Os Antimodernos: Hamann, o Mago do Norte, e as origens do contra-iluminismo (parte 1)

Na série "Os Antimodernos", Fabrício Tavares de Moraes comenta a obra do filósofo alemão Johann Georg Hamann.

por Fabrício Tavares de Moraes

Por meio de sua obra editada postumamente, Three Critics of the Enlightenment: Vico, Hamann, Herder, Isaiah Berlin talvez tenha sido o principal colaborador na retomada dos estudos acadêmicos do obscuro Johann Georg Hamann. O que mais chamou a atenção de Berlin, levando-o pois ao estudo detido desse grande inimigo do iluminismo, é o contraste entre seu atual esquecimento e o grande reconhecimento que gozava em sua época.

Embora tenha sido uma das figuras menores no movimento Sturm und Drang, o núcleo de seu pensamento, contido em escritos adornados, por vezes impenetráveis e fragmentados, influenciaram praticamente todos os grandes nomes do romantismo alemão. Goethe, por exemplo, chamou-o de “o homem mais brilhante de nossa época”. Herder e Jacobi, seus dois principais discípulos, julgavam Hamann como a verdadeira encarnação do gênio; amigo, conterrâneo e rival de Kant, recusou a composição conjunta de uma obra de física, em razão de sua aversão às fórmulas abstratas¹. Mesmo Hegel, avesso ao espírito antissistemático de Hamann, escreveu uma resenha longa, elaborada mas nada amistosa aos seus escritos.

Dentre outros admiradores estão Schelling, que o considerava um “escritor grandioso”, o jurista Friedrich Karl von Moser, e Jean Paul, para quem Hamann “era um céu profundo repleto de estrelas telescópicas e inúmeras nebulosas que o olho humano é incapaz de decifrar”. Ora, se, por um lado, Berlin lamenta o esquecimento injusto de Hamann, por outro, ele apresenta suas justificativas para a retomada que faz do pensamento do Mago do Norte². Para Berlin, Hamann é o pai da tradição do Contra-iluminismo, a qual não implica um simples reacionarismo, mas uma epistemologia distinta e até hoje, diríamos, impopular. Conforme a definição de Berlin:

É à sua aversão a sistemas, a uniformidades objetivas e invioláveis, à aplicação de métodos matemáticos e cálculos que eu e outros nos referimos ao tratar de seu antirracionalismo – a bandeira do Contra-iluminismo por ele erguida – e da influência desse antirracionalismo sobre alguns dos filósofos da chamada escola romântica de pensamento que surgiu na Alemanha em princípios do século XIX, e sobre seus descendentes.³

Antes, porém, de qualquer análise mais detida acerca do pensamento de Hamann, cabe uma breve descrição de seu contexto imediato. Como já dito, Johann Georg Hamann nasceu em Königsberg, em 1730. Seu pai, um barbeiro-cirurgião, havia sido designado como supervisor do balneário municipal da cidade. A família provinha de um ambiente pietista, o ramo devocional e místico do luteranismo cujas origens remontam a Philip Jacob Spener e a grupos religiosos do Baixo Reno no século XVII. É o mesmo movimento que traria à luz, ou influenciaria, nomes tão distintos (e por vezes “heréticos”) como Jacob Böhme, a Igreja dos Irmãos Morávios, Emmanuel Swedenborg, William Blake e mesmo Kant.

É desse meio, portanto, que advém, como diz Berlin, características que exercerão influência direta ou lateral ao pensamento de Hamann, a saber, “a profundidade e sinceridade da fé pessoal, a união direta com Deus, alcançada mediante um rigoroso autoexame e um sentimento religioso intensamente introspectivo³”. No entanto, alguns traços típicos do pietismo, por exemplo o ascetismo e a suspeita para com a erudição, não se fizeram presentes no pensamento de Hamann.

Sua própria formação intelectual reflete o aspecto desordenado e antissistemático de seu pensamento posterior. Primeiramente, aprendeu latim com um padre que rejeitava o ensino por meio das gramáticas latinas; ademais, junto com seu irmão, jamais permaneceu muito tempo numa única escola, o que o levou ao desprezo por esquemas didáticos. Aos 15 anos, idade para o início dos estudos superiores na Alemanha da época, Hamann ingressou na Universidade de Könisberg, onde, nas aulas de história, geografia, filosofia, matemática e hebraico, demonstrou imensos talentos. Também teve aulas de filosofia com Martin Knutzen, o professor de Kant e um dos grandes nomes responsáveis pela introdução da física newtoniana na academia alemã.  

Curiosamente, no entanto, Hamann, de início, não demonstrou interesse pela teologia; antes, tornou-se um célebre admirador e imitador dos philosophes do iluminismo francês. Sendo então um típico e jovem representante do Aufklarüng, caiu nas graças dos irmãos Berens, ricos comerciantes da cidade de Riga (capital da atual Letônia).

Hamann, por influência dos seus mecenas, dedicou-se ao estudo e tradução da obra do economista francês Louis-Joseph Plumard de Dangeul. A essa tradução, Hamann acrescenta um longo ensaio de sua autoria em que cita nomes e documentos tão díspares como Terêncio, Cícero, Madame de Graffigny, Xenofonte, Montesquieu, Plutarco, Alexander Pope, Hume, os concílios primitivos da igreja, Platão, Mandeville, Girolamo Belloni e mesmo o testamento político do chefe de um bando de contrabandistas; junto a isso, tece novamente elogios à Enciclopédia Francesa, à arte do comércio e aos mercadores, que, segundo ele, trazem o bem-estar material, o cultivo das artes da paz, contrariamente aos barões usurpadores, aos monges corruptos da Idade Média e aos senhores da guerra que têm há muito devastado a humanidade.

Entretanto, essa sua visão de mundo iluminista sofreu um poderoso e irreversível abalo em 1756, após seu fracasso numa missão em Londres que lhe tinha sido confiada pela firma dos irmãos Berens. Muito se discute sobre a natureza dessa incumbência, mas Isaiah Berlin, apoiando-se em outros pesquisadores, sugere que muito provavelmente se tratava de uma proposta aos círculos políticos britânicos para que apoiassem “a secessão da área báltica ‘alemã’ em relação ao Império Russo, a fim de formar um Estado independente ou semi-independente – um esquema de possível interesse à Inglaterra, em razão de seu temor declarado para com o poder expansionista russo³”.

Após seu fracasso, Hamann lançou-se, segundo seus relatos, a uma vida de dissipação em Londres, o que lhe gerou uma imensa dívida financeira, agravando sua solidão e desespero. Refugiou-se na casa de um músico, cujo nome, pouco depois, caiu na difamação pública. Esses infortúnios levaram-no a reaproximar-se de sua confissão religiosa; de modo que, abandonando seu posto na firma comercial, retornou aos seus hábitos antigos e, como admirador de Lutero e dos pietistas, dedicou-se à leitura meticulosa e diária da Bíblia, registrando rigorosamente seu progresso espiritual.

É a partir desse momento que seu pensamento, até então guiado pelos princípios do racionalismo iluminista, tomará uma direção que o distancia tanto dos românticos alemães (com sua ênfase no Volksgeist) quanto do catolicismo e protestantismo liberais de sua época. Para Berlin, portanto, são três as principais contribuições de Hamann para o estudo das ideias políticas e religiosas da modernidade, a saber, “sua visão da natureza, fontes e eficácia do conhecimento e da crença; sua teoria da linguagem e do simbolismo em geral; e sua concepção do gênio, da imaginação, da criação e da relação de Deus para com o homem”.

Nos ensaios posteriores, esboçaremos uma breve análise sobre esses três pontos fundamentais, embora partindo sempre do pressuposto de que a obra de Hamann, em virtude de seu “intuicionismo” por vezes radical, é avessa a toda dissecação lógica. Como o próprio autor já havia dito em uma carta a seu amigo Kant: “Olho para a melhor demonstração filosófica como a garota sensível olha para uma carta de amor – com prazer, mas também com suspeita”.

Notas

[1] Kant propôs que escrevessem juntos essa obra como um meio para que Hamann obtivesse um posto acadêmico ou tutelar que lhe proporcionasse certo conforto material.

[2] Em ensaios anteriores desta série, nos quais tratamos sobre o pensamento de Eugen Rosenstock-Huessy, dissemos que este pensador havia sido chamado de o Novo Mago do Norte, numa alusão direta a Hamann. A semelhança entre as linhas de pensamento de ambos os autores tornar-se-ão mais claras nos próximos ensaios, demonstrando assim porque os classificamos como “antimodernos”.

[3] Isaiah Berlin, Three Critics of the Enlightenment: Vico, Hamann, Herder. Princeton: Princeton University Press, 2013.

Leia as outras partes de Os Antimodernos – Hamman, o Mago do Norte

Parte 2 e Parte 3

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