por Vinícius Müller
Uma das mais engrandecedoras atividades entre aquelas relacionadas ao hábito da leitura é a possibilidade de relermos obras que causaram grande impacto em nossa formação. Ler algo até então desconhecido, descobrir um novo interesse em uma obra de um jovem autor, aguardar o lançamento do novo livro de um velho e conhecido autor. Todas essas são experiências muito relevantes para aqueles que, por gosto ou compromisso profissional, tem nos livros sua fonte, matéria-prima ou mesmo seu fator de produção. Contudo, ler a mesma obra depois de dez ou vinte anos e perceber detalhes e trechos que na leitura original não ganharam relevância, talvez seja o ponto máximo daquilo que entendemos como aprendizado.
Em uma passagem memorável de sua obra A Conquista da América (Martins Fontes, 1983), Tzvetan Todorov, com a maestria habitual, identifica como o conquistador espanhol (não por nascimento, mas por vinculação), Cristóvão Colombo, viveu e representou um dos mais célebres problemas que o estudo da História – ou um modo de estudá-la – nos impõe: a dificuldade de determinar com precisão o que finaliza uma época, o que dá início a outra. Colombo, legítimo representante daquilo que seria a ascensão da técnica e do pensamento cientifico moderno sobre a religiosidade e a superstição medieval, era, concomitantemente, um devoto cristão que acreditava que suas aventuras e descobertas seriam fundamentais para a preservação e ampliação da instituição católica. Assim diz Todorov:
“Não só os contatos com Deus interessam muito mais a Colombo do que os assuntos puramente humanos, como também sua forma de religiosidade é particularmente arcaica (para a época). Não é por acaso que o projeto das cruzadas tinha sido abandonado desde a Idade Média. Paradoxalmente, é um traço da mentalidade medieval de Colombo que faz com que ele descubra a América e inaugure a era moderna.”
Confesso que, à época que tive contato pela primeira vez com a obra do escritor búlgaro, minha preocupação central voltava-se ao impacto, tratado pelo livro, que a chegada dos europeus na América provocou nas civilizações nativas. Essa leitura, muito significativa na minha formação acadêmica, estava certamente influenciada pelas aulas de Antropologia – às quais devotava grande interesse – somadas ao subtítulo do livro (A questão do outro), que escancara a presença de um tema clássico entre os antropólogos na obra de Todorov. Lembro-me da ênfase dada pelo professor ao comentar a obra em aula, e do fascínio que eles – a ênfase e o então pouco conhecido Leandro Karnal, o professor em questão – exerceram sobre o jovem estudante de História da América. Contudo, agora, depois de mais de vinte anos da primeira leitura, minha atenção voltou-se a esta aparente contradição representada por Colombo e destacada por Todorov.
Isso porque ela possibilita que outras três questões sejam apontadas. A primeira pode ser resumida pela ideia de que Colombo fez o certo pelo motivo errado. Ou seja, que ao ajudar a desenvolver parte significativa da tecnologia e do conhecimento que viabilizaram suas viagens, não o fez pensando no avanço e na modernização que isso poderia representar e inaugurar; ao contrário, o fez como meio para reforçar sua religiosidade medieval e arcaica, nas palavras de Todorov. Essa questão só é possível de ser apresentada se adotamos uma hierarquização moral, em regra arbitrária, que estabeleça que alguns motivos são mais importantes do que outros. E, fundamentalmente, se associamos tais motivos ao modo como enxergamos a própria História: a religiosidade de Colombo era arcaica, medieval; seu conhecimento científico e naval eram avançados e modernos.
A segunda questão pode ser resumida pela ideia de que, ao hierarquizarmos moralmente os motivos, determinamos quais serão amplificados e quais serão escondidos. Ou seja, para aqueles que preferem destacar a religiosidade de Colombo, os motivos relacionados às ambições econômicas, assim como os avanços científicos determinantes ao sucesso da expedição liderada por ele, são menos importantes. E, portanto, devem ser omitidos. Contrariamente, aqueles que não se identificam com a questão religiosa, destacam o quanto Colombo esteve vinculado ao renascimento científico do século XV e que sua persistente religiosidade é de menor relevância ao processo histórico posterior. Em suma, a hierarquia moral que fazemos dos motivos acaba por nos autorizar a divulgar aquele que nos parece superior e omitir ou calar aquele que nos parece inferior ou menos relevante.
A terceira questão, por sua vez, apresenta a possibilidade de, ao contrário das outras duas, olharmos os motivos não de modo hierarquizado e passível de maior ou menor publicidade, mas sim para como um influencia ou alimenta o outro. Nesse caso, é interessante notar como a permanência de certa religiosidade medieval foi um estímulo ao avanço do conhecimento científico moderno. Ao assumirem que a Natureza havia sido criada por Deus, cientistas buscavam entender o funcionamento da natureza como se buscassem entender o comportamento de Deus. E essa natureza podia ser tanto o mar, o sol, a lua e as estrelas, como também os humanos. Daí para a especulação sobre os elementos da natureza humana foi um passo. Ou seja, foi a complementariedade e a relação simbiótica entre os dois lados aparentemente contraditórios de Colombo que não só possibilitaram que ambos sobrevivessem como também avançassem. E foi essa combinação entre sobrevivência e avanço que nos deu o Renascimento cultural e científico, o humanismo e a modernidade.
Contudo, há um risco na conclusão referente à combinação e troca de influências entre motivações variadas e aparentemente contraditórias. No caso do Renascimento e do surgimento da modernidade, a simbiose entre os traços mais resistentes da religiosidade medieval, por um lado, e o avanço científico e do humanismo, por outro, produziu a arte italiana, o comércio no Mediterrâneo e a integração global. Mas, também promoveu ou possibilitou a conquista violenta das populações nativas da América, a ampliação da escravidão e do tráfico de africanos e o Imperialismo.
Em outros termos, não é a hierarquização moral, que estabelece que alguns motivos – os meus ou aqueles com os quais me identifico – que nos ajuda na criação de uma sociedade melhor. Ao contrário, ela é, em geral, arbitrária. E, acaba por justificar a omissão das partes consideradas ruins ou inferiores e a valorização ingênua ou exagerada do que alguns definem como sendo superior. O que nos ajuda é a percepção de que os elementos que definimos como contraditórios são, muitas vezes, complementares. E, mais importante, que esta simbiose produz novas situações marcadas por ganhos e perdas. Nosso papel, portanto, é reconhecermos esta complementariedade em seus resultados variados, assim como trabalharmos para minimizar os seus efeitos ruins e, consequentemente, aproveitarmos os bons. Isso sim nos faz avançar. E não a gritaria que tenta impor valores supostamente superiores sobre aqueles que representam o ‘outro’. Aquilo, e não isso, foi o que possibilitou a superação da Idade Média e o surgimento da modernidade. Ou, ao menos, a parte da modernidade que devemos preservar e valorizar.
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