O Cânone em Pauta

Podcast – Realismo Mágico

Os cânones literários apontam que Dom Quixote foi o primeiro romance moderno justamente ridicularizando a magia dos romances de cavalaria. Desde então o romance de costumes nos ensinou a ver a vida como ela é, sem feitiços, superstições, milagres. Ora nos conduzindo sobre grandes panoramas históricos ora por entre labirintos psicológicos, os romancistas nos abriram o mistério da realidade apesar da ausência do sobrenatural, ou melhor justamente por causa dessa ausência, como entenderam realistas e naturalistas no século XIX.

Não que a literatura fantástica tivesse sumido. Como diz Borges, ela “nasceu com o homem e está no primeiro capítulo do Genesis”. Mas na era da ciência, da indústria e do positivismo, parecia destinada à periferia das fábulas infantis, do terror gótico ou da ficção científica. Porém as atrocidades do século XX intensificaram a noção de “fantástico” além do imaginável. No entre-guerras o mundo do racionalismo iluminista se despedaçava visivelmente nas telas cubistas e expressionistas, e o dadaísmo e o surrealismo levaram a ruptura ao paroxismo. Mas na narrativa literária algo misterioso acontecia, parafraseando T.S. Eliot, “não com um bum, mas com um suspiro.” Aparições inquietantes surgiam aqui e ali, como o nariz ambulante de Gogol ou o homem-barata de Kafka. Logo começaram a se proliferar no novo mundo hispânico: fantasmas, loopings temporais, coincidências impossíveis viraram rotina nas páginas de Borges, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Miguel-Angel Asturias.

Com críticos como Angel Flores, Uslar-Pietri e Luis Leal essa atmosfera ganhou um nome: “realismo mágico” ou “real maravilhoso”. Com Cem anos de solidãode Gabriel Garcia Márquez ganhou um ícone, e com o Nobel para ele, foi canonizada. Menos interessados em destruir o realismo do que em burlá-lo, esses autores pareciam ora expandir nossas categorias do real (induzindo-nos à fé nas possibilidades do invisível) ora rompê-las por completo. Após o “Bum” latino-americano, a mágica se espalhou por toda parte, e a vislumbramos não só em estórias como as de Saramago, Italo Calvino ou Salman Rushdie, mas também nas entrelinhas do cinema de Tim Burton, Woody Allen, Terry Gilliam, entre outros.

Mas o que é o Realismo Mágico? Os críticos disputam: “vemos Homi Bhabha se referindo [a ele] como ‘a linguagem literária do mundo pós-colonial emergente’, enquanto para Jean Franco é ‘pouco mais do que um rótulo para o exotismo’. De acordo com Matei Calinescu, pode ser ‘um grande, talvez o grande, componente da ficção pós-moderna.” (C. Warnes). Para muitos ele o é justamente como ponto de convergência entre o pós-modernismo e pós-colonialismo. Como diz Wendy Faris:

O Realismo mágico. . . ‘re-plenifica’ o modo dominante do realismo no Ocidente, desafiando sua base de representação a partir de dentro. Esta desestabilização. . . . significa que ele serviu como um agente descolonizador. . . . O Realismo mágico combina o realismo e o fantástico de modo que o maravilhoso parece agora crescer organicamente do ordinário, borrando a distinção entre eles. Além disso, a combinação da narrativa fantástica e realista, junto com a inclusão de diferentes tradições culturais, significa que o realismo mágico reflete. . . . a natureza híbrida de muitas sociedades pós-coloniais.

O que será, então, o realismo mágico? Uma vanguarda artística? um gênero literário? uma contradição em termos? E poderá ele solucionar a “terrível pergunta” não respondida por Borges, “a pergunta que não é meramente literária, mas que todos alguma vez sentimos ou sentiremos. O universo, nossa vida, pertence ao gênero real ou ao gênero fantástico?

Convidados

Ana Cecilia Olmos: professora de literatura latino-americana da Universidade de São Paulo.

João Cezar de Castro Rocha: professor de literatura comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de Cultures latino-américaines et poétique de l’émulation.

Sergius Gonzaga: editor e professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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