por Pedro Gonzaga
Uma das grandes perdas de nossa língua em relação ao latim ocorreu pela restrição do particípio presente a uma função apenas nominal, fazendo com que certas construções referentes a continuidade de uma ação tivessem de ser expressas por meio de um circunlóquio, por um “que” mais o verbo no presente, ou por uma tolerável, ainda que parcial escolha substituta. Excetuadas certas e pequenas questões de tradução, isto não costuma ser um problema maior: a arte de traduzir é uma arte sacrificial. Há, contudo, casos em que ocorre uma perda decisiva, como em The dying animal, de Philip Roth, traduzido para o português por O animal agonizante. E não se trata de censurar, de resto, a louvável versão do livro. O problema está no quê de compreensão da obra do autor desapareceu à escolha, um elemento que se pode expandir como chave de leitura para as demais obras dos últimos vinte anos da carreira de Roth, até sua proclamada aposentadoria.
Tivéssemos em uso o particípio presente para o verbo morrer e então poderíamos ter a real dimensão da novela que é tema deste breve artigo. O animal morrente. Porque o agonizante indica uma circunstância de sofrimento anterior à morte, ou um quê de vida ainda existente ao momento final, mas não uma condição irrevogável do ser, o único drama a que todas as criaturas viventes estão sujeitas. Não que não haja agonia na doença que consome a beleza e a juventude de Consuela Castillo, filha de imigrantes cubanos, ícone de uma feminilidade anacrônica e eterna, ou que falte agonia no passamento do amigo de David Kepesh, George, após um derrame, ou que não seja agônico envelhecer e ter de lidar com um filho que materializa o dilema de uma descendência em que Kepesh não se reconhece, ou ainda a longa agonia amorosa vivenciada ao longo dos oito anos em que Consuela e seios perfeitos estiveram em sua vida até que ela ressurgisse consumida pelo câncer. Mas em todos esses momentos, mais forte do que as finitudes anunciadas pela passagem do tempo, está o coração a pulsar no peito de um animal que não sabe que vai morrer, cegado para a aniquilação que a fera consciente antevê, seguindo a imagem do poema do Yeats, Navegando para Bizâncio, de onde Roth retira o título da obra. Em ambos os textos se poderia falar em agonia, mas somente uma agonia resultante da pulsão vital do animal morrente, capaz de se apegar a quaisquer recursos na única luta definitiva a ser travada, o combate contra a morte dentro de cada um de nós.
A tese é que contra a morte (o morrente), só há duas forças: o sexo e a memória. E nunca uma epígrafe foi tão bem escolhida quanto a retirada de Edna O’Brien: “O corpo guarda a história de uma vida tanto quanto o cérebro.” De modo que qualquer memória será falsa sem o corpo, como será falso o homem que não reconhecer os laços formados entre suas vivências sexuais e a morte do passado cotidianamente experimentada. É importante acrescentar, embora acessório para os leitores de Roth, que o passado no universo rothiano é, a um tempo, individual e coletivo. Embora breve, O animal agonizante, como as narrativas de fôlego da “Trilogia Americana”, é hábil em dissecar a história do século XX na América, no caso específico a grande revolução dos costumes dos anos 1960 e, trinta anos depois, o estranho misto de liberalidade sexual com moralismo acadêmico. A franqueza com que Kepesh, um professor e pequena celebridade do mundo da crítica cultural nova-iorquina, diz se aproveitar do sistema para satisfazer os seus prazeres, ao início do livro, seria agressiva não fosse a condição que norteia tal honestidade: a do animal morrente. A quem se deve poupar quando os fados chamam? Por que negar as agulhas do sexo sempre espicaçantes, infensas à maturidade? Tal crueza, que do ponto de vista narrativo se legítima pela construção em diálogo da história (Kepesh recupera seus últimos anos para um ouvinte oculto, ativo apenas na última página), é também uma oportunidade para avançar até os limites onde sexo, memória e morte se fundem na sensação extrema que é tocar o seio — antes amado de Consuela, agora consumido pelo câncer — e, apesar disso, ter uma ereção, feito uma forma de resistência contra o aniquilamento da beleza, sem dúvida um feito estético do autor, em especial ao levar-se em conta que a tradição, seja do belo, seja do sublime, funda-se a partir de elevação do tema, ao menos na estética clássica. Roth é um autor tão corajoso que antes no livro já executara o movimento em menor escala no desesperado desejo do amigo George, em seu leito de morte, tentando desnudar a mulher à sua frente, que apenas no físico é sua esposa, promovendo o entrelaçamento entre escatologia e beleza, com um resultado literário quase tão milagroso quanto o do momento máximo da história.
Contudo, a grande arte da narrativa não é apenas a arte das dinâmicas de enredo, nem das ideias ou das teses, mas também de transições mais fundas, que envolvem a própria concepção de mundo e humanidade oferecidas pelo autor. Aliás, eis uma ferramenta potente de avaliação de mérito literário: a capacidade de acrescentar uma nova força à equação antes estabelecida. Se antes o triângulo estava formado por morte, memória e sexo, vem se juntar, ao final, uma quarta força que parece ser sempre a mais profunda forma de aprendizado (e destruição) nas obras de Roth: o afeto. Afeto feito impossibilidade com o filho Kenny, afeto feito camaradagem que se encerra com a morte de George, afeto feito amor, feito laço, que o une à Consuela, antes sexo, depois memória, depois morte — elo vital —, capaz de conferir sentido ao ser (em Yeats é o artifício místico e girante que o eu-lírico pede aos deuses) até a consumição de tudo.
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