Francisco Botelho e a inauguração da eternidade

Com um pentateuco de pequenas obras primas, o poeta Francisco Botelho inaugura a eternidade. Um ensaio de Astier Basílio.

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O poeta Francisco Botelho e a inauguração da eternidade

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(Reprodução: Patuá)

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por Astier Basílio

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A impressão que tive ao ler a poesia de Francisco Botelho foi a de reencontro, não de descoberta. Era como se eu estivesse diante de uma beleza advinda de uma eternidade que sempre existiu, mas que agora se inaugura. Há, pelo menos, cinco poemas que já nasceram clássicos em E tu serás um ermo novamente (Editora Patuá, 2021, R$40, 136 pp). É preciso falar detalhadamente de cada um.

Comecemos pelo primeiro, aquele que abre o livro, intitulado “Quando eu morrer”. Três estrofes compostas sob a batuta do metro alexandrino. De cara, Botelho dá uma aula de manejo rítmico. Conseguiu imprimir uma fala oral a um verso usado, historicamente, para eventos solenes. Não. Aqui não se descreve nenhum feito venturoso, tal qual proclamou Bilac em “Caçador de Esmeraldas”, ao dizer que “Fernão Dias Pais Leme entrou pelo sertão”. É um homem, antevendo seu inevitável destino, à solidão da selva escura do além-vida, e que se dirige à sua filha e como quem sussurra uma canção de ninar, lhe dizendo:

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O que nos cabe aqui é a triste maravilha.
Nada é somente suave, ou acre, ou doce, ou bruto.
Tudo fere, e eu também vou te ferir. Oh, filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.

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Não me parece ser por acaso que o segundo poema do livro seja, justamente, “Et foras ploravit”, uma pequena obra prima, no qual se canta o drama de São Pedro, o Apóstolo que negou três vezes Jesus. Francisco Botelho aqui retoma a melhor tradição, em língua portuguesa, de poesia narrativa. Algo que encontra referência no Camões de “Sôbolos Rios”, “Sete anos de pastor, Jacó servia” e, de alguma forma, em “A Harpa do Crente”, de Alexandre Herculano.  É possível ouvir um eco do pernambucano Alberto da Cunha Melo, também um poeta narrativo, embora cultor, preferencial, de outro tipo de metro, o octossílabo.

Embora encontre seu tema na Bíblia, contempla-o não como quem tem fé religiosa, mas como quem observa menos a dimensão mística e mais o espetáculo humano. A recriação das frestas do texto sagrado, rende pequenas epifanias. No Evangelho de Mateus, capítulo 23, versículo 76, alguém tenta desmascarar Pedro em suas negativas e diz: “Verdadeiramente tu és um deles, pois o teu modo de falar te denuncia”. E eis que assim o evento é recriado:

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Do outro lado do fogo, um almocreve

Ouvindo-o, riu e disse: “Companheiro,

Teu sotaque te entrega por inteiro,

Pois todo galileu arrasta o esse.”

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O mesmo despojo de solenidade se mantém. Além de um manuseio das formas fixas, submetidas a uma dicção quase em tom conversa, em tom de quem conta uma história, Francisco Botelho constrói uma sinfonia com rimas toantes, mas usa o recurso para sublinhar a artesania de sua simplicidade. É sabido que João Cabral de Melo Neto, este grande monumento da poesia brasileira, usou o recurso da rima imperfeita como investigação estilística para sujar de estranhezas o cenário lírico nacional de seu período. À época funcionou como curto-circuito. A rima toante já foi de há muito assimilada como uma possibilidade expressiva das mais eficazes. Virou chama. Poetas que cultivam a forma fixa, e mesmo os enveredam por outras linhas, fazem uso dela há décadas.

Em Francisco Botelho nada é solene, mas tudo é luminoso. Interessa ao poeta o Pedro, não o santo, a pedra em cujo fundamento de fé erigiu-se a Igreja, antes o intempestivo homem capaz de brandir uma espada e cortar a orelha de um soldado, mas que, pouco tempo depois, veio a acovardar-se, esmagado pela noite injusta que sempre há de cair sobre todos.

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Se não houvesse em Pedro esses dois Pedros,

O que enfrentou a multidão armada,

E o que, aos tropeços, foi-se noite adentro

Para chorar sobre a calçada amarga?

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A terceira obra-prima é “A Christopher Marlowe”, composta em versos brancos dodecassílabos. Se é dada a história ater-se ao que aconteceu e à poesia o que poderia ter acontecido, Botelho mergulha-nos nos arruados da Londres, do século XVI, e nos entrega um quadro, pincelado sob a paleta de Manuel Bandeira, no drama humano da “vida inteira que podia ter sido e que não foi”. O mais belo é que Francisco Botelho, tradutor de Shakespeare, passa ao largo de certa tradição brasileira cujo corolário é: o oferecimento do elogio a um autor, precisa vir acompanhado do insulto ao seu rival. Aqui, o tradutor de poesia de língua inglesa, abraça-se com o poeta e, os dois, nas margens do Tâmisa choram:

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Não fosse por aquela briga na bodega,

O que terias feito, Marlowe, quantos versos

Terias semeado, quais vilões tremendos

Em uma procissão fantástica e ruinosa

Terias libertado no estupor do mundo?

Em tua mente quais segredos espreitavam,

Quando, no golpe de um momento, te arrojaste

Pela imprecisa e obscura margem desta vida?

E para onde foram teus espectros, Marlowe?

Teus barcos, faces, deuses, monstros, onde estão?

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Um dia, noutra margem, me dirás, irmão.

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Ao ensinar seus atores, o mestre do teatro Konstantin Stanislavski dizia que mais efeito causaria interpretar um bêbado que se esforçasse para negar seu estado alcoólico, do que representá-lo sob os clichês da embriaguez. Ele cunhou a expressão “ação transversa”. Quando uma expectativa nos é frustrada por um efeito inesperado. Marilyn Monroe, ao cantar “Happy Birthday” para John Kennedy, pôs pelo avesso a referência usual que a canção evoca e a transformou num cântico erótico. Com sua poesia, Francisco Botelho usa recurso semelhante.  Onde se espera a encenação do grandioso, se entrega o pessoal; como se um João Gilberto, com voz e violão, imitasse um rapsodo grego e cantasse a Ilíada. É o que se vê em “Memória do Líbano” em cujo início a impressão que se tem é a de que se vai brandir um canto de matizes épicas:

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Esse povo desfeito em estilhaços,

cada estilhaço, um solitário povo

— cada mulher, um gênesis,

cada homem, um êxodo,

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Os estilhaços, aos quais se alude no poema, partem de um episódio real da fatídica explosão do porto de Beirute, em 2020, ocasionando mais de duas centenas de mortos. As imagens que assombraram o mundo, com os vidros espatifando, são mimetizadas no ritmo do poema que se quebra, sem manter a uniformidade rítmica. Se na abertura se falou da nação como um todo, no fechamento, é colocado em cena o que há de mais íntimo e pessoal. O épico verteu-se numa comungação lírica:

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oh Líbano serás o que mandaste

até mim por caminhos de memória e exílio,

serás esses fragmentos, Líbano, e também

o cheiro de minha mãe.

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Se o romancista russo Fiódor Dostoiévski tinha aquilo que era chamados os seus “cinco elefantes”, ou seja seus grandes romances, em seu livro de estreia Francisco Botelho nos presenteia com um pentateuco de pequenas obras primas, sendo a última delas a que dá nome ao livro: “E tu serás um ermo novamente”, vertido nos tercetos consagrados por Dante Alighieri. É até difícil destacar um trecho. O melhor a se fazer é reproduzi-lo inteiro, tal sua assombrosa força:

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E tu serás um ermo novamente.

E os lobos correrão por tuas ruas

Purificadas de sentido e gente.

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E o orvalho gelará as pedras nuas

De tuas portentosas catedrais.

E a palidez de sucessivas luas

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Borrará o perfil dos ancestrais

Na fachada dos templos desgastados

Pelo vítreo clarão dos temporais.

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E nos velhos caminhos congelados

Irá o derradeiro viajante

Com grandes olhos baços e parados

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Como um deus desnorteado e cambaleante,

Insensível ao frio, ao medo, à fome.

E se erguerá, funesta e fulgurante,

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A última manhã do último homem.

E tu, tu arderás no vento norte,

E mais ninguém recordará teu nome

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E ninguém temerá o azar e a sorte.

E o falcão solitário nas alturas

Equânime olhará a vida e a morte

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Irmanadas enfim sobre as planuras

Onde outrora te ergueste, altiva e insciente.

E nas noites brilhantemente escuras

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Vagará um fogo frio e evanescente:

E tu serás um ermo novamente.

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Embora nascido no Rio Grande do Sul, Francisco Botelho tem algo em comum com a lírica dos poetas nordestinos. Talvez pelo fato de que em ambas regiões haja um amor à terra. Não são poucas as vezes em que se escutam notas armoriais de Ariano Suassuna.  Sobretudo, o poeta heráldico de momentos como este:

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Ouço o Mar, a ferver seu verde Tom:

no Azul-noturno, o Sonho é meu Castigo.

Sou, da dona do Mar, amante e amigo,

ela me queima e “o sofrimento é bom”.

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Não por acaso o tema do mar é glosado sob a partitura de um verso hendecassílabo. Em “Em agora me envolve a neblina do mar”, há um intertexto com a tradição oral dos repentistas nordestinos. Botelho, sem aderir à estética do movimento Armorial, enceta o caminho por este pressuposto: o de fazer uma arte erudita brasileira com base na cultura popular. A pancada rítmica dos onze versos é improvisada pelos cantadores num gênero chamado “galope à beira mar”. A citação aqui se dá pela estrutura. Forma e fundo unem os sotaques do Sul e do Nordeste:

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E então afundei no tremor do luar,

Na noite nascida ao clarão das medusas,

E agora desfaço o cordão de meus braços

E agora me acolhem as algas difusas

E agora me abraça o fantasma do mar.

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Pela exploração dos temas clássicos e filosóficos e da alta cultura, Botelho filia sua dicção à mesma família de outro poeta nordestino, o pernambucano Carlos Newton Júnior, autor do épico Canudos – um poema dos quinhentos e de obras que testemunham o amor aos temas eternos, como a magnitude de Homero, visto em seu belíssimo Nóstos. 

Alfredo Bosi, em seu essencial História Concisa da Literatura Brasileira, analisando a poesia nacional dos anos 1970, atestou a solidão dos poetas que ousavam compor usando formas fixas: “Escrevendo em um período de drástica negação do discurso metafórico e musical, desvinculados das vanguardas e do seu esquema de sustentação ideológica, esses poetas têm dado exemplo de uma resistência às modas criadas pelo desenvolvimento tecnicista. A fragilidade extrema e, não raro, solitária dessa posição tem a força de um testemunho”.

Estas “testemunhas” puderam sair do deserto do ostracismo que lhes era imposto por um cenário comandado pela iconoclastia vanguardista e deixaram de ser aquilo que tão fatalmente definiu Alberto da Cunha Melo, em seu poema “Casa Vazia”: […] uns joões batistas a pregar/ para as dobras de suas túnicas/ seu deserto particular”. O valor de uma grande tradição poética não deve se restringir ao que os poetas fazem com suas formas: se a destroem ou se a embalsamam. Mas em como é possível fazer soar a própria voz e Francisco Botelho a fez soar, mas não como se a estivesse apresentando para nós. A impressão que se tem é que esta voz sempre existiu.

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‘La Negazione di Pietro’ por Caravaggio

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