por Rodrigo Cássio
Mal houve tempo para que o cancelamento da exposição Queermuseu em Porto Alegre parasse de produzir discussões acaloradas nas redes sociais, e as críticas à presença de uma criança na performance com nudez do artista fluminense Wagner Schwartz, no MAM-SP, tomaram conta das discussões sobre a liberdade de expressão no Brasil. De maneira um tanto inesperada, a arte contemporânea acabou sendo colocada no centro dos confrontos políticos entre alguns dos atuais agentes organizados no país.
Quando comecei a escrever esse texto, estávamos no breve intervalo entre as duas polêmicas. Por isso, optei por interrompê-lo e esperar um momento mais propício. Toda opinião sobre a liberdade artística passou a gravitar em torno da performance no MAM. Não vou me furtar de comentar essa celeuma, uma vez que meu tema também diz respeito a ela. Mas o que realmente me motivou foi outro caso recente, em que críticas dirigidas a um museu também geraram controvérsias.
O caso ocorreu no final de setembro, no Museu Guggenheim de Nova York, pouco antes do início da exposição Art and China after 1989: Theater of the World. Em resposta a uma série de protestos de associações de defesa dos animais, que incluíram uma petição de mais de 700 mil assinaturas, a direção do Guggenheim decidiu não exibir três obras que estavam programadas pelos curadores. O motivo é que elas são performances, ou registros de performances, que utilizam animais ou insetos vivos como meios para chegar a certos fins expressivos.
Assim como nos casos ocorridos no Brasil, esse fato trouxe à tona questões filosóficas muito interessantes sobre a existência de limites éticos para a ação dos artistas na execução de suas obras. Estes limites existem? É certo que a arte contemporânea tem muitas vezes o aspecto de um “vale-tudo”. Mas será assim mesmo?
No proselitista mundo da arte, é pouco comum que tais perguntas sejam abordadas com real interesse. As disputas produzidas pela reação à performance do MAM mostram o resultado disso. De um lado, acusações de pedofilia, incitações e boatos de linchamento do artista, em meio a uma infinidade de objeções que rejeitam a arte contemporânea como um todo. De outro lado, artistas e críticos respondendo em bloco, muito seguros do que dizem, mas raramente dispostos a valorizar as questões que os confrontam.
Obras e procedimentos
Quando do fechamento da Queermuseu em Porto Alegre, argumentei que a arte não deve ter limites, muito embora as ações dos artistas não sejam sem limites. Em um texto na revista Amálgama quase todo construído como crítica ao meu artigo, Elton Flaubert replicou que essa distinção é contraditória. Retomo aqui esse assunto para esclarecê-lo melhor, pois se trata de uma ideia importante e, na verdade, muito simples.
O que quis dizer é que o princípio da liberdade de expressão deve sempre prevalecer, mas isso não justifica que os artistas possam fazer qualquer coisa para chegar aos resultados que desejam. Podemos pensar essa diferença por meio de uma apropriação livre do conceito de procedimento, desenvolvido em outros termos pelo teórico formalista Viktor Chklovski. Antes de ser uma obra, toda obra é uma série coordenada de processos, ações deliberadas, aplicações de convenções já existentes, assimiladas e certamente modificadas pelo artista. São a estes elementos – ou procedimentos – que nos reportamos para melhor compreender um trabalho artístico
Charles Chaplin refilmou mais de 300 vezes a cena em que seu personagem compra um buquê de flores em Luzes da Cidade (1931). Enquanto a cena definitiva não foi realizada e montada junto das demais, nós não tínhamos, a rigor, um filme. Essa informação sobre o modo de proceder de Chaplin não é uma condição para o espectador fruir a obra, mas é evidente que o artista queria chegar à encenação mais perfeita possível, e é ela que fruimos ao assistir Luzes da Cidade.
Na lógica formalista, a obra é sempre um resultado, ou seja, ela surge assim que os procedimentos são interrompidos. Quando o pintor escreve a sua assinatura em um quadro recém-terminado, seu gesto determina o nascimento de uma nova obra. Na arte contemporânea, porém, há muitos casos em que essa gênese já não pode ser reconhecida. Os happenings e grande parte das instalações e performances, por exemplo, demonstram que a arte pode existir apenas como procedimento, e não como “obra”.
A bem da verdade, a distinção entre obra e procedimento é ainda mais complexa do que expus acima. A partir do clássico estudo sobre a reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin, escrito nos anos 1930, poderíamos até questionar se existem “obras” no cinema. Diferente de um quadro na parede, o filme é um acontecimento que depende, pelo menos, de um projetor, sistema de som, uma superfície branca e uma sala escurecida. Sabemos que a Monalisa original está exposta no Museu do Louvre. Um filme, porém, precisa ressurgir a cada nova exibição – ele não tem um original. Essa ação reiterada de trazer um filme à vida não seria sempre um procedimento?
A despeito de quando começam ou terminam, os procedimentos são indispensáveis para a arte. Nesse sentido, poderíamos dizer que existe arte que não é “obra”, mas não existe arte que não envolva algum procedimento. Mesmo que um artista cruze os braços em uma performance, para não fazer nada, isso já é um procedimento. Mas podemos ir além. Há procedimentos que não são arte, como as centenas de cenas descartadas por Chaplin em Luzes da Cidade; e há procedimentos que já são arte, como na performance Ritmo 0 (1974), de Marina Abramovic, executada em Nápoles, em que a artista deixou os visitantes manipularem o seu corpo como bem entendessem, de modo a construir situações com dezenas de objetos disponíveis em uma mesa.
Aonde quero chegar? Segundo penso, a ideia de procedimento nos ajuda a resolver tensões entre a liberdade da arte e os limites éticos das ações dos artistas. A arte deve ser livre para abordar qualquer tema e se apropriar de qualquer ideia, símbolo ou material que lhe esteja disponível, mas isso não implica que os procedimentos pelos quais os artistas exercem essa liberdade nunca venham a esbarrar em limitações. Em outras palavras, se há barreiras éticas que restringem a ação de um artista – e penso que há – elas estão sempre ligadas ao modo como os artistas procedem.
O sofrimento como um limite
Das três obras excluídas da exposição de arte chinesa pela direção do Museu Guggenhein, vou me limitar a comentar Os cachorros que não podem se tocar (2003), do casal de artistas Sun Yuan e Peng Yu, que é o melhor exemplo para seguirmos o raciocínio. Trata-se de uma instalação em que vários cachorros são colocados para correr em esteiras individuais, amarrados pelo dorso e separados em duplas, ficando um de frente para o outro. Quando se veem, os animais correm para se atacar, movimentando as esteiras. No registro em vídeo da instalação, que seria exibido no Guggenhein, é possível ver que Sun Yuan e Peng Yu conceberam o trabalho de modo que os cães devem correr na esteira até estafarem. A instalação só é desativada quando assistentes interpõem uma cartela branca entre as esteiras, bloqueando a visão dos animais.
Em nota sobre a curadoria de Art and China after 1989, o Guggenhein advertiu que a instalação é uma crítica aos sistemas de controle e poder, além de abordar as condições sociais da globalização e a complexa natureza do mundo em que vivemos. A despeito de como interpretamos a obra, ela nos traz um problema: A liberdade de expressão dos artistas justifica o sofrimento físico causado aos cachorros? Os procedimentos usados por Sun Yuan e Peng Yu, ao admitirem o sofrimento dos animais, não seriam eticamente condenáveis?
Questões éticas sobre o uso de animais na arte não são uma novidade. Em uma exposição na Nicarágua, em 2007, Habacuc (psudônimo do artista Guillermo Vargas Jiménez) prendeu um cachorro de rua em estado de inanição a uma corda, ao lado de uma parede onde uma frase foi escrita com comida, de modo que o animal não pudesse chegar aos alimentos.
Embora tenha havido muita desinformação (inclusive proposital) sobre o real tratamento dado ao cachorro, a instalação de Habacuc foi arduamente criticada por sociedades de defesa dos animais (algum tempo depois, a galeria afirmou que o cão foi alimentado regularmente, e não passou mais de três horas amarrado). Outro caso que repercutiu, dessa vez no Brasil, foi a instalação Bandeira Branca, de Nuno Ramos, na Bienal de São Paulo de 2010. A obra suscitou reações adversas por reter urubus em confinamento, e acabou sendo alvo de pichações e vandalismo.
Estes casos são bastante diferentes entre si, mas deixam ver uma linha de problematização da arte contemporânea que me parece legítima. Quando os procedimentos dos artistas impõem sofrimento a seres sencientes, penso que é possível questioná-los de um ponto de vista ético. Esse questionamento não deve ser confundido com uma volição para a censura, uma vez que se origina das tensões normais entre a liberdade de expressão e outras liberdades ou direitos.
Em entrevista ao jornal El País, imaginei uma hipótese extrema que poderia justificar o impedimento de uma obra: um artista que prendesse alguém em uma caixa por vários dias a fim de representar a angústia. Se descermos desse exemplo hipotético em busca de casos concretos que possam justificar o impedimento de uma obra, as instalações que utilizam animais são pratos cheios para discussões de inegável relevância. Do mesmo modo que a ética filosófica tem recebido contribuições importantes de Peter Singer sobre o tema da libertação animal, a filosofia da arte se beneficiaria de uma ética utilitarista que abordasse este mesmo tema no contexto da arte contemporânea.
O vídeo que mostra a ativação de Os cachorros que não podem se tocar não oferece uma base totalmente segura para julgarmos até que ponto os animais sofreram. No entanto, a percepção de que há sofrimento é forte o bastante para que nos perguntemos se valeu a pena ter submetido os cães ao esgotamento físico. Não seria melhor que os artistas procedessem de outro modo para chegar a uma alegoria das relações sociais de poder e controle? É claro que trocar o procedimento significa mudar a natureza do resultado, e a obra desapareceria. Mas isentar os procedimentos de críticas, para garantir a liberdade de expressão, é associar essa liberdade à ideia ilusória de que os artistas podem fazer qualquer coisa, o que não é realista.
Uma discussão delicada
Escrevo esse texto como se estivesse passando por um corredor estreito com paredes revestidas de agulhas, tamanha a delicadeza do tema. A submissão da arte a imperativos morais é tão frequente nas últimas décadas que se tornou um hábito policiar os procedimentos dos artistas. Ao mesmo tempo, parte considerável da reflexão e da crítica se preocupa mais com a avaliação moral dos procedimentos do que com o julgamento dos seus resultados estéticos, o que não deixa de refletir a vigorosa ascensão da arte como puro procedimento desde os anos 1970.
Essa tendência poderia indicar que reflexões filosóficas sobre a ética da liberdade artística, como as que apresento aqui, estão em voga. Mas não é nada disso. As principais fontes de objeções morais à arte, hoje em dia, estão nas agendas políticas de grupos militantes que disputam o controle das representações e das narrativas. Essa situação é piorada pela propensão da própria arte contemporânea a convencer o público do seu valor por razões políticas, deixando as qualidades formais em segundo plano.
A recepção do filme Vazante, de Daniela Thomas, no Festival de Brasília, serve para ilustrar esse domínio da militância sobre o tema da ética. Das muitas críticas dirigidas à cineasta, chama a atenção a naturalidade com que se questionou o fato de ela ser branca e contar a história de personagens negros. Raciocínios como esse têm uma inclinação tácita para a censura, e não é por acaso que, ao final do debate, Thomas ouviu que talvez nem devesse lançar o seu filme. A não ser que se possa provar que brancos filmando histórias de negros cometem alguma violação de direitos ou agridem a liberdade de outrem, não há qualquer razão para incluir tais objeções entre os exemplos de questionamento que valem a pena ser feitos em uma ética filosófica da liberdade artística.
Logo, não há semelhança entre o politicamete correto praticado pelas patrulhas ideológicas e a ética utilitarista que defendo como uma resposta pertinente aos problemas derivados do suposto “vale-tudo” da arte contemporânea. Esse esclarecimento nos permite fazer dois breves comentários sobre a exposição Queermuseu e a performance de Wagner Schwartz no MAM de São Paulo, para não concluirmos sem abordar estes temas ainda muito presentes na mídia.
A compreensão de que os problemas éticos do trabalho artístico podem ocorrer nos procedimentos, mas não em seus resultados, serviria para evitar a falácia utilizada por alguns críticos conservadores da Queermuseu, para quem o artista que escreveu as palavras “vagina” e “cu” em hóstias teria cometido o crime de vilipêndio de objeto de culto. É curioso que em 1987, nos EUA, houve uma polêmica muito parecida em torno da fotografia O Cristo do Mijo, de Andres Serrano, que foi feita a partir de um crucifixo mergulhado em um frasco de urina. A não ser que estes artistas tivessem surrupiado as hóstias e o crucifixo diretamente do ritual religioso que as consagrariam como objetos de culto, o argumento conservador não tem fundamento.
Mas é na polêmica motivada pela performance do MAM que a nossa investigação sobre arte e sofrimento encontra um solo mais fértil, como uma reflexão sobre a ação da mãe que, a despeito da advertência de nudez, levou uma criança para interagir com o corpo do performer. Do ponto de vista utilitarista, o conceito de sofrimento é amplo o bastante para abarcar o mal-estar psicológico que uma experiência traumática pode gerar a alguém. Estamos certos ao pensar que o bem-estar da criança, que infelizmente se tornou o pivô dessa polêmica, foi prejudicado?
É claro que não é possível ter certeza sobre essas consequências negativas, e até poderíamos supor que elas não são necessariamente negativas (me refiro estritamente às consequências da participação da criança na performance, e não à sua superexposição nas redes sociais). Mesmo assim, me parece razoável defender como regra geral que uma performance com nudez não deve ter a participação de crianças, assim como filmes com nudez recebem classificações indicativas que discriminam as faixas etárias ideais. O benefício da dúvida deve favorecer a proteção das possíveis vítimas.
Nesse sentido, a liberdade de a mãe decidir sobre o acesso da filha à performance não é diferente da liberdade de um pai levar o seu filho para o cinema, mesmo sabendo que a classificação da obra não é adequada para a sua idade. As comparações da performance do MAM com uma sessão de pedofilia são cabotinas e vulgares, como se não houvesse diferença entre o caso e um crime de exploração sexual de menores. No entanto, a ausência de ilicitude no gesto da mãe não elimina o problema moral criado pela presença da criança na sala do museu. A questão é de ética, e não criminal.
É aqui que nossa discussão ganha uma complexidade muito pouco percebida. Até que ponto o problema moral criado pela presença da criança não poderia ter sido evitado pelo procedimento do artista? Afinal, é sempre nos procedimentos que a natureza ética de uma ação criadora pode balizar a soberana liberdade de expressão dos artistas.
Em Ritmo 0, quando alguém do público colocou uma pistola nas mãos de Marina Abramovic, e depois curvou o seu braço para que a arma ficasse apontada para a sua boca, as ações foram interrompidas. A liberdade da arte já não justificava aprofundar o sofrimento da artista. Eu não diria que Wagner Schwartz deveria ter interrompido a sua performance no MAM no momento em que percebeu a presença de uma criança. Mas ao imaginarmos que ele poderia ter feito isso, já redirecionamos essa conturbada polêmica para uma reflexão que situa os limites morais das ações dos artistas no âmbito próprio em que elas se aplicam.
Diante de uma opinião pública instigada a tratar a arte contemporânea como crime, uma ética da liberdade artística poderia, quem sabe, tornar o debate muito menos insípido.