Suspensões narrativas em “Continuidad de los Parques” de Julio Cortázar

Estratégias narrativas como a tensão metalinguística, a memória incapaz de discernir a realidade das lembranças, e o herói impotente ante a própria história fazem do conto um texto-chave para a compreensão do autor argentino e sua relevância vanguardista.

por Thiago Blumenthal

Publicado originalmente em 1959, no segundo volume do livro de contos Las Armas Secretas, “Continuidad de los Parques” se configura como um texto-chave para a compreensão das estratégias narrativas do autor argentino Julio Cortázar (1914-84). Variadas podem ser as razões da relevância vanguardista do conto, especialmente quando consideramos o texto dentro de seu contexto histórico e quando exposto lado a lado com outras obras do autor, a saber: (1) seu caráter de forte tensão metalinguística, onde todos os elementos da intriga parecem puxar o texto a si mesmo, como uma força magnética que tudo suga para si; (2) o tema da memória que, apesar de ser um motivo clássico de toda a tradição literária, tanto ocidental como oriental, se reanima quando a narrativa não amarra a distinção entre o que está se passando na realidade e o que é produto de nossas lembranças; e (3) por fim, o herói que se encontra impotente diante de sua própria história (a que se conta e a que se lê), deixando-o desgarrado de qualquer elemento narrativo que poderia vinculá-lo mais concretamente ao que ali é narrado. Será sob essas três rotas de análise que este artigo irá se sustentar.

Cortázar, em seus romances e contos, rompeu com marcas clássicas da escritura literária. Tempo, espaço, narrador, todos os elementos da narrativa ganham um tratamento que terminaria por inaugurar, ou cristalizar, um movimento e uma cena desprendidos de um rigor mais aristotélico, por assim dizer, marcando assim toda a arte, e a concepção artística, do século XX. Em Rayuela (1963), uma de suas novelas mais célebres (e talvez sua obra mais conhecida internacionalmente, com traduções para diversas línguas – no Brasil, ganhou o título de O Jogo da Amarelinha, em edição da Civilização Brasileira), o narrador propõe ao leitor um jogo de leitura no qual pode-se guiar pela ordem capitular que ele quiser. Como se ângulos distintos, focos narrativos distintos, apresentassem uma nova história a partir de um caminho de leitura que se desviasse da ordem “proposta” pela edição originalmente impressa. E o conto “Continuidad de los Parques”, aqui analisado, e que é anterior à publicação de Rayuela, guarda interessantes semelhanças com a novela e, como dissemos, reúne em apenas duas páginas o epítome da estética cortaziana.

“Continuidad de los Parques” apresenta três parágrafos, distribuídos conforme a intriga se intensifica, e o personagem, que se senta em seu gabinete para retomar um romance, se vê sugado pela própria história. O enredo é simples, porém astucioso: este personagem, que é visto à distância por um narrador em terceira pessoa, é um leitor que curiosamente se funde à figura de um leitor maior, de uma instância de leitura, que pode ser nós mesmos, como leitores do conto, ou a figura do leitor como elemento que condiciona o emaranhado de significados de uma obra literária. O que é bastante pertinente, já que é a partir do século XX e de experiências narrativas como as de Cortázar, Borges, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, apenas para citar alguns nomes da geografia latino-americana, que uma chamada estética da recepção passa a ter maior influência na crítica literária.

Neste enredo, o limiar entre o que se narra e o que está sendo narrado dentro da narrativa (a história dentro da história, como uma caixinha de surpresas à moda de Mil e Uma Noites) fica tênue demais para ser distintivo. No limite, a história que aquele personagem lê, e o que dela apreende, é a mesma que está acontecendo na vida real, quase como um espelho convexo que tudo reflete às avessas, menor e virtual – como um vidro retrovisor que achata as imagens. Esta imagem, a do espelho que suga para si virtualmente tudo o que está ao redor, pode ser encontrada em algumas obras contemporâneas à escritura de “Continuidad”. Autores como Dino Buzzati e seu “La fatalità”, também de 1959, assim como um imenso mosaico de textos de Borges, retomam o motivo.

Había empezado a leer la novela unos días antes. Le abandonó por negocios urgentes, volvió o abrirla cuando regresaba en tren a la finca; se dejaba interesar lentamente por la trama, por el dibujo de los personajes.

Assim começa a narrativa, que é quando de pronto já temos a presença deste narrador que conjuga os verbos na terceira pessoa e nos apresenta uma cena ali à distância (conforme o conto avança, ela se aproxima) de alguém que retomava a leitura de um romance que fora abandonado algum momento antes. Até esse momento não há nenhuma tensão de ordem metalinguística, pois o relato se inicia de maneira clássica, pontual e linear. Não há dúvida do que se conta: eis alguém que está retomando a leitura de um livro e que, pouco a pouco, está se deixando levar por sua trama e por seus personagens. Cria-se, evidentemente, de início uma identificação com o ato de leitura: todos buscamos a literatura ou, no limite, a ficção para nos deixarmos levar por essa outra vida imersa naquelas páginas. Assim parece proceder este personagem.

A linearidade e o caráter mais ordinário que se apresentam nas primeiras linhas do conto começam a se romper quando, ainda no primeiro parágrafo (são apenas três no texto todo), intui-se um certo descolamento da entidade narrativa de seu personagem. Ao inserir aquele leitor primeiramente em um contexto cotidiano que podemos chamar aqui de “real” (“Esa tarde, después de escribir una carta a su apoderado y discutir con el mayordomo una cuestión de aparcerías”), muito demarcado pelo registro temporal de “Esa tarde”, para depois deixá-lo pouco a pouco afundar-se no próprio livro, quase como um novo personagem que ali se insere, a narrativa cria seu primeiro momento de suspensão da realidade.

Su memoria retenía sin esfuerzo los nombres y las imágenes de los protagonistas; la ilusión novelesca lo ganó casi en seguida. Gozaba del placer casi perverso de irse desgajando línea a línea de lo que lo rodeaba, y sentir a la vez que su cabeza descansaba cómodamente en el terciopelo del alto respaldo, que los cigarrillos seguían al alcance de la mano, que más allá de los ventanales danzaba el aire del atardecer bajo los robles. Palabra a palabra, absorbido por la sórdida disyuntiva de los héroes, dejándose ir hacia las imágenes que se concertaban y adquirían color y movimiento, fue testigo del último encuentro en la cabaña del monte.

O uso de termos como “absorbido”, “desgajando”, “rodeaba”, “dejándose”, “fue testigo” ajudam o leitor, no caso, o leitor de Cortázar e de “Continuidad”, a desconfiar que aquele personagem ali, pouco a pouco, “palabra a palabra”, “línea a línea”, se projeta contra o livro cuja leitura esta a retomar. A experiência de leitura está ligada às nossas capacidades de memória, pois precisamos das lembranças do que estávamos a ler para poder retomar qualquer narrativa, sob o risco de ter de iniciar tudo desde o início novamente. Sem memória, não seríamos leitores e, tragicamente, qualquer ficção seria vã e a literatura não poderia dar conta de nossas angústias e necessidades de viver e experimentar novas vidas. Estaríamos presos na marca do presente, sem os possíveis retratos do passado e sem as expectativas incertas do futuro. Neste sentido, é interessante notar o muito desenvolto jogo entre os verbos que estão conjugados no pretérito mas que guardam características do presente mais ativo, da cena que acompanhamos em tempo real em todo o conto.

É a partir do segundo parágrafo que a desconfiança aumenta entre passado e presente, memória e fato, e mais, entre personagem e leitor. A narrativa se volta a si mesma, como um buraco negro que, de acordo com a teoria de Einstein, tudo suga e nos transporta para uma outra concepção de tempo, na dobra espacial. Este é o momento em que o narrador nos pontua elementos da intriga que se está lendo (tanto o leitor/personagem quanto o leitor/nós). Trata-se evidentemente de uma intriga amorosa, um possível triângulo romântico, um affair proibido, por assim dizer. Os álibis, os acasos, os possíveis erros, tudo isso é apresentado tanto ao personagem sentado naquele gabinete quanto a nós, sentados com o livro de Cortázar nas mãos. Tudo isso apresentado em tempo presente, apesar da marca temporal pretérita.

As páginas corriam (correm) “como un arroyo de serpientes”. A partir dessa hora, também nos declara o narrador, “cada instante tenía su empleo minuciosamente atribuido”. Mas que tempo? O nosso ou o do leitor? Ambos? “El doble repaso despiadado se interrumpía apenas para que una mano acariciara una mejilla. Empezaba a anochecer.” Quando anoitece? Anoitece no romance que o personagem lê ou anoitece na chácara do personagem, que está sentado confortavelmente em seu gabinete? Todas essas coordenadas espaço-temporais se perdem no gráfico que Cortázar propõe a seu leitor, e não gratuitamente. Faz parte do jogo, do mesmo modo que em Rayuela ou no conto “Manuscrito hallado en un bolsillo”, em que o personagem também propõe uma aventura narrativa pelos metrôs de Paris e por seus vidros e espelhos que reproduzem uma vida que está além do que vê/narra.

Tudo em “Continuidad” parece estar além do que se vê. É somente no fim que de fato nos aproximamos de tal suposição, quando, pouco a pouco, “palabra a palabra”, o desfecho da intriga do livro se choca contra o desfecho do conto em si: as cenas enfim se encontram no mesmo cenário, o gabinete do personagem, e no mesmo tempo (pois a última frase não apresenta nenhum verbo conjugado no pretérito e poderia/pode estar no presente). A saber:

Los perros no debían ladrar, y no ladraron. El mayordomo no estaría a esa hora, y no estaba. Subió los tres peldaños del porche y entró. Desde la sangre galopando en sus oídos le llegaban las palabras de la mujer: primero una sala azul, después una galería, una escalera alfombrada. En lo alto, dos puertas. Nadie en la primera habitación, nadie en la segunda. La puerta del salón, y entonces el puñal en la mano, la luz de los ventanales, el alto respaldo de un sillón de terciopelo verde, la cabeza del hombre en el sillón leyendo una novela.

Reconhecemos os cachorros, o mordomo que não estava naquele momento, reconhecemos até aquele cenário como sendo o do personagem que ali está, mesmo não sabendo bem se esses elementos de fato fazem parte desta outra camada do enredo, que poderíamos chamar de “a real” (não a do livro). Talvez não seja sequer uma questão de “não saber” (o que Cortázar propõe talvez não seja isto), mas de “não lembrar”. Como é possível que uma narrativa, uma ficção, uma história, ou a história de nós mesmos ali projetada, se sustente sem elementos que nos amarram pela lembrança a ela? Como podemos ser reais ou ficcionais sem a costura tão imprecisa da memória? Daí a sensação da impotência, de questionamento, de que nossa própria percepção narrativa foi colocada em xeque. Mas o que estamos lendo afinal? Certamente é esta a pergunta que o personagem se faria também.

Um certo antagonismo se integra em todas as camadas da narrativa. Se tomarmos a conceituação e a reflexão de Renato Poggioli, sobre as vanguardas, em seu livro Teoría del Arte de Vanguardia, faz sentido sua suposição de que as vanguardas guardam um código de conduta, que consiste em uma perversão ou subversão integral do código da conduta convencional. Quando Cortázar une duas pontas tão extremas, a do romance com o conto, a do personagem externo com a do interno (por falta de melhor termo), a do leitor com o lido, ele subverte uma categoria que põe em suspenso todas as engrenagens narrativas. Não como se o motor parasse ou passasse a girar ao contrário, mas como se desse origem a uma outra direção, à direção de si mesmo, da (1) metalinguagem, da (2) memória e da (3) impotência diante da experiência real e da experiência virtual.

Questões ligadas à memória e seu papel desdobrado (e problematizado) nas narrativas são motivos caros à modernidade pós-Freud. Marcel Proust, com sua Recherche, foi certamente um dos grandes mestres no tratamento dado a esse tema. Nas primeiras páginas da longa introdução do primeiro volume, Du Côté de Chez Swann, uma espécie de longa reflexão, de caráter quase ensaístico, comove o leitor que começa a se aventurar pela busca de seu tempo perdido. O protagonista/narrador está na cama, ainda infante, a ler um romance e, com sono, passa a fechar os olhos para acordar em seguida se perguntando o que é realidade e o que é feito da matéria do livro que está a ler. Estaria ele dentro daquelas catedrais descritas pelo livro que tem em mãos? Não fazemos, a propósito, semelhante questionamento ao lermos este “Continuidad de los Parques”, de Cortázar? Não se fez o próprio personagem?

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