Augusto Del Noce: secularismo e tecnocracia na modernidade (Parte II)

Filósofo italiano analisa a sociedade contemporânea em chave crítica tanto de revolucionários, à esquerda, e de conservadores e reacionários à direita.
Composition III, de Wassily Kandinsky

por Fabrício Tavares de Moraes

As tentativas de definição da cultura moderna necessariamente pressupõem o estabelecimento de um ponto de inflexão na consciência histórica, mais precisamente uma transformação dos próprios critérios de análise da ação e cultura humanas ao longo do tempo. 

À vista disso, a questão mais premente que se apresenta ao crítico do mundo moderno talvez seja a transição de uma perspectiva cronológica para uma axiológica, isto é, a modernidade revela-se não somente como um dada periodização do fluxo histórico, mas também um salto qualitativo para uma instância superior ou inferior, que não admite retorno ou reconsiderações. Essa ruptura para com as ordens morais e filosóficas precedentes é, segundo Augusto Del Noce, a base da compreensão moderna do mundo. 

Segundo sua perspectiva, tanto a ordem cosmológica da filosofia antiga quanto sua apreensão (e absorção) cristã e medieval – que, na busca por uma síntese, retrabalhou o esquema clássico sob uma luz antropológica – foram superadas, e assim a humanidade como um todo move-se agora da infância para a maturidade (como nos esquemas de Fiori, Kant e Comte), do mito para a crítica, de modo que “a modernidade é vista como uma prova, oferecida pela própria história, da proposição de que o pensamento e a civilização se desenvolvem irreversivelmente da transcendência para a imanência”. [1]

Portanto, para Del Noce, a imanência torna-se o horizonte para todas as ciências e ações humanas. Para o filósofo italiano, porém, mesmo a posição “anti-moderna” se enquadra como um sintoma desse apagamento da transcendência, pois, afinal, ela “não critica a ideia de ‘modernidade’, mas inverte seu sentido axiológico, interpretando o desenvolvimento da modernidade como um processo direcionado não à totalidade, e sim ao niilismo” [2]. Essa visão manifesta-se em geral no neomedievalismo católico, que percebe no nominalismo (e em especial no discípulo de Gabriel Biel, nomeadamente Lutero) o início do processo de desintegração que hoje testemunhamos, ou na própria ideia de que a decadência do pensamento filosófico ocidental remonta a Platão, cujas ideias contaminaram progressivamente a tradição judaico-cristã (ecos deste posicionamento se encontram, surpreendentemente, tanto em Nietzsche e Heidegger [3] quanto no fundamentalismo hermenêutico moderno).

Entretanto, Del Noce cita um terceiro ramo antimoderno que brotava então em sua época: a posição que “tomou um sentido diferente [das duas anteriores] e se tornou a história de um processo de esquecimento do ser, que começou com Platão e envolve o próprio cristianismo. Esta atual postura antimoderna buscou sua inspiração em Nietzsche, que [para eles] não é o teórico do super-homem, mas o pensador que desvelou a vontade de potência do cerne da filosofia ocidental” [4]. 

Muito provavelmente esse movimento aludido por Del Noce trazia consigo a visão embrionária daquilo que posteriormente seria grande parte dos questionamentos e pressupostos dos pós-modernos, especialmente a suspeita para com a própria atividade filosófica e literária, vistas como ancilas do poder. 

O processo de absorção desse estado permanente de descrença por parte do progressismo, tão apontado hoje por vozes da direita, é, segundo Del Noce, um dos desdobramentos inevitáveis da própria filosofia marxista e, ao mesmo tempo, o princípio de seu desmoronamento, que dá lugar à sociedade da opulência. Para o pensador italiano, três linhas de pensamentos aparentemente incompatíveis se convergiram no iluminismo: a crítica libertina da tradição (a libertinage érudit); as visões naturalistas da lei e da religião que, partindo inicialmente de uma postura conciliatória entre fé e crítica, tomaram eventualmente uma forma revolucionária; e o espírito da nova ciência separada da metafísica. 

Essa frágil síntese entrou em colapso após o século XVIII, e assim o libertinismo transformou-se em decadentismo, o grupo revolucionário e naturalista cristalizou-se posteriormente no marxismo, e, por fim, a nova visão científica deu luz ao positivismo. São também as três linhas de pensamentos que formam o ateísmo moderno, essencialmente materialista. Portanto, para Del Noce, trata-se daquilo que Max Scheler definiu como “a substituição da ideia de homo sapiens, que é caracterizado por sua participação no Logos, pela ideia de homo faber. Essa substituição conduz à negação da ideia de que há uma natureza humana e à afirmação de que a práxis é a medida da verdade – duas consequências que, de fato, já se encontravam em Feuerbach e Marx. Isto, pois, leva à supremacia do poder, em todas as suas manifestações. [5]

Paradoxalmente, a ênfase na habilidade fabril do homem, bem como na exaltação na força de transformação da realidade, estabelece uma continuidade entre o marxismo e a atual sociedade opulenta (ou tecnocrática). Em resumo, ambas se pautam no economicismo e na alienação. 

Segundo Del Noce, nossa sociedade elimina “a tensão dialética que sustenta a revolução ao forçar a alienação ao nível mais alto possível, e, ao mesmo tempo, ao dissociá-la da pobreza. Por alienação me refiro à mútua desumanização da relação com o outro. Cada sujeito percebe o outro como estranho, alheio, separado, isto é, não unido a mim pela devoção a um valor compartilhado… sendo portanto um ob-jectum, indiferentemente se considero ou não esta ‘coisa posta perante mim’ como um instrumento útil ou um obstáculo. O marxismo não pode fazer nada contra esse tipo de alienação, e, contudo, esta é a doença que está consumindo a civilização ocidental” [6].

Assim, Del Noce entende essa sociedade alienada não só como um desdobramento do afã imanentista que se inicia com o iluminismo, mas também como um fruto do marxismo, que necessariamente dá lugar a um materialismo destituído dos elementos “escatológicos” da doutrina original de Marx. Desse modo, “o novo materialismo é a versão burguesa do marxismo”, ou, dito de maneira inversa, é “a vitória do espírito burguês sobre o marxismo, mesmo que este espírito tenha de modificar-se profundamente e visar seu nível máximo a fim de obter essa transformação” [7]. Em termos concretos, a sociedade opulenta se firma na adoção deliberada do materialismo histórico e ateísmo de Marx e na concomitante rejeição de sua doutrina da revolução. 

Diferentemente de seus correligionários italianos, Del Noce, em sua interpretação, integra o marxismo à história da filosofia (assim como à filosofia da história), concebendo-o não só como resultado de uma confluência única de movimentos no iluminismo (como já vimos), mas também como a “maior síntese de opostos jamais propostas na história do pensamento: [a síntese] da maior utopia com o maior realismo político; do materialismo extremo com o pensamento dialético, livre de todos os entraves que conduziam a um sistema fechado” [8].

Essa síntese de opostos é a condição essencial para a “revolução total” que o marxismo tenciona. Porém, tendo negado a transcendência, o pensamento marxista abriu caminho para que a tecnocracia impusesse a visão cientificista de um mundo perpassado unicamente por forças que regem e alteram periodicamente o cenário humano. À vista disso, tecnicismo, cientificismo e culto à vitalidade (e sua contrapartida social, que é o erotismo e as revoluções sexuais) são parte de um processo filosófico que se inicia parcialmente em Descartes, encontra seu ápice na filosofia materialista do século XIX, e desemboca no atual culto do luxo e dos prazeres comum às sociedades ocidentais. 

Ademais, o abandono daquilo que Del Noce chama de “metafísica da primazia do ser” fez com que, a partir da década de 1960, a esquerda se capitulasse a uma concepção de política como um tipo de “gestão técnica a serviço do mais forte”, justamente porque aceitou um entendimento metafísico incorreto do relacionamento entre liberdade e Ser.

Mas isso não significa que conservadores e reacionários estivessem livres desse culto da força ou das ilusões oriundas da imanentização do horizonte histórico. Para Del Noce, o reacionarismo (que, cremos, já distinguimos suficientemente do antimodernismo), por exemplo, embora admita os princípios transcendentais, jamais se apresenta como uma posição “pura”; antes, “é mistura da interpretação supra-histórica da permanência dos princípios com o utopianismo deslocado para o passado” [9]. 

Dessa forma, “o erro do pensamento reacionário é confundir a afirmação dos princípios supra-históricos com a imagem de uma situação histórica concretizada, de forma que eventualmente se passa à consideração de que, a fim de afirmar os princípios eternos, não se pode admitir ‘novos problemas’ – problemas que deveriam ser resolvidos com base nesses princípios, mas somente após serem reconhecidos como ‘novos’”. 

Em resumo, para o filósofo italiano, as raízes da crise da modernidade, conforme o título de um de seus ensaios, se encontram na recusa metafísica da ordem do Ser e numa negação do status naturae lapsae (o estado da natureza caída); as aparentes divergências políticas dos grupos modernos em última instância encobrem esses pontos de partida que têm em comum. 

Fabrício Tavares de Moraes é tradutor e doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University London)

[1] Augusto Del Noce, The Crisis of Modernity. Montreal & Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2014.

[2] Idib.

[3] Conforme já vimos, para Del Noce, modernismo e anti-modernismo são, em tese, movimentos gêmeos, já que percebem a imanência como o destino derradeiro da história humana; em termos concretos, tanto a esperança no progresso irrefreável quanto a resignação para com a decadência irredimível (em especial, o temor da absoluta secularização das sociedades) são formas de negação da realidade transcendental, da ordem eterna dos valores que permeiam o mundo. Nas suas palavras: “De certo modo, o moderno e o antimoderno são de fato gêmeos, de maneira que, por vezes, é difícil distinguir as expressões extremas da modernidade em relação à anti-modernidade. É o caso de Heidegger”.

Leia a parte 1 deste arquivo aqui.

[4] Idib.

[5] Idib.

[6] Idib.

[7] Idib.

[8] Idib.

[9] Idib.

 

COMPARTILHE: