Especial Philip Roth: “O Complexo de Portnoy”

O Estado da Arte dá início ao especial dedicado a Philip Roth, o gigante da literatura americana falecido recentemente. Em ensaios monográficos, focados em seus romances ou em temas especiais para a obra de Roth, nossos colunistas oferecem sua visão da obra do autor de "O Complexo de Portnoy" e "Pastoral Americana".

por Thiago Blumenthal

Hébert ne commençait jamais un número du Père Duchêne sans y mettre quelques foutre et quelques bougre. 

Assim Roland Barthes atesta uma espécie de estilo ao jornalista Jacques René Hébert e fica difícil não pensar em Philip Roth, quando abrimos O Complexo de Portnoy e nos deparamos logo de cara com o seu magnífico sumário: há ali “bronha”, “melancolia judaica”, “louco por bocetas”, isso na tradução de Paulo Henriques Britto. No original ”whacking off”, “the Jewish blues”, e “cunt crazy”, que considero muito melhores em inglês do que em português, apesar da boa tradução de Britto. Cunt crazy, que expressão fantástica. Para repetir ad infinitum. 

Lembro-me também da brilhante frase inicial de O Teatro de Sabbath: “Ou você abre mão de trepar com as outras ou o nosso caso está encerrado”, mas isso são outros quinhentos. O que quero dizer é que a partir das primeiras palavras Roth te leva a um mundo de insanidade, de histórias que se equilibram entre o que há de mais ordinário e o extraordinário, e não te solta mais. Não como uma Elena Ferrante, ou um Stephen King, com uma história pegajosa mas de poucos recursos, mas apenas com o que há de mais valioso na literatura: através da linguagem, pura e simplesmente. Permitam-me ser barthesiano. 

Portnoy foi a minha porta de entrada ao autor americano, isso quando eu tinha meus quinze anos. Uma descoberta. Como alguém falava de tudo aquilo, quase como um Lenny Bruce alucinado no palco berrando que trailer parks are so goyish that Jews won’t go near them, só que tudo isso em um livro, algo que meus pais viam como uma educação formal, alta literatura, e que eu até podia usar para impressionar as garotas. 

Philip Roth, o maior autor americano dos nossos tempos, só perdendo para o Saul Bellow. 

Portnoy, apesar de ter aparecido em apenas um romance, diferentemente de um Zuckerman ou de um Kepesh, moldou o que seria o grande personagem de Roth ao longo de seus mais de trinta livros, entre ficções, ensaios, biografias. É o homem judeu dos confins de Newark, NJ, buscando respostas para questões que demandam explicações inatingíveis. As mulheres, as judias, as shiksas, cunt crazy. O que elas querem afinal de contas? Eis a pergunta freudiana fundamental. 

E claro que não há melhor maneira de tratar um tema tão freudiano quanto um divã. É Alex Portnoy esconjurando contra tudo e todos, contra as mulheres, contra a família, contra a mãe, contra a irmã gordinha (“longe de ser um gênio, mas a gente não pede o impossível”), contra a religião, contra os Estados Unidos, contra Israel, tudo isso a um psicanalista, o dr. Spielvogel. 

Já no início do livro, o médico nos explica, à melhor maneira freudiana, o mal de seu paciente: “quadro mórbido caracterizado por impulsos éticos e altruísticos em constante conflito com anseios sexuais extremos, muitas vezes de natureza pervertida”; “atos de exibicionismo, voyeurismo, fetichismo, autoerotismo e coito oral são abundantes; em consequência da ‘moralidade’ do paciente, porém, nem as fantasias nem o ato geram gratificação sexual genuína mas sim sentimentos avassaladores de vergonha e temor de punição, em particular sob a forma de castração”. 

As relações entre mãe e filho são analisadas à exaustão por Spielvogel, mas sem nenhuma solução – e que solução a psicanálise propõe afinal? Esse parece ser mais um dos alvos de Roth, atirando a todos os lados num palco de stand-up tragedy. 

A mãe que ocupa todo o primeiro capítulo, mas também todo o livro, encerra o jovem e o então adulto Alex em um conflito irrecuperável. Como uma mãe judia tão suburbana, da classe média de uma judiaria que busca o seu espaço nos grandes centros urbanos americanos (estamos aqui na metade do século 20), pode exercer tamanho desdém e tamanho fascínio, uma adoração que beira a psicopatia? 

A mãe que observa o céu de fim de tarde com o filho pela janela de sua casa, “a real fall sky”, que para Portnoy é o primeiro exemplo de poesia em toda a sua vida. A real fall sky. Mais adiante, quando neva, ele pergunta à mãe “do we believe in winter?”. O que um judeu pode ou não acreditar não depende das autoridades rabínicas – uma grande piada –, mas depende tão somente do que sua mãe lhe diz. 

Portnoy explora tudo o que o mundo judaico e o mundo goy lhe oferecem ao máximo, buscando evitar o primeiro e se abundar no segundo. Como o menino religioso que está encerrado em Boro Park, no Brooklyn, mas pega o metrô escondido para Manhattan. Better cookies, better girls. 

Desse modo ele explora a mulher americana, a cultura americana (simbolizada e entronizada pela imagem da mulher, da American Woman), e sofre por não conseguir absorvê-la de maneira satisfatória, como nos explica o diagnóstico de seu médico. Aliás, no original, ele fala em “Portnoy’s Complaint”, algo diferente do que sugere a tradução, embora esta a aproxime da psicanálise que vaza em todo o romance. Contudo, “complaint” está evidentemente relacionado à cultura judaica, à ideia do “kvetch” iídiche, que Bellow explorou tão bem em toda a sua obra. 

Num mundo fragmentado, numa América enlouquecida, como um judeu pode viver? Reclamando. Ele que sempre está à margem do rio, enquanto os outros estão ou nadando contra a maré ou se afogando. Jerry Seinfeld conta uma piada que ele diz que somente os judeus podem entender. Dois goys se encontram; um pergunta ao outro como vão os negócios. Ótimo, eles respondem. Se você não riu, você está ou nadando contra a maré ou se afogando.

Portnoy ri, é claro, mas um riso agonizante, para quem o próprio riso, o próprio prazer, causa uma dor dilacerante. Um judeu mimado que se masturba de maneira obsessiva enquanto a mãe espera do lado de fora do banheiro. Um livro subversivo, retrato de uma judiaria encerrada entre dois mundos, e retrato de uma geração lutando por liberdades individuais, mas sem de fato gozá-las. Uma estratégia narrativa que é estratégia de cura, a psicanálise, the talking cure. “Piada de judeu”?  

George Steiner dirá que depois do Holocausto só sobrariam dois tipos de judeus. Os mortos e os loucos. Steiner, claro, nunca erra.

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