por Fabrício Tavares de Moraes
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Este é o primeiro ensaio de um especial de três partes.
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O sociólogo Luc Boltanski, em sua obra Enigmes et Complots (2012), partindo da análise de narrativas de mistério, policiais e fantásticas, afirma que “um mistério é, portanto, uma singularidade (e todo evento é uma singularidade)… deixa um tipo de arranhão na tessitura contínua da realidade” [1]. À vista disso, é contra esse pano de fundo que, de certo modo, se projetam a ação e reflexão dos personagens ou instituições nas obras analisadas pelo livro de Boltanski.
Como todos os gêneros literários, as histórias de detetive refletem parcialmente, em seu tema e estrutura, a dinâmica sociológica em que se veem inseridas; assim, é visível, mesmo para uma análise superficial, a transformação histórica da figura (e comportamento) do detetive, um tipo que abarca personagens tão distintos quanto o Sherlock Holmes de Conan Doyle ao William Graham de Thomas Harris.
Mas essa mudança que se manifesta ao longo do tempo não se dá somente nos métodos e psicologia dos detetives, mas também nas próprias posturas narrativas e na apreensão do real. Nos casos de Sherlock Holmes, de modo geral, tínhamos um crime ou enigma cujas peças se mostravam desordenadas, como partes desconjuntadas de seu eixo; o detetive, por meios lógicos e dedutivos excepcionais, impunha a ordem sobre o caos de fatos e objetos que, fora de sua moldura, obscureciam ou fragmentavam o sentido.
No segundo caso, no entanto, vemos como paulatinamente o mistério central da trama não apenas resiste às racionalizações dos detetives (que não são mais tão geniais como Sherlock Holmes), mas também se torna cada vez mais complexo e profundo, desdobrando novas camadas de sua natureza. É o caso da estatueta de Relíquia Macabra, o filme noir arquetípico.
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Não raro, mais recentemente, obras literárias e cinematográficas trabalham também o modo como as falhas humanas na investigação distorcem ou impossibilitam a apreensão dessa singularidade mencionada por Boltanski; ou ainda, como no caso de The Wire, como as próprias instituições encarregadas da verificação e inquirição dos fatos são afetadas pelo caos e desordem, impossibilitando ou dificultando, por óbvio, a resolução do crime.
Por fim – e nem de longe exaurimos as possibilidades de “tratamentos” narrativos sobre o tema –, temos uma linha que aborda a questão do mistério, muitas vezes um crime hediondo ou comportamento perverso, como um núcleo impenetrável à investigação, mas que irradia suas influências ao seu entorno, principalmente para os investigadores. Vemos, em séries como a belga La Trêve, em Mindhunter (David Fincher) e True Detective (nosso interesse aqui), que os próprios detetives são afetados pelo objeto de sua investigação, o qual, ao longo do tempo, perde seu aspecto simplesmente jurídico e revela-se como uma manifestação da essência do mal, uma espécie de mysterium iniquitatis incognoscível ao homem e ao mesmo tempo influente sobre ele.
Em O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, por exemplo, obra na qual alguns exageradamente veem a estrutura do romance policial [2], o objeto da busca (Mr. Kurtz) corrompe a percepção de todos os personagens (e mesmo a do leitor), de modo que a questão outrora central do limiar entre barbárie e civilização vai perdendo o sentido ao longo da narrativa. E o mesmo Conrad havia dito a um colega francês que “o crime é uma condição necessária para todos os tipos de organizações. A sociedade é essencialmente criminosa – ou não existiria”.
Desde sua estreia em 2014, True Detective criou um horizonte de expectativas para o universo das séries. Grande parte de seu sucesso crítico advém do fato de, por meio do escritor Nic Pizzolato, ter trazido estruturas e critérios literários ao seu roteiro e ambientação. Acrescente-se a isso sua estética neo-noir ambientada não nas grandes metrópoles americanas, mas numa cidade no interior da Louisiana.
A reapropriação do noir levanta os habituais questionamentos acerca do próprio termo: hoje se sabe que se trata de uma classificação em retrospecto, que os críticos americanos passaram a utilizá-lo amplamente somente a partir dos anos 1970 (nenhum diretor ou comentarista hollywoodiano o usava, nos anos 40 e 50, como descrições dos filmes hoje enquadrados nessa categoria). Na verdade, termo francês noir se referia, antes, a obras que retratavam a vida de pequenos criminosos ou simples párias sociais, ou ainda de operários em situação de opressão, como se dá em O Demônio da Argélia (1937), Cais das Sombras (1938), A Besta Humana (1938) e Trágico Amanhecer (1939).
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Nesse contexto original francês, o adjetivo noir, que tinha para os críticos franceses de direita conotações negativas, estava inicialmente associado ao chamado roman noir (romance negro ou gótico). Contudo, a partir de 1946, quando a editora Gallimard iniciou a publicação de brochuras com suas típicas capas de cores amarela e preta (a Série Noire), que eram traduções de romances criminais americanos, o termo por fim se vinculou à questão do submundo da contravenção e ilegalidade.
Até hoje, há discussões acadêmicas quase infindáveis sobre a definição do noir; de partida, cabe até mesmo o questionamento se se trata de um gênero ou propriamente de um estilo, já que em tese existiriam faroestes noir (Mercado Humano, de 1949, e Conspiração do Silêncio, de 1955) e mesmo uma ficção científica noir (sendo Blade Runner – O Caçador de Androides, de 1982, e Cidade das Sombras, de 1998, os exemplos mais evidentes).
Pois como afirma James Naremore, em seu recente livreto Film Noir: a Very Short Introduction (2019), que traz as perspectivas acadêmicas atuais sobre os filmes noir: “esses filmes ocupam uma zona ficcional em algum lugar entre o horror gótico e a ficção científica distópica; como fórmulas narrativas, procedem daquilo que Jean-Paul Sartre chamava de ‘literatura das situações extremas’ e o que Graham Greene designava ‘melodrama de sangue’; e, como produtos comerciais, eles borram a distinção entre o entretenimento formulaico e filme autoral. Mas os críticos discordam sobre se essas obras deveriam ser entendidas como um gênero, um período, um movimento, uma série, um ciclo, um estilo ou simplesmente um ‘fenômeno” [3].
A conclusão de Naremore não é muito diferente das opiniões de outros críticos e teóricos do cinema, que não encontram um núcleo comum entre todas as obras intituladas noir. Evidentemente, a categorização no âmbito estético é sempre problemática, provisória e, não raro, subjetiva (o que não implica que seja arbitrária). Fugindo desses dilemas teóricos, muitos definiam, ironicamente, o noir como todos os filmes que constavam na famosa lista publicada pelo trabalho seminal de Raymond Borde e Etienne Chaumeton, A Panorama of American Film Noir 1941-1953 (a versão traduzida que se popularizou nos Estados Unidos).
Dois ensaios conduzirão nossas perspectivas ao longo destes pequenos artigos, e serão as fontes às quais recorreremos nas breves análises sobre o universo de True Detective. O primeiro é Paint it Black: the Family Tree of the Film Noir (1970), de Raymond Durgnat, sempre citado nas pesquisas sobre o noir; e, em segundo lugar, “Notes on Film Noir” (1972), de Paul Schrader.
Para Durgnat, o noir é um conjunto perene de estados de espírito, tons e motivos, que estão aí sempre disponíveis para a renovação. É por isso que falamos de um neo-noir e outros gêneros coloridos ou influenciados pela estética noir.
Schrader, por sua vez, entende que, embora não seja um gênero, o noir é também um período específico da história do cinema, tal como o Expressionismo alemão ou a Nouvelle Vague francesa. Esse período, segundo sua perspectiva, teria início em 1941 com Relíquia Macabra, de John Huston, e teria em A Marca da Maldade (1958), de Orson Welles, seu epitáfio. Evidentemente, como ele próprio enfatiza, esse marco temporal diz respeito somente ao segmento (digamos) clássico do noir; os elementos psicológicos, sociais e estéticos inaugurados ou ressaltados por esse estilo permanecem e influenciam as obras até hoje.
Schrader lista, de passagem, as possíveis fontes do sentimento que impera e delineia o ambiente social desses filmes: a desilusão que veio após a 2ª Guerra Mundial, eletrificada ainda pelo ressentimento a que o cinema não deu vazão na década de 30, já que os estúdios, por protocolos do governo, produziam obras mais otimistas e menos cínicas que contrabalanceavam (ou tentavam fazê-lo) os anos de depressão econômica; e a frustração que muitos soldados e combatentes retornando sentiam, e que é expressa em obras como A Dália Azul (1946) e Confissão (1947), de que a sociedade americana pela qual lutaram não valia lá grandes coisas. Assim, “a guerra continua, mas o novo antagonismo se volta, com uma nova agressividade, para a própria sociedade americana” [4]. O noir, portanto, originalmente traz consigo uma denúncia às fraturas da sociedade americana, e esse antagonismo mencionado acima é reinventado, por exemplo, em Taxi Driver – cujo roteiro é do próprio Schrader –, numa América extremamente dividida e paranoica após a Guerra do Vietnã.
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True Detective, por sua vez, especialmente em sua primeira temporada, começa subvertendo o cenário típico do noir, a “cidade das sombras”, substituindo-a, como já dito, por uma cidade interiorana (Vermilion Parish, na Louisiana), com os típicos preconceitos e modelos mentais.
Mais do que isso (e é neste ponto que a série magistralmente lança os fundamentos para seu próprio universo “mítico”): trata-se de uma cidade que, nas palavras do personagem Rust Cohle, é “semelhante à memória que uma pessoa tem da cidade, e essa memória está desvanecendo”. Em determinada cena, vemos uma mulher, em meio a um ataque de terror, referir-se a Carcosa, a cidade do conhecido conto de Ambrose Bierce (Um Habitante de Carcosa, de 1886), no qual um cidadão da grandiosa Carcosa, meditando na obra de um filósofo que tratava sobre a natureza da morte, se vê, de repente, num bosque. A narrativa nebulosa e estranha do conto de Bierce, juntamente com o estado de confusão mental do personagem, nos mostra uma cidade que se esvai como um sonho, até que, por fim, o protagonista se depara com sua própria tumba, com seu nome e ano da morte inscritos na lápide, cercada pelas ruínas e sepulcros do que fora sua maravilhosa cidade.
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Robert Chambers, uma das principais influências na composição da atmosfera da primeira temporada de True Detective, vale-se desse conto de Bierce décadas depois, e transforma Carcosa no cenário de suas narrativas sobre o Rei Amarelo (mais sobre isso nos próximos ensaios).
Ora, nas duas primeiras temporadas de True Detective, cidades abandonadas e desindustrializadas são o palco, portanto, para uma narrativa que funde o estilo noir e, mais sutilmente, o horror cósmico. Se, de acordo com George Orwell, a literatura policial havia levado Freud e Maquiavel para os subúrbios das classes médias americanas, a primeira temporada de True Detective, por seu turno, sorrateiramente trouxe também Lovecraft.
Num dos diálogos mais conhecidos da série, Rust Cohle começa dizendo que “as pessoas [dali] parecem nem saber que o mundo exterior existe; é como se vivessem na p* da lua”. A câmara oblíqua e panorâmica mostra a decadência física da cidade e exerce um efeito opressivo sobre o carro onde os personagens estão, que se desloca, minúsculo, pelos ermos úmidos da cidade.
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Nesse diálogo, após ter apresentado sumariamente sua visão pessimista da vida (veremos em outro momento) ao parceiro policial Martin (Woody Harrelson), Rust, que sofre de sinestesia devido ao tempo em que, atuando como agente infiltrado, usou diversos entorpecentes e psicotrópicos, diz que “sente um gosto ruim em sua boca: alumínio, cinzas. É como pudesse sentir a psicoesfera deste lugar”. Isto se deu logo após terem encontrado o corpo de uma mulher aparentemente assassinada num ritual ocultista, o que já sinaliza para os efeitos devastadores do crime sobre a psicologia individual e social daquela cidade.
É curioso que conceitos como psicoesfera (ou noosfera) ficam na interseção entre os motivos recorrentes na ficção científica e teorias pitorescas. No caso de True Detective, há uma indicação de que, como se dá na ficção de Lovecraft, há sim estratos e realidades que se esquivam à nossa apreensão, pois sua natureza está além do escopo de nossos sentidos. A “sarjeta cósmica” a que Rust alude é a visão lovecraftiana de um cosmos não humanizado, de um universo que não foi feito para os homens, sendo-lhe, na verdade, hostil. Nessa perspectiva, não há algo como um princípio antrópico.
A primeira temporada da série mostra como o crime investigado afetou ambos os investigadores. O próprio nome de Rust Cohle ironicamente reflete o árido ambiente espiritual que ele (tendo vindo de fora) a princípio percebe: em inglês, “rust” significa, dentre outras coisas, ferrugem; ao passo que “Cohle” soa como “coal”, isto é, carvão. Alumínio e cinzas, ferrugem e carvão. Mas não é só esse exercício de onomástica expressiva que nos leva a essa conclusão. Ao longo da série, ambos os detetives se tornam mais agressivos e psicologicamente instáveis. Marty trai novamente sua esposa após esta tê-lo perdoado, abusa de seu poder policial espancando jovens namorados de sua filha; Cohle, por sua vez, tendo abandonado a força policial e se enfurnado numa investigação paranoica do crime original, consome seus dias fumando cigarros e bebendo latas de cerveja em sequência. Mais uma vez: alumínio (as latas) e cinzas (os cigarros), os símbolos quase alquímicos que poluem e corrompem a saúde social e mental daquela cidade.
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De modo geral, a primeira temporada de True Detective reúne criativamente duas linhas ou, mais precisamente, gêneros que têm na conspiração seu núcleo de eventos. Primeiramente, temos o terror cósmico, ou lovecraftiano, que se evidencia em cenas como a egrégora ou uma luz primordial e genesíaca que aparece no último episódio.[5] A bem da verdade, a própria natureza dessa aparição é ambígua: não se trataria, pelo contrário, de um novo fiat lux, ao qual o título do episódio (Void and Formless) faria alusão? Esse redemoinho luminoso, no entanto, que surge assim que Rust tem contato com uma representação do Rei Amarelo, mostra a interferência de um poder cósmico imediato sobre o domínio dos homens.
Trata-se, em resumo, de uma conspiração cósmica contra a raça humana; já que se sinalizava para uma potência maligna e acima de nossa compreensão que sadicamente se dispõe dos destinos humanos (a influência maior aqui é a de Thomas Ligotti, notadamente sua obra The Conspiracy against Human Race, um dos livros que Pizzolato declarou como inspiração para seu roteiro)..
Em segundo lugar, temos também o conspiracionismo tipicamente americano, em que círculos formados por homens de alto escalões ou posições sociais (grandes líderes religiosos, políticos e industriais) controlam secretamente os eventos históricos e as circunstâncias políticas. Ademais, não faltam à série eventos como rituais satânicos ou ocultistas, símbolos reconhecíveis apenas aos iniciados, clãs, seitas e agentes transgeracionais que moldam o destino da nação e consequentemente dos indivíduos, seja por meio de infiltrações nas câmaras do poder, seja por pactos secretos e mesmo sobrenaturais. Essa conspiração política e ocultista perpassa toda a série, atrapalhando ou impedindo, quando possível, a investigação (o desfecho nos leva a acreditar que o grupo ocultista alcança os grandes escalões políticos e industriais dos Estados Unidos).
Assim, em True Detective, o roteirista Nic Pizzolato joga a todo tempo com essas expectativas de seu público, oferecendo interpretações que vão desde rituais de bruxaria às análises de psicologia criminal. Ao mesmo tempo, porém, e numa análise mais detida, vemos que cenas sutis, ao longo de toda a série, se combinadas, possibilitam a interpretação de que não só os objetos mágicos que pululam na série, mas também os rituais que envolvem os assassinatos e demais crimes a ele relacionados (abuso, estupro e racismo, por exemplo) são práticas que de fato alteram a “psicoesfera”. De maneira que essa “elite maligna” cujas origens estão entrelaçadas com as próprias raízes históricas da América tem, a seu dispor, uma espécie de engenharia psicossocial ou uma espécie de encantamento coletivo.
O que Pizzolato nos apresenta, em seu roteiro da série, é não somente uma apropriação criativa do sentimento paranoide do noir, mas também uma utilização competente da crítica sociológica inerente a esse estilo para nos mostrar uma América visivelmente fragmentada e traumatizada pelos eventos de sua história.
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Notas:
[1] Luc Boltanski, Énigmes et Complots: Une enquête à propos d’enquêtes. Paris: Gallimard, 2012.
[2] Embora, é claro, Conrad seja de fato um dos grandes nomes dos romance
de espionagem, que guarda várias semelhanças com o romance policial.
[3] James Naremore, Film Noir: A Very Short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2019.
[4] Paul Schrader, Notes on Film Noir, Film Comment, Vol. 8, No. 1 (SPRING 1972), pp. 8-13
[5] Aqui vale a percepção de Michel Houellebecq, em seu livro H.P. Lovecraft: contra o Mundo, contra a Vida (2020), de que o horror lovecraftiano, talvez diferentemente de todos os subtipos que lhe precedem, é essencialmente material. Não há seres sobrenaturais ou espirituais, mas forças cósmicas, abominações orgânicas e monstruosidades simbióticas que, embora escapem, em sua estrutura, aos sentidos humanos, pertencem a este universo físico – universo este que, na visão de Lovecraft, lhes pertence por direito.…
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