por Fabrício Tavares de Moraes
De acordo com o que se depreende em seus ensaios, Kuyper acreditava que o modernismo em parte é caracterizado por uma confusão epistemológica em que Deus, homem e mundo se transformam em ideias, fazendo com que, em contrapartida, certas abstrações se tornem, por sua vez, hipóstases. O resultado dessa crise filosófica é que a “unidade de origem”, que, segundo ele, “é a característica indispensável de todo ser” é inteiramente despedaçada, e assim nos resta somente seres irreais, simples aparições.
Portanto, de acordo com sua concepção, “na esfera modernista, não resta nenhuma escolha senão ser um ocasionalista como Geulinx ou um materialista na linha de Moleschot. Ou a vida moral é um sublimado de forças físicas, ou aquilo que só o mais radical docetista ousou conceber acerca de Jesus Cristo será atribuído a todo ser humano. Ora, o caminho à vossa frente leva a essa bifurcação; ambas as direções vos conduzem à abolição do homem” [1]. Apenas para contextualizarmo-nos, o docetismo aqui referido, como se sabe, negava a corporalidade de Cristo, julgando-o uma simples manifestação fantasmagórica.
Como se nota, porém, o elemento crucial da crítica de Kuyper é a incapacidade de grande parte do pensamento moderno em apresentar-nos uma antropologia filosófica que não seja reducionista. Nesse mesmo sentido, Eric Voegelin, por exemplo, argumentava que o existencialismo constitui-se em parte como uma resposta e retomada dos elementos da condição humana antes ignorados ou mesmo negados pelo pensamento cartesiano e suas influências subsequentes. E, conforme já visto em ensaios anteriores, essa ênfase nos aspectos mais esquivos e obscuros da condição humana tem sido um dos elementos recorrentes nas obras de antimodernos.
Certamente essa antropologia fraturada tem ressonâncias na concepção historiográfica moderna. Para Kuyper, “o modernismo é a estampa na religião daquilo que a Revolução Francesa veio a ser no [âmbito do] Estado; ele tenta espremer todas as coisas no molde de sua ideia”. [2] A primeira das consequências sobre a história é que, abstraindo a racionalidade humana de suas circunstâncias naturais, a historiografia de parte considerável do modernismo perdeu seu contato com a vida.
É claro, trata-se de uma percepção generalizada, talvez restrita ao momento em que Kuyper tecia suas considerações, e não é, de modo nenhum, um juízo aplicável a todo o desenvolvimento e variações posteriores dos estudos históricos.
No entanto, o que Kuyper denuncia, e que transcende sim seu momento histórico, é aquilo que Peter Gay chama de “onipotência da crítica”, isto é, a suspeição para com todas as coisas (que culmina quase necessariamente na dissolução do objeto investigado) e na confiança inabalável na infalibilidade do exercício crítico. Nas palavras do teólogo: “A totalidade do passado simplesmente tem de ser modificada, colorida e transpostas até que a história, a despeito de si própria, sustente meu modernismo. Mas, nesse caso, de maneira compreensível, não se pode falar de senso histórico, pois o centro nevrálgico desse senso já foi cauterizado por meu apriorismo. Embora uma pesquisa histórica dessa natureza possa informar-me quais cartas o modernismo do século XIX tem escondidas debaixo da manga, não pode, no entanto, ensinar-me o que aconteceu dezoito séculos atrás. Sua crítica [dos modernistas] mostrou-se incapaz de realizar isso, porque, julgando-se objetiva, rompeu toda ligação com a vida”. [3]
Em seguida, valendo-se de uma metáfora da ourivesaria, Kuyper diz que o primeiro passo numa avaliação da veracidade do ouro é certificar-se que se tem de fato uma verdadeira pedra de toque; em outras palavras, “é necessário que haja uma afinidade natural entre o objeto que escolhestes e a pedra de toque que empregas, ou, de outro modo, o teste há de falhar”. Segundo o autor, porém, o “modernismo nega precisamente isso. Toma essa atitude como preconceito e parcialidade e deseja que nós, pelo contrário, avaliemos o mundo das cores, ainda que nossos olhos não tenham afinidade a elas”. Portanto, conclui o autor, “um crítico sensível diria corretamente: ‘não podemos julgar corretamente esse fenômeno [a religião cristã], a menos que tenhamos a afinidade intelectual que nos permita adentrar em sua vida interna’. ‘Mas, não!’, diz o modernismo, ‘o objeto deve ser tudo, e o sujeito, nada’; e por meio de uma crítica selvagem debruça-se na inspeção de todas as coisas, com exceção de si próprio”. [4]
Desse modo, além dessa manifesta impotência da filosofia (mais especificamente de certa epistemologia) que conduz à cisão do ser humano, e além desse esboroamento da história que impede qualquer continuidade orgânica entre presente e passado, tem-se ainda a questão do próprio domínio humano sobre a natureza, que, contrariamente ao que se pensa, produz, no espírito humano, uma obsessão pela uniformidade.
Em outro de seus ensaios – primeiramente apresentado como uma palestra no teatro Odeon, em Amsterdã, em 1889 –, intitulado Uniformity: the curse of modern life [Uniformidade: a maldição da vida moderna] [5], Kuyper denuncia em parte o que posteriormente chamaríamos de massificação.
Lembremos que Kuyper vivenciou não só o apogeu da industrialização, mas também do neocolonialismo, tendo inclusive justificado – numa típica contradição [6] dos antimodernos – as práticas predatórias da Companhia Holandesa das Índias Orientais, na região do Pacífico. Nesse sentido, estamos no período em que predomina a lógica de desenvolvimento que tornaria “todas as coisas previsíveis e calculáveis a serviço da máxima eficiência e da busca consciente de lucros”.
Surpreendentemente, porém, o teólogo encontra um ponto em comum entre a industrialização e os princípios revolucionários de 1789, nomeadamente, o “monismo” social que rejeita o caráter multifacetado de qualquer sociedade vigorosa. Neste ponto, embora fuja ao nosso contexto e transcenda o espaço para uma simples abordagem de seu pensamento social, talvez haja um campo fértil para um estudo entre esse diagnóstico de Kuyper sobre a vida moderna e sua proposta sócio-política para a sociedade neerlandesa, que se tornou conhecida como “pilarização”.
Retornando, pois, ao núcleo de nossa análise, Kuyper diz-nos em seu ensaio acima mencionado: “Não a fraternidade, mas sim uma falsa uniformidade é o objetivo para o qual suas brilhantes imagens [da Revolução Francesa] nos conduzem… Se a multiformidade é a marca inegável da vida ativa e vigorosa, nossa época busca concretizar sua maldição em sua busca por uniformidade… Conclama, cada vez mais estridentemente, que, em nossa sociedade moderna, todas as coisas, por mais distintas que sejam suas naturezas, devem ser moldadas de acordo com um único modelo, talhado segundo um padrão singular, ou derramado num mesmo molde fixo. É como o antigo malfeitor [Procusto] que, conforme nos narra o mito, obrigava todo viajante que conseguia sequestrar a deitar-se num leito de ferro, amputando suas pernas quando estas eram mais longas e distendendo aquelas que eram mais curtas, até que se ajustassem precisa e completamente às dimensões do leito”. [7]
Em resumo, a uniformização é tanto um projeto quanto uma consequência da corrida pelo domínio humano sobre a natureza; por outras palavras, é um meio de exercício de controle sobre o domínio natural (que acaba se estendendo para o próprio âmbito da sociedade e dos indivíduos) e o resultado da “matematização” própria da mentalidade moderna de produção.
Para Kuyper, tanto o capitalismo industrial quanto o socialismo de sua época compartilhavam dessa mentalidade monista que venera a indistinção. Ele afirma que tanto o socialismo utópico de Paulin Poulin, que apregoa o dia “quando todas as diferenças culturais entre os países, todos os usos, costumes e tradições desaparecerão cada vez mais, esmagados pelas rodas das locomotivas”, quanto o capital, “cujo poder, em acumulações continuamente maiores, drena a corrente sanguínea de nosso comércio varejista” e “cujas máquinas de ferro a vapor eliminam a rica diversidade que costumava conferir a cada negócio seu próprio encanto”, amam a uniformidade, sendo portanto contrários à ordem da criação. [8]
Assim, positivismo, industrialização, neoimperalismo, capitalismo e socialismo são simples afluentes que desembocam no modernismo, a ilusão ou “heresia” total de nossa época. O liberalismo eclesiástico é, pois, a capitulação das igrejas cristãs aos métodos (e não aos questionamentos) iluministas e aos princípios epitomados na declaração da Revolução Francesa. Novamente, como no caso de autores anteriormente analisados, a queda ou o “pecado original” do homem moderno remonta à sublevação de 1789.
Por fim, não é incorreta a afirmação de que, em sua vida, Kuyper de fato colocou em prática a realidade do aspecto multifacetado do mundo e do próprio homem, não somente por meio de sua percepção das “esferas de soberanias”, um princípio sociológico que perpassa toda sua obra, mas principalmente em suas incessantes atividades como ministro eclesiástico, educador, editor, teólogo e político.
Afinal, sendo a todos de sua época manifesta sua atividade incansável (que em sua juventude lhe rendeu um período de aproximadamente um ano de exaustão mental, após ter-se dedicado e vencido um aclamado concurso nacional de ensaios acadêmicos), mesmo seus inúmeros rivais nos âmbitos teológico e político não hesitaram em chamá-lo de um homem com dez cabeças e cem braços.
Notas
[1] Abraham Kuyper, “Modernism: A Fata Morgana in the Christian Domain”, em Abraham Kuyper: A Centennial Reader, ed. James D. Bratt (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), p. 87-124.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Dizemos que é uma contradição, pois, conforme se evidenciou, Kuyper critica o afã predatório do liberalismo de sua época – em especial os Inclosure Acts na Inglaterra – e defende em uma de suas obras o cuidado e interesses dos trabalhadores, numa tônica muito semelhante à encíclica Rerum Novarum (1891) de Leão XIII. A visto disso, o autor tinha plena consciência das mazelas sociais oriundas das pretensões exploratórias de determinadas iniciativas e empresas de sua época.
[7] Abraham Kuyper, “Uniformity: the curse of modern life”, em em Abraham Kuyper: A Centennial Reader, ed. James D. Bratt (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), p. 19-44.