por Márcio Mauá Chaves Ferreira
A ação da tragédia se passa em frente à casa de Héracles em Tebas. Há ali um altar de Zeus em que buscam asilo os parentes do herói: Mégara (sua esposa), Anfitrião (seu “pai” mortal, sendo Zeus seu “pai divino”) e seus três filhos. Creonte, pai de Mégara e antigo rei da região, foi assassinado por Lico, que, vindo da Eubeia, se aproveita de uma guerra civil que assolava a cidade e se torna o novo tirano de Tebas. Para evitar o risco de qualquer vingança futura, Lico pretende agora matar toda a descendência de Creonte. Essa é a razão, portanto, do refúgio dos parentes de Héracles naquele recinto, tido como inviolável. O herói está ausente, e temos notícia de que se encontra nas profundezas da terra, no Hades, executando seu último trabalho, de onde não deverá voltar.
Quando o coro de anciãos tebanos inicia esta canção — que por sua magnitude e forma é única entre as obras de Eurípides — aqueles que lá suplicavam estão prestes a morrer. Lico determina que incendeiem o altar. Mégara então, diante da aparente inevitabilidade da morte de todos, convence Anfitrião de que seria mais digno se entregarem. Anfitrião pede apenas que os adultos, para serem poupados da insuportável visão da morte de seus filhos e netos, morram antes das crianças; e Mégara faz por fim seu último pedido: que as crianças possam ser vestidas com trajes funerais, para que ao menos isso recebessem como herança da casa do pai. Ambos os pedidos são aceitos, as crianças se retiram para se vestir e o pai de Héracles profere uma última imprecação contra Zeus.
A pertinência da matéria tratada no poema parece decorrer do diálogo travado entre Lico e Anfitrião no episódio imediatamente anterior a ele. Nessa conversa, o novo tirano de Tebas desdenha os feitos do herói, como se desprezíveis e desprovidos de excelência, põe em dúvida a sua ascendência divina e critica o uso de arco e flechas, como um indício de covardia, em vez da lança e do escudo, essas sim armas valorosas de quem luta cara a cara com o inimigo. Em resposta a isso, nada mais natural do que entoar um canto formado, em sua quase totalidade, pela descrição de doze trabalhos de Héracles, com duas referências a seu arco (vejam Cicno e os Centauros) e uma a suas flechas (contra Gerião).
Por outro lado, já vimos que nesse momento da ação Héracles era tido como morto, pois não se esperava que ele retornasse de sua última missão no Hades. Em razão disso e de alguns elementos explicitamente presentes na primeira estrofe do poema, alguns estudiosos já mostraram que há nele vários traços de um lamento fúnebre, e, assim como nos discursos em funerais, é algo típico desse gênero a descrição dos feitos relevantes da vida do morto que nele está sendo louvado. Com efeito, é como se o poema se iniciasse com uma alusão do coro a uma performance de poesia, aqui executada por Apolo (Febo), que, depois de uma canção feliz, canta um lúgubre canto. Os anciãos de Tebas farão o mesmo.
Mas vamos aos trabalhos. São doze em número, porém não se deve supor que na época da primeira encenação dessa peça (por volta de 416 a. C.) um cânone já estivesse formado, não só no que diz respeito aos trabalhos em si, como também a seu número. Essa ode é o mais antigo registro poético a que temos acesso dos doze trabalhos de Héracles. A única outra descrição datada do século V a. C. (por volta de 460) desse mesmo número de trabalhos se encontra nas métopes do templo de Zeus em Olímpia; nesse caso, contudo, com quatro trabalhos que não coincidem com os de nosso poema, a saber, o Javali de Erimanto, as Aves do Estinfalo, os Estábulos de Augias e o Touro de Creta. Esses trabalhos serão substituídos na ode de Eurípides pelos de número 2, 5, 6 e 7 no catálogo exposto abaixo. Vale ainda mencionar que outros dois conjuntos de métopes do século V a. C. representam os feitos desse herói: as do templo de Hefesto em Atenas, com nove trabalhos; e as do tesouro ateniense em Delfos, com dez. Eis então o catálogo dos trabalhos na ordem em que são expostos no poema e com o destaque dos versos que cada um ocupa:
1. Leão de Nemeia (359-63)
2. Centauromaquia (364-74)
3. Corça de Ártemis (375-9)
4. Éguas de Diomedes (380-8)
5. Cicno (389-93)
6. Pomo do Jardim das Hespérides (394-400)
7. Apaziguamento do Mar (400-2)
8. Atlas (403-7)
9. Cinturão da Amazona (408-417)
10. Hidra de Lerna (419-21)
11. Gerião (422-424)
12. Jornada ao Hades (426-429)
Podemos ver que os feitos heroicos são nesse canto acompanhados por uma espécie de outro catálogo, geográfico, com a menção a rios, como o Peneio, o Hebro e o Anauro; mares, como o Inóspito (mar Negro) e o Meótis (Mar de Azov); montanhas, como Pélion e Homole; e regiões, como Tessália, Ênoe, Micenas, Anfânea, Lerna, Eriteia e Hades. Godfrey Bond, nos comentários a sua célebre edição dessa tragédia (Oxford, 1981), que aqui sigo de perto, extrai desses dados geográficos a hipótese de que o retrato do herói por parte de Eurípides é diverso daquele estabelecido, por exemplo, pelo monumento de Olímpia. Mais do que um herói local, do Peloponeso, Héracles seria aqui retratado com traços “pan-helênicos”.
Prova disso é que, dos quatro trabalhos presentes nas métopes de Olímpia e ausentes nesse poema, três são executados naquela região (Javali, Aves e Estábulos), sendo apenas um deles externo a ela (Touro de Creta, que, diga-se, associa-se também a Teseu); ao passo que os feitos introduzidos por Eurípides em lugar daqueles se dão todos fora do Peloponeso: o Jardim das Hespérides e o Apaziguamento do Mar são extensões do trabalho relativo a Atlas, ocorrendo, portanto, a extremo oeste do continente, região em que Gerião foi também atingido pelas setas envenenadas do nosso herói; os Centauros e Cicno enfatizam, por sua vez, o norte da Grécia, onde igualmente foram domadas as éguas de Diomedes, também chamadas éguas trácias. Apenas para completarmos o panorama geográfico de toda a ode, restam as Amazonas, que se situavam a extremo leste, como já vimos, na região do Mar Negro; o Hades, nas profundezas da terra, e os três (em vez dos seis das métopes de Olímpia) assim denominados trabalhos domésticos: o Leão, a Corça e a Hidra. Com essa área de ação mais expandida e mesmo, como nota também Bond, uma atenção menor dada pelo poeta aos trabalhos realizados na área do Peloponeso (apenas 13 versos para os 3 trabalhos), vemos aqui um Héracles mais abrangente, pan-helênico, em vez de um herói mais doméstico, ligado mais fortemente à região de seu lar.
O poema se finda com um retorno ao aqui e agora da ação dramática na sua última estrofe, abandonando a descrição em terceira e voltando a se referir a si mesmo em primeira pessoa, o que só havia acontecido em sua estrofe de abertura, conferindo um aspecto circular à ode, expediente típico da lírica grega antiga. Há uma peculiaridade ainda quanto à forma desta canção que se faz digna de nota. Além dos seus pares estróficos (estrofe e antístrofe) e dos epodos que os seguem, entre cada estrofe e antístrofe insere-se ainda mais um bloco de versos a que se costuma chamar “mesodo”.
Após o término do canto coral, frustrando a expectativa de todos, Héracles voltará e salvará seus parentes das mãos de Lico; mas uma nova frustração de expectativas ocorrerá, fazendo que essa tragédia passe a ser dotada, para usar um jargão da poética aristotélica, de uma segunda peripécia. A primeira reversão da ação dramática se deu, como vimos, com o retorno inesperado do herói e a alteração da má fortuna dos personagens, que agora se tornam afortunados com essa chegada. Mas a nova peripécia tem de operar no sentido inverso. Num ataque de feroz loucura enviada por Hera, sua eterna inimiga, nosso herói mata seus filhos e sua esposa e depois de voltar a si pretende cometer suicídio. Nesse momento chega Teseu, rei de Atenas, para livrar a cidade de Tebas de seu usurpador, e convence Héracles a abandonar seu intento e seguir com ele para Atenas, o que de fato vem a ocorrer.
Por fim, uma nota sobre o mito. Em outras versões dessa história, o motivo para que os doze trabalhos fossem executados em favor de Euristeu, rei de Micenas, era justamente a expiação pelo crime cometido por Héracles, movido pelos ardis de Hera; mas aqui, como se vê, a matança de seus filhos e esposa ocorre depois da realização dos trabalhos, tendo, portanto, Eurípides invertido a ordem desses fatos o que bem pode ter sido uma inovação sua. Isso significa que outra razão deveria ser dada para a realização de todas aquelas tarefas: Héracles teria se oferecido para trabalhar para Euristeu, para que ele e seu pai pudessem retornar a Argos (cidade comumente associada a Micenas na época da apresentação da tragédia), da qual Anfitrião havia sido banido por ter assassinado Electrião, pai de Alcmene, mãe de Héracles. Desse modo, como nos diz Kovacs, outro notável editor dessa tragédia, a matança de sua família pode ser reservada para a reversão final da (até então) boa sorte do herói. Eis o poema:
“Canto fúnebre!” brada Febo estr. 1
após canção afortunada,
tangendo com áureo plectro 350
a cítara de belo som;
e eu, como coroamento de seus trabalhos,
quero hinear com elogios
aquele que foi às trevas da terra
e dos ínferos – devo chama-lo filho de Zeus 355
ou rebento de Anfitrião?
As excelências de nobres lidas
são a glória aos que morreram.
Primeiro ele livrou do leão mes. 1
o bosque de Zeus 360
e cobriu sua loura cabeça de vermelho
flamejante, pondo por sobre seu dorso
a terrível mandíbula da fera.
A raça montesa dos Centauros ant. 1
selvagens ele então dispersou 365
com seu arco mortal,
matando-os com setas aladas.
Disso bem sabem o Peneio de belos vórtices,
os vastos campos de planícies tornadas inférteis,
as moradas do monte Pélion 370
e os abrigos limítrofes ao Homole,
de onde encheram as mãos
de pinheiros e dominaram a terra
dos tessálios com sua cavalaria.
Ao matar a corça 375 ep. 1
de áureos cornos e dorso variegado,
pilhadora de camponeses,
regozija a deusa
de Ênoe, assassina de feras.
Montou sobre a quadriga 380 estr. 2
e com correias domou as éguas
de Diomedes, que sem freios corriam
em estábulos cruentos
a repastos sanguinários para os seus dentes,
árduas convivas em júbilo com carne humana; 385
e cruzou o Hebro
de argênteo fluxo, esforçando-se
em trabalhos ao rei de Micenas.
Na costa próxima ao Pélion, mes. 2
junto às fontes do Anauro, 390
com seu arco destruiu Cicno,
destroçador de estrangeiros,
habitante insociável de Anfânea.
Foi às virgens cantoras ant. 2
e a sua morada no oeste, 395
para com as mãos colher o fruto dourado
das folhas de onde os pomos pendiam,
assassinando o dragão de ígneo dorso
que o guardava enrolado em terrível
espiral; e entrou nas profundezas 400
do alto mar, provendo calmaria
aos remos mortais.
Vai à casa de Atlas, ep. 2
impele suas mãos
por sob o meio da base celeste 405
e mantém com viril vigor
as moradas astrais dos deuses.
Através das ondas do Mar Inóspito, estr. 3
pelo Meótis de muitos rios,
ele atacou o exército cavaleiro das Amazonas – 410
que reunião de amigos
vindos da Grécia ele não juntou? –
navegando em busca do cinto que cinge
as vestes de ouro da bélica virgem,
caça funesta; 415
e a Hélade tomou os célebres despojos
da virgem bárbara e os conserva em Micenas.
Ele incendiou a Hidra, mes. 3
cadela assassina de Lerna, 420
miríade de cabeças,
e com seu veneno cobriu as flechas
com que matou o pastor
de três corpos da Eriteia.
Percorreu as glórias afortunadas 425 ant. 3
de outras excursões, navegou
ao multilacrimoso Hades, derradeiro trabalho,
onde o infeliz findou
sua vida, e de lá não voltou.
A morada está erma, sem amigos, 430
e o remo de Caronte aguarda
o caminho da vida dos filhos,
senda sem volta, sem deus, sem justiça;
e a casa olha para tuas mãos, embora não estejas presente. 435
Se eu tivesse a força de um jovem ep. 3
e brandisse a lança na batalha,
e também os tebanos, companheiros de juventude,
como defesa me postaria
diante das crianças, mas agora 440
deixo para trás a felicidade juvenil.
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Três passos trágicos sobre a técnica – Parte 3: As ‘Suplicantes’ de Eurípides