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Entrevista com Tzevetan Todorov

Entrevista concedida a Eduardo Wolf

Em setembro de 2012, tive o privilégio de entrevistar o teórico da literatura, filósofo e historiador das ideias Tzevetan Todorov. 

Todorov veio ao Brasil para palestrar no Fronteiras Do Pensamento à época do lançamento de seu livro “Os inimigos íntimos da democracia”, publicado pela Companhia das Letras, e pude conversar com ele longamente sobre sua carreira, sua obra, sua visão de mundo. O resultado foi publicado no volume “Pensar a Cultura”, organizado por Cassiano Elek Machado para a série “Pensar” da Arquipélago Editorial, coordenada por Tito Montenegro. Com autorização da editora, publicamos aqui no Estado da Arte – Estadão a íntegra da entrevista. Um singela homenagem que prestamos a esse grande humanista que nos deixou ontem, aos 77 anos, vítima de um câncer. 

O teórico da literatura, filósofo e historiador das ideias Tzevetan Todorov

A imagem pode soar batida, mas nem por isso é menos verdadeira: poucas figuras encarnam tão bem o ideal do intelectual com efetivo trânsito pelas “fronteiras do pensamento” como Tzvetan Todorov. Búlgaro de nascença, cujo pai já estudara filologia e literatura; francês por vocação e cidadania, fortemente ligado à divulgação dos formalistas russos a partir dos anos de 1960; figura central do estruturalismo e da semiótica; autor de celebrada obra como historiador das ideias; arguto comentador das questões de seu tempo, ontem e hoje, Todorov oferece a seu leitor cinco décadas de variada produção em que a constante é a qualidade e a inteligência, sempre combinadas à honestidade intelectual e à coerência para além da superfície. Nele, a ideia do pensador sem fronteiras cobre vida, obra e atitude pública.

Nascido em Sófia, Bulgária (1939), Todorov fez seus estudos na área de Letras ainda em sua terra natal, então sob a égide do regime socialista autoritário vigente nos países do Leste Europeu. A possibilidade de estudar por certo período em Paris, em 1963, abriu todo um novo capítulo em sua vida: não apenas ali acabaria instalando-se definitivamente como, mais que isso, travaria contato com uma geração de intelectuais notáveis que mudaria os rumos do pensamento francês, mas não apenas. De fato, o nome de Tzvetan Todorov entraria para a história associado ao pensamento estruturalista francês, em voga em todo o ambiente acadêmico ocidental nas décadas de 1960 e 1970 e até hoje um elemento central da vida intelectual do século 20. Foi nesse ambiente, ligado a figuras como o antropólogo Claude Lévi-Strauss e ao também crítico e teórico da literatura Roland Barthes (seu orientador, aliás), entre outros, que Todorov fez sua reputação: desde a publicação de seu primeiro livro com a tradução dos textos clássicos dos formalistas russos (Théorie de la littérature: textes de formalistes russes, 1965) divulgando a obra dos formalistas russos, passando por obras como Littérature et signi cation (1967), Teorias do símbolo (1977) e Simbolismo e interpretação (1978), Todorov deixou uma marca perene nos estudos literários.

Não bastasse a versatilidade e a acuidade com que este búlgaro examinava clássicos franceses e ingleses como Choderlos de Laclos e Henry James à luz dos esquemas da poética estruturalista e da semiótica, os anos 80 viram-no dar uma guinada em seu trabalho que não seria menos profícua. Com efeito, A conquista da América (1982), em que o autor encara a questão da alteridade a partir da peculiar experiência da colonização espanhola na América Central, é obra que nasceu clássica, e assim os anos seguintes o provaram. Mais que uma original contribuição ao campo da História das Ideias, o livro abria também um novo front de atuação de Todorov, que nos anos seguintes viria a se consolidar mais e mais como um pensador do que como simples teórico da literatura: ensaios sobre Jean-Jacques Rousseau (Frêle bonheur: essai sur Rousseau, 1985) e sobre Benjamin Constant (Benjamin Constant: la passion démocratique, 1997); sobre a pintura holandesa do século 17 (Éloge du quotidien: essai sur la peinture hollandaise du XVIIe, 1993) e sobre o pensamento humanista francês (O jardim imperfeito: o pensamento humanista na França, 1998); enfim, todo um imenso campo de interesses entra na órbita de considerações do autor.

A política, ou melhor, a inteira esfera do que é político, obviamente não poderia ter escapado aos interesses de pensador tão fecundo. E foram tais interesses que estiveram no centro das atenções da conferência de Tzvetan Todorov no Brasil em 2012 no Fronteiras do Pensamento. Lançando seu livro Os inimigos íntimos da democracia, Todorov oferece uma ampla análise do fenômeno do messianismo político que, a seu ver, ameaça a própria ideia de democracia, ainda que lhe acompanhe como um mal de nascença. Exibindo uma erudição nunca gratuita, o autor vai buscar nas tensões entre agostinianismo e pelagianismo, no remoto século V de nossa era, a fonte de certos perfis psicológicos e políticos que parecem animar ainda hoje o pendor messiânico de líderes democráticos — traço este, aliás, que partilhariam com o jacobinismo do Terror e mesmo com as experiências totalitárias do comunismo ao longo do século 20.

Provocador, mas não apenas pelo gosto da polêmica; instigante, mas sem se perder na superficialidade de meras sugestões, Todorov mobiliza, em seu último trabalho, seu arsenal intelectual para pensar os dilemas mais candentes da vida contemporânea. Da invasão americana no Iraque aos problemas do multiculturalismo europeu, seu livro, assim como sua conferência no Fronteiras do Pensamento, dão mostras da vivacidade da tradição esclarecida francesa: um pensamento vivo, tomando a realidade humana como objeto e apresentando-se para o debate público.

Todorov falou ao Fronteiras em setembro de 2012, quando de sua passagem por São Paulo, em depoimento que repassa sua formação e sua obra e tenta revelar os condutores desse pensamento que marcou época e fez escola.

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Eu gostaria de começar com uma pergunta a respeito de sua formação acadêmica ainda na Bulgária. Os formalistas russos faziam parte do currículo? Eles já haviam sido reabilitados pelo regime, então, no final dos anos 50? Pergunto isso porque você teve um papel fundamental na divulgação dos trabalhos deles para um público maior.

Tzvetan Todorov – Não, de modo algum. Eles eram completamente ignorados. Eles tinham sofrido com a repressão, no final dos anos 20; seus livros tinham sido perseguidos e, na verdade, não estavam em circulação. Eles não eram conhecidos. Os primeiros livros dos formalistas russos que eu vi foram na biblioteca de meu pai, que tinha sido estudante de filologia e de estudos literários no início da década de 20, de modo que, por puro acaso, ele tinha alguns livros em russo e alguns deles calharam de ser dos formalistas. Mas, naquela época, eu não compreendi claramente, não tive uma ideia precisa sobre o formalismo russo. Isso eu só vim a adquirir alguns anos depois, quando eu li uma obra escrita em inglês, Russian formalism [1955], de Victor Erlich, que foi o primeiro estudo profundo sobre o tema, um livro que foi realmente como uma revelação, nesse sentido.

E em que consistia o currículo de Letras na sua época? Como foi a sua formação?

Todorov – O currículo era basicamente ideológico. Nós estudávamos a literatura búlgara ou eslava em geral para mostrar que o espírito do povo estava presente naquelas obras em questão, ou então mostrar que o espírito do partido ali se fazia sentir. Isso obviamente só poderia se aplicar a obras e a autores recentes, que tivessem vivido em um período em que o Partido Comunista, ou ao menos a ideologia comunista, já existisse. Era algo muito estreito, didático.

Então a ideia típica do formalismo, segundo a qual a poesia é entendida como uma linguagem autônoma, como tendo uma natureza ‘autotélica’ da linguagem poética, tal como a encontramos nos formalistas russos…

Todorov – Veja, já na época dos meus estudos essa não era uma ideia que nos estivesse disponível. Era algo que se encontrava, sem dúvida, nos formalistas russos e mesmo em outras fontes…

Como na tradição romântica…

Todorov – Exato, como na tradição romântica, de um modo mais poético. Mas já não era uma ideia que se encontrasse em circulação em meu tempo, afinal, você lembra da definição de escritor dada por Stálin, que eles eram os “engenheiros da alma humana”. A literatura era simplesmente uma maneira de educar as massas, e não uma atividade autocentrada.

Claro. Agora, eu perguntei isso pelo seguinte: parece-me que quando você chega a Paris para estudar você já tem um excelente domínio de análise textual, do trabalho com o texto literário, uma certa noção do que fazer com ele. De onde vinha esse traquejo analítico-formal? Você, de algum modo, aprendeu isso na Bulgária? Ou era alguma espécie de herança da formação de filólogo de seu pai, talvez?

Todorov – Não, eu não diria isso. É bem verdade que, quando eu cheguei a Paris, eu já tinha uma certa atração por essas ideias [acerca do texto literário], mas eu não tinha ideias claras a respeito disso. Lembro-me de ter lido Teoria da literatura (1948), de Wellek e Warren, uma espécie de manual de teoria literária em inglês que havia sido escrito sob a influência indireta do formalismo russo e do estruturalismo checo, porque René Wellek vinha desse ambiente. E essas ideias foram, aos poucos, tomando forma para mim, ali por volta de 1963, até 1965, mais ou menos. Eu diria que ainda em 1965 eu não tinha clareza do caminho a seguir, mas por essa época eu já estava para publicar a minha antologia de textos dos formalistas russos traduzidos para o francês, que foi o meu primeiro trabalho acadêmico. Foi no processo desse trabalho que as diferentes concepções de literatura e dos estudos literários começaram a ficar mais claros para mim. Na verdade, eu diria que foram necessários ainda alguns anos para que eu realmente apreendesse as relações e os sentidos das teorias que eu vinha estudando.

Quando você chegou a Paris, no início dos anos 60, você tinha alguma ideia do tipo de interesse intelectual que o formalismo russo suscitaria? Parece-me que, no fim das contas, veio a quadrar bem com o tipo de estudo que seria desenvolvido pelos franceses no período.

Todorov – Sim, quadrou bem, mas eu não tinha nenhuma ideia de que encontraria o interesse que acabou tendo. Na verdade, foi um longo e laborioso processo o de encontrar pessoas com os mesmos interesses. Uma vez encontradas essas pessoas, como Gérard Genette e Roland Barthes, com as quais passei a ter um ou outro tipo de convívio, surgiu a ideia de que eu traduzisse os textos dos formalistas russos, o que resultou na antologia que eu mencionei.

Um conceito central em uma teoria como a do formalismo russo era o de “materialidade” do texto literário. Hoje em dia, nós assistimos, não sem alguma perplexidade, novas tentativas de analisar os fenômenos estéticos e literários em termos de sua “materialidade”. É o caso da neurociência aplicada à análise da obra de arte. A diferença é que, agora, a “materialidade” está no cérebro do sujeito que lê uma obra, e não mais na obra propriamente: o que se analisa agora é uma imagem de ressonância magnética do cérebro de um leitor de Proust, por exemplo. Você está familiarizado com esse tipo de abordagem, que é sobretudo americana?

Todorov – Não, na verdade eu estou familiarizado apenas com as críticas a esse tipo de trabalho, como por exemplo um livro de Eugene Goodheart que trata das tentativas de abordagem biológica não apenas da interpretação literária, mas também da história da filosofia e das humanidades em geral [Darwinian misadventures in the humanities, 2009]. Eu não acredito que uma coisa possa substituir a outra. A interpretação da obra literária não pode ser reduzida a simples reações cerebrais, há um fosso entre uma e outra coisa. Talvez um dia, em um futuro bastante distante, nós sejamos capazes de ligar as duas coisas e de descobrir exatamente que neurônios são ativados por que imagem literária, mas estamos muito distantes disso.

Voltando ao formalismo e ao círculo linguístico de Praga, parece-me que ali se trabalhava com uma perspectiva quase científica, quando não estritamente científica, da linguagem, digamos, uma abordagem antimetafísica, talvez. Essa atitude não é muito diferente daquela que encontramos no círculo de Viena no que diz respeito à filosofia, e que ficou marcado pela expressão “positivismo lógico”. Não lhe parece surpreendente, considerando certas semelhanças nos projetos de um e de outro grupo, que as ideias do círculo de Praga tenham se adaptado tão bem no ambiente francês, ao passo que as ideias do positivismo lógico em matéria de filosofia não foram e não são bem vistas ali?

Todorov – Bem, eu não estou seguro de que isso nos dê todos os elementos para recompor o quadro do que realmente aconteceu. Por exemplo, você sugere que as ideias do círculo linguístico de Praga foram amplamente aceitas na França, e isso me parece, vendo as coisas à distância, um exagero. Essas ideias eram bem aceitas em um círculo muito estrito de intelectuais em Paris, linguistas, por exemplo. Quer dizer, era algo bem aceito por vinte pessoas. Por outro lado, creio que sempre houve uma diferença de orientação entre filosofia e ciência. A filosofia não é uma ciência; é uma reflexão acerca dos princípios sobre os quais se baseiam, por exemplo, a existência humana, ou o conhecimento humano. A filosofia não pode ser substituída pela ciência. Quer dizer, é normal que nos meios científicos exista um certo positivismo, mas a filosofia continuou a ser mais propriamente uma atividade especulativa, e não essa coisa reducionista da análise da proposição em sua estrutura lógica, como queria o positivismo. E veja bem, isso é verdadeiro, por exemplo, acerca da filosofia alemã, também, não apenas da francesa: mesmo no quadro alemão — e não nos esqueçamos que [Rudolph] Carnap, [Moritz] Schlick e outros dos principais nomes do positivismo lógico eram alemães, ou de países de língua e cultura alemãs —, a filosofia não se tornou o que o positivismo lógico propunha.

Sim, parece que, ao menos em algum sentido, Wittgenstein já tinha percebido que o projeto de seu Tratactus logico-philosophicus havia sido mal compreendido pelo pessoal do círculo de Viena…

Todorov – Sim, sim, pensemos na mudança do primeiro para o segundo Wittgenstein, por exemplo. Mas veja, eu não sou propriamente um historiador da filosofia, e sim um historiador das ideias. Estou falando da minha impressão, apenas…

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Em seu livro de memórias, O homem desenraizado (1996), você dedica alguns dos últimos capítulos a um panorama da tradição americana de teoria e crítica literárias, oferecendo ao leitor um excelente “estado da questão” relativamente a essas atividades nos Estados Unidos. Ali você critica algumas das principais tendências da teoria e da crítica nos Estados Unidos — o pós-estruturalismo, o desconstrucionismo, certa crítica marxista — como sendo, todas elas, variedades de anti-humanismo. Mas você não concordaria que o estruturalismo francês, do qual você foi uma das estrelas, também seria culpado dessa acusação? Também o estruturalismo não recusava uma abordagem humanista do fenômeno literário?

Todorov – Sim, acho que você está certo, exceto pelo seguinte: o estruturalismo não tinha a pretensão de dar conta de todo o fenômeno literário, de cobrir todo esse domínio — diria mesmo que não tinha a pretensão de ter uma opinião acerca do fenômeno literário. Nos trabalhos de meus amigos de então, como Genette, e mesmo no meu trabalho, nós não afirmávamos coisas como “o homem morreu” [como Foucalt o afirmou], ou que tudo deve ser “desconstruído”, e coisas do gênero. Isso não parecia ser nosso papel. Antes, nossa função era levar em consideração os textos e tentar mostrar como eles funcionavam. Contudo, vendo as coisas a distância, eu concordo com o seu ponto, tratava-se, também no nosso caso, de uma perspectiva não humanista. Nós como que desconsiderávamos que tais textos haviam sido produzidos por seres humanos em certos contextos, com certas intenções etc. Já a crítica de [Mikhail] Bakhtin dirigida ao formalismo russo — e estamos falando do final dos anos 20 — apontava para essas diferenças, para essas nuanças. A grande presença de Bakhtin nos anos 80, por exemplo, de certo modo procurava superar tais limitações do formalismo e do estruturalismo.

Especificamente no caso do estruturalismo francês, essa perspectiva não humanista, como você colocou, era uma reação ao existencialismo então dominante?

Todorov – Sim, claramente. Ao menos em casos como o de Lévi-Strauss, que foi o representante mais influente do estruturalismo na França, e mesmo o seu líder. Mas creio que seja um caso diferente do meu e de alguns de meus colegas da área de literatura: nós não defendíamos o estruturalismo enquanto tal, nós estávamos interessados em estruturas literárias, o que é diferente: nosso foco não estava no método, mas no objeto, ou seja, nos textos literários. Agora, Lévi-Strauss, de fato, engajou-se em um debate filosófico com Sartre e o com existencialismo sartreano; na obra de Strauss, sim, eu creio que se encontram alguns enunciados tipicamente anti-humanistas.

Você chegou a escrever certa vez que tinha um forte interesse por questões teóricas mais gerais, mesmo quando você estava lidando com livros inteiros, ou ensaios inteiros dedicados a uma única obra — fosse Laclos, fosse Henry James. Isso contrasta com sua atitude recente, como seu pequeno livro A literatura em perigo, em que você parece frisar que o importante é o prazer com os textos particulares.

Todorov – Certamente, mas não só isso: o prazer com a leitura de textos particulares, mas também insistir na compreensão do significado dos textos — os textos têm sentidos, do contrário não seriam textos. Esse é o objetivo final de qualquer leitura, e qualquer teoria será completamente inútil se ela não puder nos dizer nada sobre o sentido, sobre o significado de As flores do mal, ou de Madame Bovary. Essas obras têm certos propósitos, e compreendê-los é algo que requer interpretação. É verdade que no passado o nosso horizonte não era a interpretação de um texto, mas a identificação de traços gerais do discurso literário, ao passo que agora, ao tratar de uma obra literária particular eu tento analisar algumas questões mais gerais — essa dicotomia do geral e do particular ainda valeria hoje —, só que agora essas questões não são mais relativas à linguagem, e sim ao comportamento humano. Eu mudei o meu foco para questões morais, políticas. Por exemplo, em um de meus livros mais recentes, A beleza salvará o mundo, há uma interpretação de O idiota, de Dostoiévski. É claro que eu analiso as tensões internas ao texto, seu funcionamento, mas o que eu me proponho a entender é o tipo de pensamento que anima aquela obra, ou o que o personagem do Príncipe Myshkin representa, o que ele significa para nós. Ou seja, ainda há um interesse em algo que é mais geral do que a própria obra particular, como você notou acerca dos meus trabalhos anteriores, mas agora esse interesse é de natureza diferente: não se trata mais de questões gerais de teoria literária.

Em Critique de la critique, você escreveu que o livro fazia parte de um projeto maior que havia começado com Teorias do símbolo (1977) e Simbolismo e interpretação (1978), mas que, entrementes, um tema diferente — o tema da alteridade — tornara-se o ponto focal de sua pesquisa. A referência, é claro, é a obras como A conquista da América (1982). Qual é a unidade, se é que há alguma, por trás de livros como esses? Consideradas as coisas em perspectiva, você pensa que eles quadram bem com o conjunto de seu projeto intelectual? Parece-me, como leitor, que há uma “unidade na multiplicidade” em sua vasta obra…

Todorov – Bem, houve claramente uma virada, um desvio, digamos assim, em meu itinerário intelectual. Eu costumo ver da seguinte maneira: os primeiros dez anos da minha vida na França foram dedicados à elaboração de um instrumento — um instrumento de leitura, um instrumento para a análise de textos. Depois houve um curto período de transição, no qual eu basicamente escrevia livros de história da crítica e da teoria literária — é a tal período que pertencem os livros do “projeto” que você mencionou ao me citar: Teorias do símbolo, Simbolismo e interpretação, Critique de la critique. São todos livros que contam a história de teorias e de teóricos da literatura. São livros de história das ideias, mesmo que sejam ideias todas muito recentes. Por fim, a mudança após tais obras está em que eu decidi que esses instrumentos analíticos que eu havia elaborado precisavam ser utilizados, em vez de seguir sempre os aperfeiçoando, preso em questões metodológicas. Eu perdi o interesse em questões metodológicas, de certa forma; o que eu queria era ver o que poderia ser feito com esses instrumentos. Eles deixaram de ser o fim e passaram a ser o meio. O caso de A conquista da América é emblemático, nesse sentido, pois de certo modo ainda estava me valendo da perspectiva semiótica anterior, porém agora aplicada a um objeto completamente diferente, que era o encontro de culturas — naquele caso, historicamente situada na conquista e na dominação da América Central do século 16. Dali em diante, todos os meus livros — com exceção de Critique de la critique, que era, como você bem lembrou, parte de um projeto anterior — têm sido sobre o mundo, e não sobre os modos pelos quais analisamos o mundo.

Deixe-me avançar um pouco nessa leitura entrelaçada de sua obra, pois parece-me que há uma estreita conexão entre sua obra como teórico da literatura e linguista, de um lado, e de outro suas preocupações com a questão da alteridade, tal como você mostrou no caso de A conquista da América, mas também parece haver uma conexão entre esse interesse no problema do outro, que surge, digamos, numa etapa intermediária de sua obra, e seus trabalhos mais recentes, dedicados a questões de história e política, não sem algum interesse pela antropologia. Estou pensando, por exemplo, em O medo dos bárbaros (2010) e Os inimigos íntimos da democracia (2012). Nas obras mais recentes, contudo, o instrumental teórico parece ter sido abandonado. Como você analisa essa conexão?

Todorov – Não, a questão é que o instrumental teórico, como eu mencionei antes, tornou-se não indiferente, mas certamente deixou de ser central, deixou de ser uma medida e uma orientação. Já a alteridade, de fato, tornou-se um dos eixos do meu trabalho, desde A conquista da América até os livros mais recentes, mesmo no caso deste último, Os inimigos íntimos da democracia. O livro anterior, O medo dos barbáros, por sua vez, é uma espécie de ensaio preparatório de Os inimigos…, mas também um retorno, mais uma vez, a temas sobre os quais eu tenho refletido já há bastante tempo. Então há essa continuidade. Mas, nesse meio tempo, outros fragmentos do mundo ganharam a minha atenção, como a oposição entre democracia e totalitarismo, que se tornou muito importante para mim, e, a seguir, mais e mais uma espécie de crítica dos perigos inerentes à própria democracia ou à ideologia do Iluminismo — o que são coisas muito semelhantes, pois há uma relação muito próxima entre o pensamento iluminista e a teoria democrática. Esses temas não estão mais relacionados à teoria literária sob nenhum aspecto, talvez nem mesmo à alteridade, ao menos não necessariamente.

O abandono da ideia de “estrutura” nessas suas investigações mais recentes também poderia estar ligada à impossibilidade de apreender na totalidade — como as estruturas o fazem, ainda que em um registro muito geral — o tipo de problema que você passou a enfrentar?

Todorov – Bem, certamente não se trata mais de apreender uma estrutura, mas sim de compreender um processo histórico. E nesse sentido meus livros tornaram-se cada vez mais históricos, em vez de procurar por uma solução correta ao longo da História. Eles perderam a ambição de procurar a palavra final em cada questão. No lugar disso, a ideia é tentar oferecer um entendimento de certos povos, em certas épocas. Meu último livro, Os inimigos íntimos da democracia, não oferece uma descrição de um modelo perfeito de democracia; ele descreve o modo pelo qual a ideia de democracia, tal como elaborada em seus primórdios, tem sido corrompida internamente.

Em O homem desenraizado percebe-se uma certa aproximação intelectual de figuras como Benjamin Constant (sobre o qual você logo depois escreveu o ensaio Benjamin Constant: la passion démocratique) e Raymond Aron, distanciando-se de outros nomes, como Marx ou Sartre…

Todorov – Marx e Sartre nunca foram exatamente “a minha praia”.

 …e em seu último livro, Os inimigos íntimos da democracia, você oferece uma análise surpreendentemente positiva de um autor conservador como Edmund Burke, por exemplo. Essas referências intelectuais parecem-me pouco comuns no ambiente intelectual francês, ao menos quando se pensa em nomes como Bernard-Henri Lévy ou Alain Badiou, que são figuras eminentes no debate público francês. Você se sente confortável nesse meio?

Todorov – Eu não me importo nem um pouco com Bernard-Henri Lévy e com Alain Badiou. Em absoluto.

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Em seu último livro você oferece uma interpretação do Humanismo e do Iluminismo na França que é muito peculiar: Montesquieu e Rousseau parecem sair imunes das críticas que você apresenta no restante do livro a outros pensadores políticos. Para usar seus próprios termos, eles representam como que uma síntese entre pelagianismo e augustinianismo — as duas tendências que você analisa na primeira parte do livro e que estão na origem, em certo sentido, de dois impulsos inerentes à experiência democrática. Contudo, essa é uma tese forte e eu diria controversa, sobretudo em relação a Rousseau: alguns intérpretes tendem a ver nele justamente o tipo de pensador responsável pelas ideias messiânicas em política que você critica em seu livro — digamos, veriam nele uma espécie de pai intelectual do Terror da França revolucionária…

Todorov – Sim, essa interpretação foi muito comum durante algum tempo, Rousseau como pai do Terror na Revolução Francesa, muita gente escreveu sobre isso, é verdade. Contudo, já há bastante tempo foi demonstrado — e não por mim, mas por historiadores e comentadores especializados — que essa é uma interpretação insustentável. Era uma interpretação que consistia basicamente em tomar algumas sentenças da obra de Rousseau, descontextualizá-las e aplicá-las a acontecimentos que ocorreram vinte, trinta anos mais tarde, tentando estabelecer uma relação causal direta. Penso que, lida em seu contexto, a obra de Rousseau é bastante diferente; na verdade, Rousseau jamais promoveu a ideia de Revolução. Pelo contrário, tratava-se de um caráter bastante conservador, embora Robespierre alegasse estar aplicando as ideias de Rousseau, mas certamente estamos falando de uma leitura extremamente tendenciosa, como nós podemos avaliar hoje. A filosofia política de Rousseau passou realmente por um grande revival. Até meados do século 20, ele era considerado apenas de maneira condescendente, do ponto de vista de seu lugar na história da filosofia. Foi apenas por essa época que as pessoas voltaram a levá-lo a sério, tentando ver qual era o sistema por trás da cena. Há uma obra de um historiador das ideias muito importante na França, Victor Goldschmidt, Rousseau: anthropologie et politique, que é fundamental para pensar Rousseau em outros termos. Também nos Estados Unidos, alguns teóricos como [Leo] Strauss e seus discípulos realmente mostraram as complexidades do pensamento de Rousseau.

Eu tenho dificuldade com a interpretação tradicional de Rousseau, não apenas quanto a esse ponto. Rousseau é usualmente apresentado como uma espécie de teórico do homem a-social, ou não social, ao passo que uma leitura mais detalhada e cuidadosa de seus textos vai nos mostrar que, embora em sua vida ele fosse, de fato, um sujeito com uma espécie de agorafobia, sua teoria afirma claramente que a identidade humana depende da sociabilidade. Outra acusação frequente é a de que Rousseau seria um defensor do “bom selvagem”, acreditando que os seres humanos, no início, eram a encarnação do Bem. Na verdade, esses seres humanos iniciais no Segundo Discurso de Rousseau são os predecessores pré-humanos de nossa espécie; eles são bons, mas não em um sentido oposto ao de mal — eles apenas ignoram as noções de Bem e de Mal. Os homens só se tornam propriamente humanos com a dependência uns dos outros, com a dependência do olhar do outro.

Enfim, há um longo debate sobre essas questões. Rousseau é um autor difícil, porque não se trata de um autor sistemático. Mas creio que aquela imagem outrora popular sobre a qual falávamos no início não se sustenta.

Também Kant parece ser um autor importante para estabelecer o quadro de suas análises, sobretudo na sua ideia de que é possível estabelecermos bases comuns de acordo, chegarmos a um “senso comum” no sentido daquilo que é “razoável”, que é uma ideia recorrente em alguns de seus trabalhos recentes, sobretudo quando você tenta formular um meio de fugir à dicotomia relativismo-dogmatismo.

Todorov – Sim, mas eu estou mais familiarizado com a obra de Rousseau do que com a de Kant. Mas Kant foi um leitor muito atento de Rousseau, e você tem razão, essa ideia de um senso comum é algo que se acha em Kant. Há um célebre parágrafo na Crítica da faculdade do juízo em que precisamente Kant desenvolve a ideia de “senso comum”, com a ênfase recaindo sobre a noção de “comum”, sobre o fato de que “entender” significa que eu sou capaz de projetar meu próprio pensamento em outras pessoas, no outro, e é essa espécie de absorção do outro que realmente dá a vocação do espírito humano. Kant não desenvolve muito isso, mas é uma passagem preciosa.

Em seu projeto de análise político-social quasi-kantiano, que busca defender noções como do que é razoável para todos, para emergir um obstáculo interno, a saber, a tendência antropológica (e a antropologia é uma de suas fontes de análise) a defender “a igual legitimidade de todas as culturas”, como você mesmo cita de Lévi-Strauss. O prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, em conferência aqui no Fronteiras do Pensamento, chamou a atenção para os dilemas que emergem dessa concepção não analisada de “cultura”, dessa atitude relativista. Como você encara essa dificuldade para seu projeto?

Todorov – Eu tentei lidar com esse problema em O medo dos bárbaros, há um capítulo sobre isso. Eu penso que nós precisamos de uma análise mais refinada, que não se concentre apenas na noção de “cultura”. Por um lado, o fato é que nós precisamos de um termo geral referindo-se a esses hábitos coletivos que constituem a identidade cultural dos grupos humanos; por outro, parece claro que isso não cobre as grandes realizações humanas em matéria de arte, de filosofia, e assim por diante. Então, é preciso algo mais. Eu diria que minha posição é, como você disse há pouco, um tentativa de conciliar juízos universais com a aceitação da pluralidade de culturas — recusar o relativismo e o dogmatismo. Porém, é um caminho muito estreito, pois se está sempre acossado pelo relativismo extremo e pelo dogmatismo extremo. Uma das fórmulas que eu tentei defender consistia em dizer que existe uma única civilização, mas muitas culturas. Civilização, em minha definição, é uma categoria única e absoluta, e nós podemos qualificar as diferentes culturas como sendo mais ou menos civilizadas, aproximando-se mais ou menos da ideia de civilização. Isso não chega a cobrir exatamente a questão dos juízos acerca da arte. Sobre isso, eu diria que seria absurdo não aceitar que há um acordo intersubjetivo acerca do valor mais elevado ou menos elevado de obras de arte. Como eu digo no livro, é mera hipocrisia não aceitar que Bach é maior e melhor do que, por exemplo, música folclórica.

Um dos tópicos que você discute em seu último livro, sobretudo nas seções finais, diz respeito à condição dos imigrantes em países como Inglaterra, França e Alemanha. Já em seu livro anterior você insistia que a ideia de aceitar o pluralismo não pode equivaler a “enclausurar” aqueles indivíduos em seus modos de vida de origem. Mas isso parece gerar uma dupla tensão: de um lado, você rejeita as críticas do multiculturalismo, mas essa “clausura”, essa “segregação” acabou sendo um dos resultados, com certos grupos rejeitando a ideia de se integrar à vida inglesa ou francesa, por exemplo; de outro, há um problema prático que surge desse fato: como integrar, como chegar “ao que é razoável” se os grupos em questão sequer querem aprender a língua do país, não querem assimilar a cultura, não querem ser avaliados na escola, etc.?

Todorov – Eu acho que isso é muito mais verdadeiro na Inglaterra do que na França. Eu penso que na França essa atitude é marginal, não é significativa, porque a França, tradicionalmente, tem sido um país marcado extremamente pela assimilação. Há aquela história de que cada criança nas colônias deveria imaginar ter como antepassado um gaulês, o que reflete um pouco o modo etnocêntrico francês de ver as coisas. Isso tem a ver com o que os franceses chamam de a “atitude republicana”, no sentido de que vivemos em uma república única, sob um mesmo projeto, e de que é necessário ter características comuns. Se eu me lembro bem, o governo britânico recentemente mudou a sua política em relação a isso, assinalando um abandono das políticas públicas multiculturalistas. Passaram a afirmar que é preciso haver uma espécie de culto dominante; que não é possível simplesmente justapor diferentes cultos e crenças; que é preciso haver algo comum a todos — por exemplo, que todos devem obedecer as mesmas leis, do contrário não se está falando de um país, mas de muitos. O que eu tento mostrar em meu último livro é que isso já está dado; os governos de David Cameron e de Angela Merkel, por exemplo, parecem querer rejeitar certas questões de ordem cultural confundindo-as com questões legais — é certo que todos os cidadãos da Inglaterra devem obediência às mesmas leis. Claro, por vezes as culturas e as leis podem entrar em conflito, mas a resposta, ao menos assim me parece, deve ser igualmente clara: a lei deve prevalecer. Essa é a condição para se pertencer ao mesmo país. Não se pode pensar que é possível, em um país Ocidental, que certos grupos de indivíduos possam ter três ou quatro mulheres legítimas porque essa é a cultura daqueles indivíduos, ou que os julgamentos de honra, tal como praticados em algumas variedades do islamismo, passarão a ser a aceitos legalmente porque tal é a cultura daqueles indivíduos — embora isso de fato tenha sido proposto, em certo período, na Inglaterra.

Seu novo livro fala em evitar o “caos libertário” e a “ordem dogmática”. Em O medo dos bárbaros você falava em evitar a dicotomia entre “Universalismo dogmático” e “Niilismo relativista”. Em O homem desenraizado você fala em recusar o desconstrucionismo e relativismo pós-moderno sem endossar uma noção dogmática do juízo estético. Mas já em Critique de la critique, que é de 1984, você dizia que iria “buscar elementos doutrinários que questionassem a estética e a ideologia ‘Românticas’, porém sem constituir um retorno a dogmas clássicos”. Esse constante esforço na busca de um ponto de equilíbrio, comum a sua análise literária e a suas análises políticas, poderia ser visto como algo definidor do seu projeto intelectual?

Todorov – Creio que sim. É uma atitude que existe na tradição, por exemplo em Montaigne, como eu cito em um dos meus livros. Ele divide os filósofos em três categorias: aqueles que sabem a verdade, aqueles que dizem que ela não existe e aqueles que seguem procurando. Eu faço parte desse terceiro tipo.

Eduardo Wolf

Eduardo Wolf é Doutor em Filosofia pela USP e fundador do Estado da Arte.