Os Antimodernos: Hamann, o Mago do Norte, e as origens do contra-iluminismo (parte 2)

Na série "Os Antimodernos", Fabrício Tavares de Moraes comenta a obra do filósofo alemão Johann Georg Hamann.

por Fabrício Tavares de Moraes

No ensaio anterior, dissemos que o pensamento de Hamann inaugurou a tradição do contra-iluminismo, embora o autor tenha sido, num primeiro momento, um admirador e epígono dos philosophes e enciclopedistas franceses.

Entretanto, como enfatiza Isaiah Berlin, em razão das interpretações equivocadas acerca do pensamento iluminista, é necessária uma delimitação daquilo ao qual Hamann (e todos os que seguem sua “escola” crítica) se opôs, nomeadamente, e nos termos do próprio pensador, o “racionalismo especulativo”, a tentativa de apreensão da estrutura e relações do mundo por meio unicamente de nossa capacidade analítica.

Afinal, ao contrário do que muitos pensam, nem todos os filósofos iluministas (dos diferentes iluminismos, mais precisamente) afirmavam a bondade natural do homem, nem que a sociedade e as instituições – principalmente as clericais – fossem a causa primária dos males e sandices promovidas pela humanidade. O próprio Voltaire, por exemplo, acreditava que os homens eram naturalmente cruéis, agressivos e pusilânimes, e entendia que essas desagradáveis disposições só seriam restringidas por meio da imposição de certas disciplinas. Montesquieu e Helvécio, como nos lembra Berlin, entendiam que o homem nasce moralmente neutro, mas é intensamente moldado pelo seu meio, educação e mesmo pelo acaso.

Também não há como classificá-los em bloco no que diz respeito à religião: alguns defendiam a existência de uma alma imortal no ser humano, ao passo que outros eram inteiramente materialistas; havia deístas, teístas, mas também agnósticos e mesmo ateus militantes.

Nem todos os filósofos iluministas afirmavam a bondade natural do homem ou que a sociedade e as instituições fossem a causa dos males da humanidade

No âmbito político e social, também não havia consenso, pois pensadores com o d’Alembert e Condorcet idolatravam o progresso técnico, e advogavam a aplicação da matemática e das ciências naturais às questões humanas. Rousseau, Raynal e Morelly, por seu turno, estavam inclinados ao primitivismo, e ansiavam por um retorno à sociedade de homens “naturais” puros, incorruptos e livres da influência da hipocrisia típica das grandes cidades e da opressão das religiões institucionalizadas. Por fim, certos pensadores defendiam o despotismo esclarecido, outros, a democracia: Condorcet, mais uma vez, defendia a igualdade dos homens, enquanto Holbach e (surpreendentemente) Kant condenavam populações de outros continentes como sociedades inferiores.

Porém, como diz Berlin, há um núcleo de ideias, práticas e comportamentos comuns entre esses filósofos e escritores. São precisamente essas características e circunstâncias que formam o que hoje designamos de iluminismo. Em primeiro lugar, havia “a convicção de que o mundo, ou natureza, era uma totalidade unificada, sujeita a um conjunto unitário de leis, que eram, a princípio, passíveis de serem descobertos pela inteligência do homem”; por conseguinte, eram também comuns as crenças de que “as leis que governam a natureza inanimada eram, a princípio, as mesmas que governam as plantas, animais e seres sencientes; que o homem era capaz de aperfeiçoamento; que existiam determinadas finalidades humanas objetivamente reconhecíveis que todos os homens (os que são assim propriamente caracterizados) buscavam, a saber, a felicidade, o conhecimento, a justiça, a liberdade e aquilo que era vagamente descrito mas perfeitamente compreendido como virtude; que todas essas finalidades comum a todos os homens enquanto tais não eram inalcançáveis, nem inconciliáveis, e que a miséria, vício e loucura humanos deviam-se principalmente à ignorância em relação àquilo em que essas finalidades consistiam ou dos meios para alcançá-las – uma ignorância devida, por sua vez, ao conhecimento insuficiente das leis da natureza” [1]

De modo generalizado, Hamann se opõe quase instintivamente a todos esses pontos listados acima. Curiosamente, porém, embora tenha se voltado contra os ateus e agnósticos que se opunham à fé cristã, Hamann encontrou no pensamento de Hume um de seus maiores aliados contra a epistemologia racionalista. Se suas interpretações da filosofia de Hume são as mais acertadas e justas é coisa que presentemente nos escapa. Para Hamann, no entanto, David Hume, inimigo ferrenho do cristianismo, mostrava-se como o profeta Balaão, o adversário dos judeus que, no entanto, profetizara (a contragosto) bênçãos ao povo eleito. Em resumo, o Mago do Norte parte da concepção humeana de que a crença é o fundamento do conhecimento que temos de nós mesmos e do mundo externo – motivo pelo qual não é possível a existência de razões a priori, e elemento ao qual se reduz todos os princípios, teorias e construções mais coerentes e elaborados de nossas mentes. Isto é, “acreditamos que há objetos materiais em nosso entorno que se comportam desta ou daquela maneira; acreditamos que permanecemos idênticos a nós mesmos no decorrer do tempo” [2].

Evidentemente há outras questões paralelas a esse entendimento de Hume, cuja análise extrapola nossas presentes intenções; o ponto central, entretanto, é que Hamann apropriou-se dessa crença basilar no mundo que nos é exterior, e mesmo em nossa identidade permanente, e utilizou-a como um aríete no seu projeto de destruição tanto do racionalismo especulativo quanto da metafísica tradicional.

Para Hamann, na interpretação de Berlin, “todas as proposições gerais assentam-se [na crença]. Todas as abstrações são, no final das contas, arbitrárias. Os homens fatiam a realidade ou o mundo de sua experiência conforme desejam, ou segundo estão habituados, sem qualquer garantia especial da natureza, que por sua vez não apresenta separações de um tipo a priori”. [3]

Nessa perspectiva, a existência precede logicamente a razão, de modo que aquilo que existe é primeiramente experienciado, e somente depois é demonstrado racionalmente. As estruturas racionais que construímos a partir dessa experiência primária não serão mais confiáveis, segundo Hamann, do que sua base original. Em suma, “existe uma realidade pré-racional; o modo como dela dispomos é, em última instância, arbitrário” [4].

Berlin e outros intérpretes da obra de Hamann mais do que prontamente assinalaram como essa percepção desemboca tanto no existencialismo (primeiramente em Kierkegaard, mas também em Sartre, embora com uma nítida divergência) quanto em Husserl – basta lembrarmo-nos de seu mundo da vida (Lebenswelt), o conjunto unificado de vivências pré-científicas. Nessa mesma época, curiosamente, Thomas Reid formulava, na Escócia, seu entendimento filosófico sobre o senso comum e o testemunho, também em parte divergindo do racionalismo.

Jacobi – um dos grandes admiradores e discípulos de Hamann, conforme já dissemos –, inquietava-se, como muitos de sua época, com “o abismo entre o coração e o cérebro”. Em suas palavras: “a luz está em meu coração, mas tão logo tente carregá-la para meu intelecto, ela se apaga”. Havia um dilema entre a sistematicidade fria e rígida da ciência e o mundo real; “entre a experiência direta do coração e as proposições gerais da razão ou da ciência”.

Hamann, numa das cartas que enviou a seu discípulo na tentativa de auxiliá-lo nessa questão, acusava os filósofos de terem personificado suas abstrações arbitrárias, gerando assim muitos dos problemas que os atormentam. Há, na filosofia deles (continua Hamann), uma confusão entre os símbolos e a realidade das coisas – toma-se a relação dos conceitos como se fosse um reflexo da relação entre os entes: “Para Hamann, a experiência direta é um dado concreto – a base de todo conhecimento verdadeiro da realidade. Seu inimigo é o sistema, que necessariamente é composto de palavras que denotam abstrações ou números. ‘Com números e palavras, pode-se fazer o que se quiser’. Todos eles são entia rationis, que os filósofos nos ensinaram a confundir com as coisas reais. Como essas filosofias trabalham? ‘Dividindo aquilo que a natureza uniu e unindo o que ela dividiu’. A análise desmembra (embora não possa destruir), e a síntese combina (embora literalmente não possa fundir)”. Em suma, o mundo não conhece as divisões e as sínteses que o pensamento tão proficuamente elabora.

O cerne da crítica de Hamann aparentemente é o reducionismo antropológico e cósmico dos iluministas. Dito de outro modo, Hamann defende que o pensamento filosófico não é a identidade humana (como, grosso modo, se dá em Descartes), mas parte ínfima dela; o raciocínio humano pressupõe uma série de outros fatores que são arredios à dissecação teórica, incluindo fatores orgânicos [5]. De semelhante modo, para Hamann, esses pensadores cingiam o mundo com uma carapaça matemática, e com isso julgavam dominá-la e compreendê-la. Todavia, a natureza ou cosmo, enquanto criação divina, é dinâmica e viva. “A linguagem da natureza não é a matemática – Deus é um poeta, não um geômetra”, dizia ele.

Evidentemente, os signos convencionais são-nos necessários; porém é preciso ter em mente que são irreais, isto é, não são inerentes ao real. O maior erro do mundo é, segundo Hamann, “confundir palavras com conceitos e conceitos com coisas reais”. O filósofo ataca assim diretamente a ideia por trás da célebre frase de Lessing, segundo a qual “verdades históricas e contingentes jamais podem se tornar uma prova das verdades necessárias e racionais”.

Ora, a paixão desses filósofos por abstrações os conduziu à reificação das relações, especialmente as do tempo e do espaço. “O tempo chega até nós na cadência da música, nos ritmos de nossos batimentos cardíacos e da respiração, sendo pois diretamente perceptível, e não uma forma do entendimento, como Kant o queria”. Ademais, para Hamann, nada é inteligível senão em suas relações, pois o mundo se sustenta por meio de “fios que não podem ser rompidos sem que se fira a este ou aos demais”, e esta percepção se dá somente em cada particular.

Hamann também entende que o próprio Deus se faz presente em cada fibra e nicho da experiência humana. O desenvolvimento dessa sua ideia levou-o próximo ao ocasionalismo de Malebranche. Esse posicionamento, no entanto, é interessante na medida em que mostra sua ênfase na circunstância, no elemento concreto e único da vida humana, que é quase sempre excluído na racionalização. É por isso que identifica o posicionamento filosófico de seus opositores como essencialmente um produto da crença, do apego a um dogma, em nada diferente dos teólogos. Há aqui, embrionariamente, o entendimento das raízes irracionais, ou mais acertadamente pré-racionais, das ideologias. Pois os sistemas racionalistas pautam-se numa na unidade lógico-matemática do mundo e na supremacia da razão no homem.

Por fim, como Hamann se pautava sempre na singularidade, a universalidade de princípios jamais seria alcançada pela razão nem derivada da natureza; antes, é uma propriedade exclusiva da revelação. Numa de suas descrições pitorescas, o filósofo diz que “a estamina e o mênstruo de nossa razão são a revelação e a tradição, somente”. As implicações desses elementos para uma epistemologia antimoderna, assim como a relação deles com a teoria de Hamann sobre a linguagem, serão, no entanto, trabalhadas em outro ensaio.

Notas

[1] Isaiah Berlin, Three Critics of the Enlightenment: Vico, Hamann, Herder. Princeton: Princeton University Press, 2013.

[2] ibid.

[3] ibid.

[4] ibid.

[5] É essa qualidade orgânica dos escritos de Hamann que em grande medida influenciará o pensamento de Eugen Rosenstock-Huessy. E é essa organicidade, juntamente à sua visão assistemática do mundo, que valeu a Rosenstock-Huessy a alcunha de o novo Mago do Norte.

Leia as outras partes de Os Antimodernos – Hamman, o Mago do Norte

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