”, da Editora 7 Letras, com seleção e tradução de Fernando Koproski.

[3] A música da qual extraio textos neste ensaio é a “Velha roupa colorida”, de Belchior.

[4] Bukowski em “Às vezes quando você fica triste há uma razão”.

[5] Aghion, Philippe, Céline Antonin, and Simon Bunel. “The Power of Creative Destruction.” The Power of Creative Destruction. Harvard University Press, 2021.

[6] Bukowski em “Um truque para atenuar o nosso sangramento”.

[7] Bukowski em “A poetisa”

João Ricardo Costa Filho

João Ricardo Costa Filho é Doutor em Economia pela Universidade do Porto e Postdoctoral Fellow na UECE/Universidade de Lisboa (Twitter: @costafilhojoao)