Literaturatinta-da-china

Agustina Bessa-Luís, por Pedro Mexia

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Inaugurando a parceria entre o Estado da Arte e a tinta-da-china — editora independente fundada em Portugal em 2005, com presença no Brasil desde 2012 —, apresentaremos ao leitor brasileiro dois ensaios de O Cânone. Na edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, O Cânone é uma coletânea de ensaios sobre literatura portuguesa; ensaios que não representam “nenhum consenso”, mas “as ideias dos seus autores e as suas opiniões, muitas vezes minoritárias”. O Cânone, portanto, “[n]ão é um dicionário ou um guia neutro para a história da literatura portuguesa: é um livro de crítica literária para nos fazer pensar sobre a literatura portuguesa”.

Hoje, trazemos um ensaio de Pedro Mexia sobre a literatura de Agustina Bessa-Luís.

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O Cânone (Reprodução: tinta-da-china)

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Agustina Bessa-Luís, por Pedro Mexia

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Talvez a literatura possa ser uma forma de desaforo. Uma «acção contrária ao decoro», isto se entendermos por «decoro» tudo aquilo que é a não-literatura, quer dizer, a linguagem da vida quotidiana. Grande parte da literatura digna desse nome revela, aliás, de modos muito diferentes características como a «petulância», a «insolência», o «atrevimento», a «desvergonha», a «impudicícia», a «dissolução», e até a «devassidão», para nos ficarmos por sinónimos do «desaforo» como formulação de coisas impróprias, inauditas. Mas claro que a literatura também pode ser um desaforo no sentido do verbo «desaforar», «desobrigar do foro», tirar a alguém os foros ou privilégios. A seu modo, Agustina Bessa-Luís fez tudo isso, preencheu todos esses significados de «desaforo». Embora com fama de «conservadora», por causa do meio social burguês, da educação jesuítica, de alguns valores antigos e ruralizantes, de um tempo mais pausado, de um aristocratismo congénito, à Yourcenar, o «conservadorismo» de Agustina parece uma carta de corso, uma autorização régia para um navio comum se transformar em navio pirata. Os desaforos agustinianos, que são também incursões ou abordagens, praticam todos os atrevimentos e insolências à medida que vão tirando os privilégios àqueles que tomam de assalto mundos que não conhecem, bem como aos que conhecem demasiado bem o seu mundo para o tomar de assalto. Há uma inconveniência extrema na capacidade agustiniana de fazer falar um mundo recalcado, um mundo de não-formulações, de subentendidos, de murmúrios em salões de fumo para onde se retiram os senhores depois de uma boa ceia, embora aqui o privilégio masculino seja um dos primeiros a ser abatido.

Como quase todos os grandes escritores, Agustina chegou sem que estivessem à sua espera, sem que houvesse um lugar reservado à mesa, e o lugar que lhe foram dando, a medo, a custo, com reserva mental, nasceu da soberania do génio, que a todos obriga, mesmo a contragosto. Não foi preciso esperar pela correspondência de Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner para ter a certeza de que o desaforo se paga, e que só a devoção de uns e a equanimidade de outros conseguiu impedir que a obra de Agustina fosse rasurada por completo, muitíssimo culpada de desaforo, e muitíssimo não-arrependida. Que se documentasse determinadas classes, determinadas regiões, determinado «povo» em detrimento de outro, isso não estava previsto. Que se citasse Freud em abono de um conhecimento do humano que lhe era muito anterior, mas a que ele veio dar força cosmopolita e mitológica, com prémio Goethe e tudo, isso era menos perdoável do que fazer do freudismo, mais à portuguesa, a chave estrangeirada de uma psique provinciana. Que se escrevesse «ficção historiográfica» em vez de romances históricos, antes de esse registo ser academicamente bem acolhido, devidamente pós-moderno e nobelizável, isso não se aceitava bem. Que a estupenda modernidade superficial queirosiana fosse ultrapassada pela modernidade ancestral e acutilante do camilianismo, isso era um golpe na dialéctica do progresso literário. Que alguém, digamos, em Vila do Conde, tivesse a ironia divagante de Musil ou a fundura selvagem de Dostoievski, isso parecia uma profanação.

Agustina provoca um desconforto a quem está de fora da literatura, ou a quem dela tem expectativas convencionais e codificadas, e que espera que um parêntesis que se abra venha algures a fechar, ou que uma personagem que falece não se encontre algumas páginas depois rediviva. Há um princípio caótico nos romances de Agustina que é um glorioso desaforo, quer isso obedeça a um efeito procurado, quer resulte simplesmente de uma política de grafomania, de não-revisão, de um certo desinteresse e desplante. Mas esse desconforto é menor do que aquele que sentem os que vêm de dentro da literatura, e que, mais habituados a heterodoxias narrativas, prefiram a ortodoxia opinativa, em registo de denúncia, de queixume egotista, de patriotismo apocalíptico. Para esses, e esses são quase todos, o que sempre incomodou em Agustina foi aquilo a que poderíamos chamar um subjectivismo objectivado, uma evidência empírica mas controversa, que de todo podemos atribuir a um «eu» frágil e adoentado, mas que também não é a voz de tendências ou de condições históricas; e essa objectiva subjectividade de Agustina não é o menor dos seus desaforos, não é a menor das suas contestações a foros e privilégios que existiam antes e que continuaram depois.

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Agustina Bessa-Luís (Foto: Jarbas Oliveira/Estadão Conteúdo)

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Pensar a obra de Agustina desta forma tão adversarial talvez possa parecer estranho. Afinal, trata-se de uma autora canónica, premiada por várias instituições, estudada nas escolas e com fortuna crítica considerável. Mas nada disso impede que se trate ainda de um corpo estranho na literatura portuguesa, um dos corpos mais estranhos do nosso cânone. Pensemos que um génio comparável na poesia, Herberto Helder, tem um numeroso público devoto, gerava um temor reverencial e nos últimos tempos alcançou tiragens significativas, que esgotavam em pouco tempo. Em contrapartida, qualquer livreiro dará testemunho de que se passam meses sem que se venda um único romance de Agustina. A escritora contou várias vezes a história de alguém que lhe disse «gosto muito de si e ainda hei-de ler um livro seu». Agustina nunca recusou a dimensão de «figura pública», quer como convidada de programas, entrevistada, quer como detentora de cargos privados (a direcção de um jornal) ou públicos (a direcção de um teatro). De algum modo, podemos dizer que Agustina é tão conhecida quanto pouco lida. E em nenhum caso isso é tão notório como na sua incipiente internacionalização, que beneficiou de um certo estatuto canónico de A Sibila, dos romances que Manoel de Oliveira adaptou, e pouco mais. O caso francês, mercado onde a tradução tem um peso significativo, é esclarecedor: além de duas ou três edições em chancelas mainstream, a presença de Agustina no espaço francófono deve-se à quase militância de uma única tradutora e de uma pequena editora (Françoise Debecker-Bardin, nas Éditions Métailié). Ou seja: no plano interno como no internacional, há uma descomunal discrepância entre a qualidade e singularidade que os adeptos de Agustina invocam e a difusão e aceitação da sua obra. Até os leitores mais sofisticados se queixam da «dificuldade» de ler Agustina, ou então da sua «torrencialidade», álibis para não voltarem a tocar no assunto.

As dificuldades maiores, porém, talvez sejam de outra natureza. Existem expectativas sucessivamente goradas no que respeita a Agustina, venha o leitor de onde venha, e seja o que for que procure na literatura. Porque encontramos aqui uma perspectiva feminina que não é da insubmissão, mas da hipótese de o patriarcado ser um jogo permitido pelo matriarcado. Encontramos um regionalismo improvável, tão depressa arreigado na memória individual e colectiva como cheio de anacronismos, voluntários ou acidentais. Encontramos uma classe de grandes burgueses ainda flaubertianos, certamente inspirados à clef em figuras da boa sociedade, mas com uma autoconsciência, uma vastidão de interesses e uma capacidade argumentativa impensáveis nas classes altas sociologicamente existentes. Encontramos um Eros não-eufórico, não de emancipação, mas tornado sistema mitológico de repressões, que garante a civilização e é gémeo da libido dominandi. E encontramos ainda uma visão da História nem epopeica nem ímpia, capaz de fazer das figuras históricas figurações do humano, para sua elevação, abominação, ou ambiguidade, de Uriel da Costa e dos amantes da Quinta das Lágrimas ao duo concordatário Salazar e Cerejeira e ao menino de ouro Sá Carneiro. Há sempre uma gozosa frustração de expectativas nos romances, ensaios e biografias-à-Pascoaes de Agustina Bessa-Luís, de modo que os livros não se oferecem a categorias inteiras de leitores, mas são escolhidos por leitores individuais, que gostam de espantos e contradições, de dificuldades e contrariedades.

A prosa especulativa de Agustina, nesse sentido, afasta-se totalmente de um predomínio de formas barrocas, coloquiais ou poéticas, que detectamos em tantos ficcionistas portugueses contemporâneos, para reivindicar o predomínio do escrito, inclusive nos diálogos, e até nas peças de teatro, situações em que a voz autoral é sempre demasiado forte para permitir uma qualquer autonomia de vozes diegéticas, espontaneístas, verídicas. Entronca aqui a problemática do «aforismo», termo aproximativo e tributário de uma estética do wit e do fragmento a que Agustina nunca obedece propriamente, malgrado as suas óbvias influências românticas e a sua pulsão sarcástica. Os aforismos agustinianos não são fórmulas de espírito, coleccionáveis como citações avulsas, frases de efeito, virtuosismos verbais mais ou menos ferinos ou catárticos. Pelo contrário, fazem parte do discurso narrativo, do discurso romanesco, onde aparecem como uma vontade voraz de generalização, em fórmulas que tanto parecem longamente pensadas como nascidas de uma iluminação súbita. Uma iluminação obscura, também, porque as fórmulas nunca nos convencem, nem isso pretendem, antes se nos apresentam como engenhosamente verdadeiras, desconcertantes, capazes de nos tirar do sério, capazes de com a sua seriedade nos exasperarem ao mesmo tempo que nos cativam, que nos perseguem. Isto à medida que tentamos encontrar um sentido útil, e até verificável, por entre a densidade verbal de certas conclusões que, ditas sobre uma situação ou personagem, são ditas sobre o mundo inteiro e a vida inteira.

Nunca aquilo que Agustina diz é, como naquela formulação inocente de literatura, aquilo que queríamos dizer se tivéssemos encontrado as palavras certas. Aquilo que Agustina escreve é sempre aquilo que nunca diríamos, nunca dissemos, e que nos perturba pelo seu brilhantismo e a sua opacidade, que operam ao mesmo tempo, como num poema hermético em que a linguagem nos transporta, ainda que o sentido nos resista. É por isso que dificilmente encontraremos um escritor tão pouco sentencioso, no sentido próprio. As sentenças agustinianas têm uma forte dimensão provisória, anti-sistémica, e nunca se apresentam como uma asserção sobre os homens que podia tomar a forma de uma conclusão ideológica ou de um ensinamento da experiência. As conclusões, em Agustina, são anteriores aos factos concludentes, mas existem ligadas à arbitrariedade romanesca (e talvez vivencial) dos factos, e não como um silogismo sapiencial. Até quando parece uma pitonisa, a escritora não nos oferece senão aporias, impasses e tensões do humano.

Todas as categorias analíticas e pensantes, justamente elogiadas, não impedem que os romances, sobretudo nos inícios e fins de capítulos, denunciem a primazia de uma dimensão jubilosa e poética. Porque se a kierkegaardiana «contemplação da angústia» não é, em rigor, especialmente «carinhosa», e passa mais facilmente por uma forma de crueza ou crueldade, isso é apenas a camada superficial de uma alegria quase feroz, de uma ferocidade poética, digamos, que é tudo menos «angustiante». Mais do que nas passagens de «caracterização» social ou psicológica, onde se joga uma dimensão «crítica» vinda do naturalismo, é na pura narratividade poética, e inclusive na descrição, por vezes desligada das personagens e do humano, que mais se nota a vitalidade da escrita de Agustina Bessa-Luís, que, nesse aspecto, só tem par em Camilo e Aquilino. O «eu» soberano do narrador, ou do autor empírico, pouco importa, deixa-se ir na voracidade empolgante da escrita e faz da escrita uma afirmação de liberdade, quase de omnipotência. É esse desaforo que, uma e outra vez, causa tumultos, medos e entusiasmos.

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Agustina

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O Cânone pode ser adquirido no portal da editora, cujos livros, no Brasil, podem ser encontrados na Livraria da Travessa.

Todos nossos agradecimentos ao autor, Pedro Mexia, e à tinta-da-china.

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