A quem importam as intenções dos artistas? (Parte 2)

Para Clive Bell nenhuma educação além do conhecimento das formas é estritamente necessária para a apreciação da arte.

por Rodrigo Cássio Oliveira

O primeiro artigo desta série escrita para o Estado da Arte abordava o tema das intenções dos artistas, mencionando o que ali se chamou de argumento da experiência, ou seja, a hipótese de que existem leitores, ouvintes, apreciadores ou espectadores mais aptos que outros para desfrutar o que uma obra de arte tem a oferecer.

Essa ideia está ligada a uma compreensão da arte como um labirinto, no qual buscamos uma conexão plena com o conteúdo estético das obras. Alguns seriam felizes nessa busca, porque já acumularam experiência o bastante para isso. Outros seriam barrados nas paredes sem saída e rotas circulares, típicas do labirinto, e voltariam ao ponto de partida para acumular mais experiência. Em algum momento, a direção correta viria.

O argumento da experiência é característico de uma concepção realista da arte que vem sofrendo constantes objeções desde a época das vanguardas. Mas antes de chegarmos propriamente à desrealização que deu forma à arte contemporânea, há uma etapa do pensamento estético que desenvolveu o argumento da experiência de maneira extraordinária, e que a história da estética se acostumou a chamar de “formalismo”.

O terceiro e último texto dessa série apresentará alguns motivos pelos quais o formalismo ainda pode ser visto como uma teoria abrangente e relevante para a especulação sobre os fenômenos artísticos. Antes disso, porém, quero chamar a atenção para o modo como o argumento da experiência foi sofisticado por essa teoria.

6 das 91 latas (todas vendidas) que compunham a obra “Merda d’Artista” (1961) de Piero Manzoni (Coleção Peggy Guggenheim)

Obras que arrebatam

É bastante conhecida a explicação de Aristóteles que associa a filosofia ao espanto e à admiração. Por que as coisas são como são? Essa investigação dos motivos profundos de a realidade ser como é traz à tona um sentimento universal de maravilhamento. Ele é universal, porque basta sermos capazes de pensar para senti-lo. Quem alguma vez já se perguntou pelo sentido último de tudo o que existe pode comprovar este poder fascinante da dúvida na filosofia.

Há um notável parentesco entre a compreensão formalista da arte e a explicação de Aristóteles para a filosofia. Para identificá-lo, o tema do “arrebatamento estético” é um ótimo caminho. Assim como a realidade é o objeto de uma admiração espantada para todos que se dispõem a pensar sobre ela, o formalismo considera que as obras de arte são fontes de possível arrebatamento para todos que entram em contato com elas.

Aqui, a metáfora do labirinto deixa de ser adequada na nossa discussão sobre as obras de arte. Já não se trata de compatibilizar a porção de vida que uma obra ilumina com a nossa experiência vital, mas sim de um processo mais imediato e independente do nosso controle. Há autores formalistas, como Roger Fry, que descrevem esse processo como algo aparentado ao conceito de beleza. Outros, como Clive Bell, o evitam. A despeito dessa controvérsia, há de fato uma proximidade entre a ideia do belo nas artes e a noção de forma que o formalismo geralmente emprega (Nick Zangwill, em entrevista para o Estado da Arte, comentou um pouco esse assunto).

Mas o que é, afinal, o arrebatamento? Os exemplos são incontáveis e variam de pessoa para pessoa. No entanto, o poder de alguns deles é tão grande que se tornam didáticos. O afresco de Michelangelo certamente não é admirado do mesmo modo por todos que olham para o teto da Capela Sistina. Mas essa diferença de apreciação já não se explica, como no argumento da experiência, pela “bagagem” distinta que cada um acumulou em sua vida.

Os fatores que realmente contam são a disponibilidade que temos para as obras, o nosso estado de espírito ou o tipo de sensibilidade que possuímos para as várias formas artísticas. Clive Bell, por exemplo, era um arguto apreciador da pintura, mas dizia-se um ouvinte fracassado, incapaz de captar a qualidade superior de uma obra musical. O importante é que, para um formalista, a grande arte é sempre uma imposição tão incisiva como a realidade que nos impulsiona a filosofar.

Assim, o espanto e a admiração que Aristóteles mencionava podem ser dispersos, evitados, rejeitados. Eles podem incomodar ou entediar as pessoas que preferem distância dos livros de filosofia, assim como podem inspirar tantas outras que montam bibliotecas ou escrevem seus próprios livros. Também o arrebatamento estético é uma possibilidade para a qual podemos estar fechados ou insuscetíveis. Afinal, há quem ande indiferente pelas ruas de uma grande cidade e não faça questão de entrar em seus museus, mesmo sabendo que ali vai encontrar obras magníficas.

Em nenhum desses dois casos seria justo culpar o objeto – a realidade ou a obra de arte – porque estamos indisponíveis. A espantosa realidade que nos cerca e o arrebatamento que as obras provocam não são coisas que simplesmente se elimine. Que não saibamos de antemão explicar o que é a realidade não é um empecilho para a teoria, já que essa ignorância é a própria condição que nos leva a filosofar. O mesmo vale para uma obra de arte arrebatadora. Não podemos explicar de antemão o que produz o arrebatamento, mas isso não muda nada no fato de que há obras que nos arrebatam, assim que nos tornamos disponíveis para elas.

Para onde vão as intenções no formalismo?

Por que uma obra é como é? Se aprofundarmos o debate lançado até aqui, chegaremos a essa questão nuclear. É ela que finalmente nos apresenta aos aspectos teóricos do formalismo. Clive Bell afirmava que as obras de arte são como são simplesmente porque possuem forma significante. É ela, a forma significante, que nos leva a sentir emoção estética. Nos casos mais intensos de qualidade artística, é ela que produz o arrebatamento.

Bell é muito questionado por não ter produzido uma definição satisfatória de forma significante. Para os críticos, o seu argumento é inválido por ser circular: arte é aquilo que tem forma significante, e forma significante é aquilo que encontramos na arte, o que nos leva sempre para o ponto de partida. De fato, esse é um problema lógico que atrapalha a teoria de Clive Bell. Sem precisar resolvê-lo agora, podemos retomar a nossa questão central: a quem importam as intenções dos artistas?

Para o argumento da experiência, a melhor apreciação de uma obra dependia sempre da condição de quem a recebia. Esse receptor ideal variava de acordo com o conteúdo da obra, como no exemplo da leitura do romance Madame Bovary por alguém que já tivesse atingido a maturidade na vida amorosa. Assim, embora tal receptor fosse um tipo “ideal”, ele era indefinível e eternamente dependente dos assuntos que uma obra trataria – ou seja, das experiências de vida que uma obra viria a solicitar do seu público.

O formalismo deu um passo adiante e abandonou a figura de um receptor dependente dos conteúdos das obras. O tipo “ideal” alcançou a universalidade. A forma que um artista dá a qualquer assunto passou a ser o que realmente importa. No limite, a emoção estética sequer dependeria da existência de um assunto restrito e bem definido, e obras de arte “sem conteúdo”, como as pinturas de Jackson Pollock, encontraram no formalismo o seu melhor abrigo teórico.

A pergunta pelas intenções dos artistas se desviou igualmente para a forma. Em vez de “O que essa obra pretende dizer sobre o mundo?”, o público passa a perguntar “Qual foi a pretensão de quem formatou a obra desse modo, e não de outro?”

Clive Bell defendia que nenhuma educação além do conhecimento das formas era estritamente necessária para a apreciação correta da arte. Com isso, o formalismo acabou dando a largada para que o acúmulo de experiências com a própria arte ultrapassasse, em importância, o nosso acúmulo de experiências de vida. Esse é um tópico polêmico e fascinante que não poderíamos desdobrar aqui. A sua base de discussão, porém, está exposta acima. Avançaremos um pouco mais no último texto dessa série, quando confrontaremos o formalismo às teorias do “mundo da arte” – e chegaremos, enfim, a uma discussão sobre as intenções dos artistas na arte contemporânea.

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