por Idelber Avelar
Menos conhecidos no Brasil que seus contos metafísicos ou fantásticos, os relatos de Jorge Luis Borges sobre duelos de facas se inserem em uma profunda revisão da literatura argentina e do próprio conceito de justiça. Ao longo dos anos 1920, Borges se dedicou basicamente ao ensaio e à poesia, mas já na virada da década ele trabalhou nas versões iniciais do que seria o seu primeiro grande conto, “O homem da esquina rosada”, depois publicado em História universal da infâmia. Ali se inaugurava uma trajetória de quatro décadas em que Borges revisitaria a gauchesca, gênero que havia se concluído em 1879 com a publicação da segunda parte de Martín Fierro, o poema de José Hernández sobre o gaucho vadio e selvagem depois cooptado pela máquina estatal através do exército. No começo do século XX, intelectuais como Ricardo Rojas e Leopoldo Lugones tentaram alçar Martín Fierro à condição de herói épico nacional. Borges se lançaria a uma minuciosa desmontagem dessa operação nacionalista e, de passagem, elaboraria uma original teoria da justiça.
Muito já se escreveu sobre a fascinação de Borges com os homens de ação. A tensão entre as linhagens materna e paterna da família, respectivamente formadas por homens de armas e de letras, atravessou toda sua obra. Seus versos com frequência cantaram as glórias de militares como o coronel Manuel Isidoro Suárez, bisavô que liderou as tropas independentistas na batalha de Junín. A poesia heroica de Borges opõe um passado glorioso a um presente decadente, no qual já não se encontram o valor e a valentia de antanho. Essa fascinação com os homens de armas retorna em sua narrativa, mas ali ela será temperada pela fina ironia borgeana.
“O homem da esquina rosada” tem lugar em uma milonga, um inferninho de periferia onde se toca tango para que casais dancem. Ali impera a fama de Rosendo Juárez, o valente do bairro. A história é narrada por um miserável desprezível, sem acesso às mulheres e ignorado pelos valentes. A entrada de Francisco Real, forasteiro alto, de uma região rival, provoca a expectativa de todos, porque Real entra anunciando que lhe haviam dito que ali havia alguém com fama de durão que riscava a faca. Todos os olhares se dirigem, evidentemente, a Rosendo Juárez. A mulher mais cobiçada da noite, a Lujanera, impõe a Juárez a pior humilhação: estende-lhe a faca com o lembrete “acho que você está precisando dela”.
Essa cena é paradigmática em Borges e repete uma interpelação paterna a ele, em um momento em que o jovem Borges era provocado pelos valentes da escola. O pai lhe estende uma faca com o ditame: “que alguém saiba que você é homem”. Trata-se de uma cena intolerável porque a convocação à masculinidade é acossada por uma contradição performativa. No momento em que alguém lhe estende a faca com um chamado para que você prove que é homem, a possibilidade de fazê-lo já está automaticamente cancelada. Se é necessário que alguém faça a convocação, fazer jus a ela já é impossível.
Ante a estupefação geral, Rosendo Juárez lança a faca ao chão e abandona o inferninho, aceitando ser humilhado pelo forasteiro, que leva a Lujanera. Ao longo do conto, enfatiza-se a desimportância do narrador. Fica claro que, como o Gatsby do romance de Fitzgerald, a grandiosidade do protagonista Rosendo só é possível como efeito ilusório construído pela distância narrativa. Quando Rosendo covardemente abandona o salão, ele tromba com o narrador e fulmina: “você sempre servindo de estorvo, seu traste”. A fama de Rosendo depende de uma visibilidade longínqua, porque o mito da coragem está sempre ancorado em uma voz narrativa que deve se esconder. De perto ninguém é valente, poderíamos dizer, parafraseando um verso de Caetano Veloso.
Ao fim do conto, ouve-se uma mulher chorando e aparece o cadáver do forasteiro ensanguentado. O valentão intruso havia sido assassinado. Se Rosendo Juárez havia fugido, quem o havia matado? O narrador miserável e desprezado, invisível, confessa ao interlocutor: “Então, Borges, tornei a puxar a faca curta e afiada que eu sabia carregar aqui, no colete, junto do sovaco esquerdo, e dei outra revisada nela devagar; estava como nova, inocente, e não restava nem um pingo de sangue”. O miserável desprezado havia seguido o forasteiro até a escuridão em que era possível apunhalá-lo.
Borges inaugura a sua série de duelos de faca retratando um descompasso entre o sujeito encarregado de manter o código e o código mesmo. Rosendo, o grande representante do código, não se pauta por ele. O narrador miserável e desprezado restaura a honra do bairro, mas põe em cena uma hombridade paradoxal. Ele derrota o forasteiro, mas sem que ninguém veja. Há então, em Borges, um destempo entre os sujeitos do código de honra e o próprio código, que é paralelo ao destempo entre esse código e sua visibilidade. A masculinidade só mantém sua força na medida em que permanece invisível.
Quatro décadas depois da publicação de “O homem da esquina rosada”, Borges publica a chave do conto. Na coletânea O informe de Brodie, aparece “História de Rosendo Juárez”, na qual a mesma história é relatada, mas agora não do ponto de vista do narrador assassino que vinga secretamente a honra do bairro, mas do próprio valentão cuja fama é sua condição de possibilidade. Rosendo Juárez se encontra com Borges em um bar e relata a ele que a história de seu mito, narrada no conto escrito quase quarenta anos antes, tem lacunas. Juárez se propõe a narrá-las com os detalhes que importam.
Toda a fama de Rosendo Juárez havia se constituído em um duelo com um homem chamado Garmendia que o havia provocado em uma mesa de bar. No entanto, aqui tampouco o código funciona. A fama de Juárez advinha do fato de ele haver derrotado Garmendia em uma luta que ninguém viu, e na qual Juárez havia se aproveitado de um tropeço do adversário para apunhalá-lo pelas costas. O grande representante do código da masculinidade não havia seguido o código da masculinidade para constituir-se como tal. A revisão borgeana do código deixa clara a conclusão: o código da coragem sempre emerge a partir de um ator desprovido de toda coragem.
O duelo de facas entre duas forças em igualdade de condições é a imagem da justiça em Borges. Trata-se de uma justiça não estatal, não policial, na qual o decisivo é o resultado da luta. Mas o teatro em que a justiça se realizaria nunca acontece. A justiça é uma imagem utópica, virtual. Não apenas ela nunca acontece, mas ela só aparece como imagem privilegiada na medida em que suas origens permanecem escondidas. Para que a justiça emerja, é necessário que as origens da justiça fiquem ocultas. A justiça é um jogo de visibilidades, perspectivas e distorções que não sobrevive à proximidade. Quanto mais visíveis estejam suas origens, menor sua efetividade. A força dos valentes é uma miragem construída a partir de uma distorção narrativa, ensina-nos a ficção de Borges. O grande homem de ação é um tropo gerado por um modelo de relato essencialmente borgeano: aquele que preconiza que a história fundamental é a que não se conta.
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