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Na parceria entre o Estado da Arte e a tinta-da-china — editora independente fundada em Portugal em 2005, com presença no Brasil desde 2012 —, apresentaremos ao leitor brasileiro dois ensaios de O Cânone. Na edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, O Cânone é uma coletânea de ensaios sobre literatura portuguesa; ensaios que não representam “nenhum consenso”, mas “as ideias dos seus autores e as suas opiniões, muitas vezes minoritárias”. O Cânone, portanto, “[n]ão é um dicionário ou um guia neutro para a história da literatura portuguesa: é um livro de crítica literária para nos fazer pensar sobre a literatura portuguesa”.
Hoje — depois de Agustina Bessa-Luís, por Pedro Mexia —, trazemos um ensaio de Nuno Amado sobre Fernando Pessoa.
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Fernando Pessoa, por Nuno Amado
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Ao reagir, em carta de 13 de Agosto de 1919, a um telegrama de Geraldo Coelho de Jesus no qual lhe era pedido que intensificasse a distribuição do terceiro número do jornal Acção, um jornal sidonista criado pelo Núcleo de Acção Nacional cujo director era justamente o destinatário, Fernando Pessoa dá conta dos múltiplos esforços que fizera nos últimos dias a esse propósito, declara que dificilmente poderia ter feito mais do que fez e deixa uma pergunta que, apesar de trivial à luz das circunstâncias apresentadas na carta, se tem revelado decisiva para a apreciação da sua obra: «Olhe lá: quantas pessoas é que eu sou?»[1] A pergunta parece admitir apenas duas respostas, a de que Pessoa é evidentemente só um ou a de que, pelo contrário, é evidentemente muitos, e os leitores da sua obra, ao longo das últimas oito décadas, dividem-se geralmente entre os que acham que a resposta certa é a primeira e os que acham que é a segunda.
Embora esta divisão sugira duas maneiras profundamente distintas de lidar com o problema central da obra de Pessoa, creio que o compromisso com qualquer uma das duas respostas leva a conceber a heteronímia como um embuste. Os leitores de primeiro tipo, por considerarem o embuste nocivo às pretensões de compreensão da obra, determinam que se lhe escape assumindo que cada heterónimo é uma máscara incapaz de esconder quem atrás dela fala; inversamente, os leitores de segundo tipo aceitam o embuste, assim como a consequente impossibilidade de lhe escapar, e estipulam que cada heterónimo é uma província autónoma da alma do seu criador. Enquanto os primeiros reagem à dificuldade originada por um poeta que se apresenta como vários deliberando que o verdadeiro poeta é o embusteiro que deve ser desmascarado, os segundos acham que ele é o resultado da soma dos diversos embustes a que se devota.
A tendência em voga parece ser a de que não é possível ler Pessoa sem lhe consentir a pluralidade. Seja pelo critério filológico de restar uma arca com papéis dispersos e fragmentos a que é impossível dar unidade, seja antes pelo engodo da psicologia a que a famosa carta a Casais Monteiro levou todos aqueles que nela acharam estar a sinceridade do poeta e as instruções testamentárias para que se pudesse ler-lhe a obra sem erro, seja finalmente pelo facto de ter assinado o que escreveu com muitos nomes que não aquele a que o vinculou o baptismo e pelo facto de a algumas dessas assinaturas ter atribuído uma personalidade própria, opiniões que não partilhava e até, fingindo-lhes a existência, alguns detalhes biográficos, dotando-as assim de uma certa singularidade, é actualmente mais popular a leitura proposta pelo segundo tipo de leitores. Para esses, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos não são Fernando Pessoa. Se o não são, só é possível ler a obra de Pessoa, que é pelo menos o autor por procuração da obra de cada um deles, somando à obra assinada pelo próprio Pessoa a obra de Pessoa a fingir que é Caeiro, a de Pessoa a fingir que é Reis e a de Pessoa a fingir que é Campos.
Ainda que não desprezem a existência de ideias transversais a todos os heterónimos e que reconheçam neles, pelo menos intuitivamente, a presença vaga e inconsútil do seu criador, têm estes leitores de segundo tipo depositado o seu interesse na unidade isolada de cada uma das criaturas, o que implica que o depositem simultaneamente na diversidade do conjunto em que se inserem. Tal como a lente do fotógrafo, ao operar com uma profundidade de campo reduzida, pela abertura excessiva do diafragma, regista uma figura em primeiro plano bem focada contra uma paisagem ao fundo desfocada, qualquer leitura que se foque em demasia na unidade das criaturas perde a profundidade de que precisa para ver com nitidez a unidade do criador delas. É isso que acontece sempre que se procura impugnar a hipótese, usualmente considerada pelo primeiro tipo de leitores, de que uma frase assinada, por exemplo, por Álvaro de Campos corresponda a uma crença de Pessoa através de um argumento que consiste em fazer notar que Campos não é Pessoa e que, portanto, o que Campos diz não corresponde necessariamente ao que Pessoa pensa. É assim que os leitores de segundo tipo ilibam, para dar um exemplo célebre, o criador Pessoa da responsabilidade de ter feito a criatura Campos, em carta[2 ]ao director d’A Capital, escarnecer de Afonso Costa, líder do Partido Democrático, por este ter caído de um eléctrico e estar, na altura, em risco de vida.
Se bem que verdadeiro e útil, porventura, para esclarecer certos leitores menos avisados, o argumento de que Campos não é Pessoa constitui, ao mesmo tempo, um truísmo. Pior do que isso, um truísmo que leva a crer que existe uma diferença lógica na obra de Pessoa entre o que é, de facto, Pessoa e o que não é, entre o que é Pessoa a sério e o que é Pessoa a fingir. Destacar a singularidade de Campos é, deste ponto de vista, destacar Campos de Pessoa; é destacá-lo do criador a quem, exactamente por lhe dever a criação, de um certo modo pertence. Tal como um braço, não obstante ser um braço, é sempre um braço de alguém, mesmo quando amputado, uma criatura é sempre do seu criador (ou pertence sempre ao seu criador). Dizer que Campos não é Pessoa é como dizer que o braço de alguém não é o corpo desse alguém. Isto é verdade, na medida em que a palavra «braço» designa uma coisa diferente daquilo que designa a palavra «corpo», mas é igualmente impreciso, visto que esse braço pertence a esse corpo e nem sequer seria braço se não houvesse corpo ao qual pertencesse. Tal como é predicado do conceito de braço pertencer a um corpo, é predicado do conceito de criatura pertencer a um criador. Ainda que contenha alguma verdade, dizer que Campos não é Pessoa é, por isso, diferente de dizer que Sá-Carneiro não é Pessoa. É-o, essencialmente, porque Campos e Sá-Carneiro não são Pessoa de maneiras diferentes e, consequentemente, porque são aquilo que são de maneiras diferentes: ser Campos não é como ser Sá-Carneiro porque ser Campos é, entre outras coisas, pertencer a Pessoa.
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Quem alega que Campos não é Pessoa, e já agora que Reis e Caeiro o não são, imagina ipso facto que Campos, Reis e Caeiro são, por exemplo, como um braço, uma perna e um nariz que foram cortados do corpo a que pertenceram em tempos e que, por conseguinte, o verdadeiro Pessoa, seja lá o que isso for, é como um corpo estropiado ao qual falta um braço, uma perna e um nariz. À semelhança de um retratista que, perdendo de vista o retratado ao retratar-lhe o braço, produz um retrato desproporcional, o leitor que aceita o truísmo de que os heterónimos não são Pessoa perde de vista o próprio Pessoa e produz uma leitura estropiada. Para os leitores de primeiro tipo — aqueles para quem Campos, Reis e Caeiro são Pessoa e para quem, por conseguinte, coisa dita por qualquer um deles é coisa em que Pessoa acredita —, toda a poesia, pelo menos a de tipo lírico, é confidência, mesmo quando o autor se esforça por disfarçar o que confidencia. Para os leitores de segundo tipo — aqueles para quem, por sua vez, Campos, Reis e Caeiro não são Pessoa e para quem é essa distinção ontológica que demonstra que aquilo que cada um deles diz não é necessariamente aquilo em que Pessoa acredita —, toda a poesia é confidência, como para os primeiros, a não ser que o autor, através de uma assinatura ou de outro artifício semelhante, confidencie que não é. Para os primeiros, o poeta nunca é um fingidor, ou é-o tão imperfeitamente que não chega a fingir que é dor a dor que deveras sente, o que contraria a tese famosamente exposta no poema «Autopsicografia»; para os segundos, o poeta é um fingidor às vezes, mais especificamente quando fala por interposta pessoa. Nenhum dos dois tipos de leitor parece aceitar que o poeta seja sempre um fingidor, no sentido em que fazer poesia, de um modo que será preciso explicar adiante, é sempre fingir.
Na verdade, Campos, Reis e Caeiro são e não são Pessoa. Se entendermos a expressão «ser Pessoa» como «ser equivalente a Pessoa», então é notório que o não são, como um braço, uma perna e um nariz não são equivalentes ao corpo a que pertencem; mas, se a entendermos como «ser parte de Pessoa», então são-no. Uma leitura razoável de qualquer obra, não apenas da de Pessoa, pressupõe a aceitação tácita de que cada uma das diferentes partes dessa obra só significa alguma coisa enquanto parte dela, isto é, à luz da relação que estabelece com as outras partes e com o todo a que pertence. Um corpo é um corpo, não obstante ser constituído por braços, pernas e narizes, e um bom retrato desse corpo é aquele que é capaz de lhe conferir unidade pondo em destaque não as diferentes partes que o constituem mas a relação harmoniosa entre elas. Ao contrário dos leitores de primeiro tipo, os quais desvalorizam a diversidade e entendem que Pessoa é Campos, Reis e Caeiro, e ao contrário dos leitores de segundo tipo, para quem Pessoa não é nenhum deles e para quem, por conseguinte, a unidade é dada pela soma de todas as diversidades, este terceiro tipo de leitores considera que Pessoa é a relação harmoniosa entre os heterónimos e o todo a que pertencem. Para estes, aquilo que normalmente se entende por diversidade é só uma forma inusitada de exibir a sua unidade.
Para tais leitores, nem Pessoa é sempre Pessoa a sério, mesmo quando assina com nomes diferentes e finge diversidade, nem o Pessoa a sério se distingue do Pessoa a fingir por ser aquele que manobra por detrás das diversidades fingidas. O Pessoa a sério é o Pessoa a fingir. E é-o não no sentido em que se pode desvendar-lhe a seriedade no fingimento, algo com que concordariam os leitores de primeiro tipo, mas no sentido em que só há Pessoa a fingir. Se assim for, é relativamente indiferente que esse fingimento se cumpra em nome próprio ou em nome de outros. A heteronímia, o sinal mais visível da diversidade da obra de Pessoa, não é a essência dessa obra, mas a forma que a sua unidade exibe. Quer isto dizer que não é a obra em si mas a forma dela que é diversa.
O verdadeiro embuste não reside propriamente na heteronímia, mas na convicção, alimentada de modos distintos tanto pelo primeiro quanto pelo segundo tipo de leitores, de que a heteronímia é um embuste. Tomou-se a forma diversa com que Pessoa decidiu apresentar a sua obra pela essência dela, as diversas entidades fingidas pela compulsão do poeta para fingir diversamente, e concluiu-se que presidia a toda a produção pessoana aquilo a que se convencionou chamar «poética do fingimento». Mas todo o poeta, não apenas Pessoa, é um fingidor. É-o justamente porque fazer poemas não é o mesmo que fazer confidências. Embora se pareça com um enunciado normal, um enunciado poético nada diz. É um enunciado a fingir, em termos pessoanos, não porque seja um enunciado mentiroso, isto é, um enunciado que diz coisas em que o enunciador não crê necessariamente, mas porque é um enunciado que nem sequer enuncia. O que é fingido não é o conteúdo do enunciado, mas o próprio acto de enunciar. De acordo com isto, o poeta é um fingidor não porque afirme coisas fingidas, coisas nas quais não crê, mas porque finge afirmar coisas quando, na verdade, como aliás Sir Philip Sidney fez notar em «The Defense of Poesy», um poeta nada afirma.[3]
A obra de um criador de heterónimos não se distingue da de outros poetas por ser uma obra mais fingida, nem por tal criador ser melhor a fingir. Quando muito, distingue-se por ter como assunto central o fingimento que define qualquer obra poética. Uma vez mais, é na forma, não na essência, que reside a diferença. Por outras palavras, a heteronímia não é o produto de um poeta com queda para o fingimento; é só um modo de mostrar que poesia não é confidência, que aquilo que um poeta diz não deflagra do coração nem jorra da alma, que ser poeta, em suma, é ser fingidor. É, portanto, falacioso imaginar que os heterónimos sejam um embuste. Pessoa não afirma através deles o que pensa nem o que não pensa, porque um heterónimo, como qualquer poeta, não afirma nada.
Tal como os ilusionistas se distinguem uns dos outros fundamentalmente por possuírem um reportório de truques diferentes, o que distingue um poeta são as habilidades que, dentro dos limites do seu ofício, sabe fazer. A heteronímia não é sintoma de uma «tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação», algo de que o próprio Pessoa quis que a posteridade se convencesse; é um recurso técnico, um determinado modo de usar a linguagem para obter um determinado efeito. Compreender a obra de Pessoa não requer, por isso, a compreensão isolada de cada uma das criaturas a que deu voz, mas a compreensão da aprendizagem e do aperfeiçoamento da complexa técnica discursiva de que essas criaturas, quando relacionadas entre si e com o criador delas, são a expressão final. Deste ponto de vista, interessa menos saber, por exemplo, que Reis é um poeta pagão, derivado de Horácio, tendencialmente epicurista e estóico, do que perceber em que medida Caeiro, o cirurgião que lhe «abriu, com os olhos, a vista»,[4] como o próprio Reis o descreveu, o ensinou a ser assim.
A pergunta que Pessoa lança a Geraldo Coelho de Jesus é, afinal de contas, mais difícil de responder do que se poderia pensar. Apesar de ter tomado por confidência tudo o que Pessoa lhe disse na famigerada carta da génese dos heterónimos, Adolfo Casais Monteiro reparou desde logo nessa dificuldade, e na relevância que teria para uma boa leitura da obra de Pessoa uma boa resposta a essa pergunta: «Não me resta dúvida que v. é habitado por essas personalidades. Não posso contudo ignorar que v. é embora um só. E eis a grande dificuldade.»[5] Como qualquer pergunta difícil, não há resposta pronta que esta admita. Pessoa não é nem evidentemente só um nem evidentemente muitos. É um que é muitos, e só explicando de que modo se articula a unidade essencial da sua obra com a forma diversa em que é apresentada, algo a que poucos se têm proposto, pode um bom leitor fazer-lhe justiça.
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Notas:
[1] Fernando Pessoa, Correspondência: 1905–1922, edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 309.
[2] Idem, p. 167.
[3] Sir Philip Sidney, «The Defense of Poesy», The Major Works, including Astrophil and Stella, edição de Katherine Duncan-Jones. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 235.
[4] Fernando Pessoa, Ricardo Reis: Prosa, edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 142.
[5] Fernando Pessoa, Cartas entre Fernando Pessoa e os Directores da presença, edição de Enrico Martines. Lisboa: incm, 1998, p. 263
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O Cânone pode ser adquirido no portal da editora, cujos livros, no Brasil, podem ser encontrados na Livraria da Travessa.
Todos nossos agradecimentos ao autor, Nuno Amado, e à tinta-da-china.
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