por Thiago Blumenthal
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The Last Dance, documentário sobre a carreira de um dos maiores gênios do esporte mundial e seu canto de cisne nos Bulls, reflete curiosamente os tempos que vivemos. É uma sala de bate-papo do Zoom, com outras pessoas querendo falar mais alto. E não são quaisquer uns. Qualquer fã de NBA que viveu aquela época conhece esses caras.
No colegial eu tirava uma dos amigos que apareciam por lá com um boné dos Bulls. “Modinha”. Que moral tinha eu? Ou melhor, que moral tenho eu mesmo nos dias de hoje? Eu gostava dos Knicks enquanto jogava (mal) numa quadrinha caindo aos pedaços no Bom Retiro, a vinte mil léguas submarinas do Madison Square Garden.
A nota pessoal, e afetiva, de memória, justifica o poder do esporte, qualquer esporte: você se apaixona por uns caras do outro lado do mundo, que começam a ultrapassar os super-heróis dos gibis nessa faixa etária. Porque são de verdade, fazem o impossível, e não mentem em quadra.
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Você pode passar horas falando de química orgânica (às vezes eu pratico isso com o meu pai, que é o entendido) sem entender nada do assunto, se tiver uma retórica retorcida que faz o interlocutor responder o que você pergunta. É um princípio básico: em uma conversa sobre um assunto em que você não entende, solta umas perguntas. Em algum tempo, você já pode ir pra peer review e se sair bem. Já vi gente defender tese de doutorado sobre livro que leram só o resumo. As humanidades… Não é piada.
Agora te jogam numa quadra, o esporte que for, e lhe passam uma bola. Não há espaço para mentira. Pior, sequer há tempo para mentira. Em esportes em que eu não era muito bom, eu me desfazia correndo da bola, já passava pro companheiro ao lado. Um dos principais motivos de eu odiar vôlei: no vôlei não tem como ficar no canto de boas e passar a bola pra alguém quando ela vier em sua direção. Porque em geral vem uma paulada na sua cara, no seu peito, não vou dizer onde mais, o horário não permite.
A arte pode mentir. A política idem. Às vezes a ciência (as eugenias perversas da Europa na década de 30, a crise ética da indústria farmacêutica, exemplos não faltam). Mas o esporte não. Mesmo quando um boxeador cai no primeiro round para faturar uma grana a mais, ele não mente: ele venceu no jogo da vida, ao qual devemos respeitar suas regrinhas, circunstâncias e demandas – que escapam dos nossos desejos.
Quando Pippen vira um monstro na quadra logo de cara, Jordan joga xadrez ali: como superá-lo? A quadra vira um tabuleiro em que cada movimento, cada passe, enterrada, ponte aérea, toco, tudo está projetado para derrubar a rainha. Passou dela, o rei tá vendido, cercar e já era. Nessas, o documentário é um panorama psicológico sem divã.
Pippen não serve exatamente como um obstáculo, ou um objeto ou projeção de alguma neurose, mesmo que possa haver uma carga sexual, como há em um sorriso de Harpo Marx. Os textos sobre amor transferencial de Freud nos ajudam muito neste sentido. Não se trata de designar um alvo das pulsões, o outro – o Pippen real no garrafão ou o Pippen da fantasia, que fuzila o torcedor com o olhar.
Lá pela década de 10, quase 20, o mesmo Freud desenhou bem como a coisa toda funciona quando nos vemos em um cubículo de retirada do investimento libidinal desse objeto (eu adoro ver Pippen como um objeto psicanalítico). Pippen passa a bola para Jordan em um movimento de um esforço de egos – para satisfação própria um em cima do outro, e, claro, para satisfação de todos que assistem ao espetáculo. A arena entra em chamas.
Se temos também um executivo superpoderoso, Jerry Krause, como demiurgo, que diz que não são jogadores ou técnicos que ganham, mas organizações e estrutura, a imagem mais clara é a de um Deus que ferra com o povo hebreu por trocentas páginas em todo o Antigo Testamento, pra no fim rir lá do céu um “estão vendo, cambada, vencemos”. Er, vencemos? “Rs”, diriam os mais jovens.
É a figura mais curiosa do mundo do basquete até hoje o Krause. Ele lança uma sombra poética to the game que potencializa um voo de Jordan ao imaginário do gibi, de um Superman, que, como sabemos, não se torna herói, como 99% de outros heróis que líamos nos gibis: ele já nasceu super-herói. E é obrigado a fingir que não, botar a gravatinha, o óculos, e tropeçar diante da Lois Lane.
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Ora, Krause é apenas um magnata superpoderoso. Jordan é um super-herói. Nem todos com superpoderes são super-heróis. Daí a magia do esporte. O superpoder demanda uma mentira primordial, quase desértica, para se fazer valer; ele depende de que comprem seu poder. Jordan, Pippen e companhia não precisam de barganha. Já nasceram voando, como demonstra o currículo de Jordan.
Penso em Krause diante de um Abraão tocando o terror: vai, tô mandando, passando por cima de Phil Jackson e de toda a humanidade. “Act normal, mas em quadra pode tirar o óculos e voar, Superman”.
Parêntese: Kareem Abdul-Jabbar jogava com sua lupa estilosa e voava também.
Mas, voltando, Krause precisa da barganha: enganar o grande patriarca, que já nasceu grande (embora não saiba), para demonstrar algum nível de controle. Algum nível de poder. É quando Deus observa, critica, julga, mente, blefa, e, para piorar, ri. É o exercício do poder diante de Abraão. Como Krause com Jordan.
Dennis Rodman, figura emblemática nesse tabuleiro que não aceita mentiras, hoje de vez em quando vai bater uma bola na Coreia do Norte. Estrelou grandes (péssimos) filmes, tornou-se uma figura meio politicamente incorreta na época. Tirava a energia de um canto do coração ao qual possivelmente eu nunca poderei chegar. Não era basquete, sequer esporte, era uma imagem distorcida aos nossos olhares. Não mentia em quadra, mas a que custo? Vai saber.
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Voltemos ao xadrez para em seguida terminar em quadra, onde mais gostamos. O enxadrismo como atividade intuitiva nos coloca também como deuses a controlar o destino daquelas peças até decretarmos que “o rei está perdido”. O rei é o nosso oponente e vê-lo perdido naquela tábula de madeira naturalmente traz uma gratificação diante da perda de controle da autoridade limitadora à nossa frente (que Freud chamaria de pai – eu chamaria de demônio). Se Wittgenstein usou o xadrez para balizar modelos semióticos, por que Michael Jordan não poderia o fazer, ainda que intuitivamente…
Afinal, o xadrez, e a quadra, espaços também mentais completamente implacáveis com o erro, o lapso e com a mentira, denotam uma atividade que nasce da intuição. Uma linguagem que permite voar, arrebatar. No agora, não antes nem depois. Como Elias, para citar outra figura bíblica, que fez chover fogo dos céus antes de ser arrebatado em um redemoinho surreal. Se isso não é a NBA, eu não sei mais o que é.
Ao fim, a história dos Bulls, que eu chamava na minha juventude de “modinha”, é uma história vencedora, porém triste, como são todas as histórias. As felizes estão em outros rincões do mundo, não aqui. Há uma melancolia no olhar de Jordan, a morte de seu pai, o papel de Krause, a loucura de Rodman, a competição com Pippen, no tabuleiro da verdade, que não permite uma mentirinha sequer. Ou é toco.
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