Ernesto Nazareth: obra e repercussão

É notável e estimulante quando a música de Nazareth é compreendida nos seus próprios termos e não tomada como um exemplar exótico e distante do universo autorreflexivo da produção contemporânea europeia.

O projeto 3 x 22, iniciativa da Universidade de São Paulo que conta com a parceria  do Instituto CPFL e do Sesc-SP, busca promover o debate histórico, artístico, cultural e político em torno do Bicentenário da Independência do Brasil e do Centenário da Semana de Arte Moderna a serem comemorados em 2022. Como parceiro do Instituto CPFL, o Estado da Arte promoverá uma série de artigos, podcasts, textos clássicos e entrevistas dedicados a reflexões sobre temas nacionais.

por Leandro Oliveira

Talvez a figura mais emblemática da música brasileira, Ernesto Nazareth é um personagem único na trajetória de nossa produção instrumental. Em parte pela idiossincrasia de sua recepção, em parte por um certo prestígio – bom que se diga, angariado ainda em vida – no ambiente daquilo que, à sua época, era conhecido como “música séria”, seu catálogo é a expressão de todo o talento de um artista de dotes limitados, mas que segue reiteradamente investigado por pesquisadores, músicos e público.

Quando Mário de Andrade desenvolve sua conferência para a Sociedade Cultura Artística no dia 17 de Novembro de 1926 – em cujo contexto tentamos elucidar, na última coluna do Falando de Música da série 3 x 22, deste Estado da Arte -, abriram-se não apenas as portas da obra de um compositor popular para uma sociedade artística de elite: havia também ali um esforço de divulgação da obra do compositor. Argumentando sobre ser a musicologia brasileira da época “destituída de caráter prático”, Mário chama atenção para questões que estão muito além da mediação de um repertório conhecido para o grande público, mas desprestigiado pelos círculos acadêmicos e sofisticados – tarefa que afinal ele pretende empreender na dita conferência. Esta é também um esforço de fazer inserir o compositor carioca no panteão da produção “séria” nacional.

Mas Mário de Andrade não pôde contar com os recursos técnicos que garantissem os termos de sua empresa. A crítica, esforço de desvelamento público de problema estéticos específicos, sem os guardas-costas da pesquisa científica, esforço de desvelamento técnico para especialistas, fica à mercê da mera reprodução de dados de crônica, sem que tenha por trás uma ciência que apenas “faz discursos, chora defuntos e cisca datas”. Assim, Mário de Andrade não pôde senão desenvolver uma série de observações pertinentes que, reiteradas na publicação de seu texto, em 1928, descrevem o estado precário do trabalho musicológico de seu tempo.

“A musicologia brasileira inda cochila numa caduquice de críticas puramente literárias. Se exceptuando as datas históricas fáceis e as anedotas de enfeite, o diazinho em que uma senhora campineira teve a honra de produzir o talento melódico de Carlos Gomes, as invejas de Marcos Portugal ante a glória nascente de José Maurício, a gente não sabe nada de verdadeiramente crítico, de científico, de básico e principalmente de orientador sobre a música brasileira (…)”

Neste sentido, o esforço de compreensão da obra de Nazareth, por parte de Andrade, é louvável. Seu elogio, corajoso. Mas isso não deve diminuir o fato de que seu método é puramente ensaístico, por vezes intuitivo, e embora se valha de uma série de boas ideias, a elas de fato faltam alicerces documentais que possam subsidiar uma investigação mais objetiva. De qualquer modo, abstraídas as contradições musicológicas, o texto interessa, pois realiza uma uma espécie celebração do personagem que Mário pretende defender – ia escrevendo “canonização”, o que claro deveria ser entendido não no sentido de estabelecer santos, mas de elevar ao cânone, aquele que exatamente a Semana de 1922 colocou à prova. 

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As pesquisas sobre Nazareth contam hoje com uma fortuna crítica notável.  Relevados os tantos textos de imprensa, muitos sinceramente comovidos com a ocasião dramática da morte do compositor, precisamos dizer que o esforço de sua permanência na cultura clássica nacional segue imediatamente após sua morte. Em março de 1934, a Revue Française du Brésil, no artigo “La mort du compositeur Ernesto Nazareth”, assinado por Iwan D’Hunac, publica que “assim que o historiador do futuro estudar as primeiras manifestações da arte musical autóctone (…) ele deverá tomar consciência da influência exercida pela obra de Nazareth.” Nazareth havia morrido em fevereiro daquele mesmo ano. De fato, entre artistas como Francisco Mignone, por exemplo, a referência de Nazareth jamais poderia ser menosprezada – bastaria para tanto ouvir o ciclo das “Valsas de Esquina” (1938 – 1942) que, ao lado do menos conhecido ciclo de “Valsas-Choro” (1946 – 1955), talvez desponte como o desdobramento imediato mais sofisticado do catálogo nazarethiano.

Os esforços de Mário de Andrade são espelhados em 1946, agora por voz e texto do compositor Brasílio Itiberê, num artigo de interesse chamado “Ernesto Nazareth na música brasileira”. Em 1963, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro organizou uma “exposição comemorativa do centenário de nascimento de Ernesto Nazareth”, com a consequente criação de um acervo onde o catálogo do compositor, com partituras, manuscritos iconografia e discografia passam a ser disponibilizadas ao público. Em 1963, Jaime Diniz lança o primeiro estudo sobre a obra nazarethiana, e em 1967. Baptista Siqueira lança o livro Ernesto Nazareth na música brasileira. A esse, sucedem-se artigos e teses acadêmicas, notavelmente as que se desdobram em esforços analíticos, como aqueles publicados por Antonio Nascimento (“A influência da habanera nos tangos de Ernesto Nazareth”, 1990), Paulo Peloso Augusto (”Tangos brasileiros – Rio de Janeiro: 1870/1920”, 1996), Marcello Verzoni (“Ernesto Nazareth e o tango brasileiro”, 1996) ou o esforço historiográfico até aqui definitivo, O enigma do homem célebre – ambição e vocação de Ernesto Nazareth, de Cacé Machado (Editora IMS, 2007) – fruto, esse também, de uma tese de doutorado. Todos esses esforços musicológicos foram antecedidos, porém, por gravações célebres de pianistas como Arnaldo Rebello, Eudóxia de Barros ou Arthur Moreira Lima – que jamais deixaram a imagem de Nazareth decair na inspiração e no gosto dos amantes da música. 

Hoje uma parte considerável de seu acervo está preservado, digitalizado e disponibilizado para público pelos sempre louváveis esforços do Instituto Moreira Salles. É um final feliz, não a história póstuma de um músico menosprezado – ainda mais à luz das paupérrimas condições para a pesquisa científica ou o desenvolvimento mercadológico da música instrumental brasileira desde sempre. 

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Antes de concluir, vale ainda um pequeno comentário. O Nazareth descrito por Mário é uma figura que, “na casa dos sessenta” anos, havia lutado por toda a vida por seu espaço no horizonte da música brasileira, produzindo uma obra de rara “boniteza, uma dinâmica fora do comum” e que de “todas as músicas feitas para as necessidades coreográficas do povo é a menos tendenciosamente popular que pode haver”. Nazareth alcançaria essa síntese pela ausência, em sua música, de “vocalidade” – segundo Mário, a substituição do “tema estrófico pelo motivo melódico, a frase oral pela célula rítmica”. Ao garantir em sua música uma estrutura motívica e celular, Nazareth garantiria sua pujança instrumental. E a isso, sugere ainda Mário, soma-se um pensamento naturalmente pianístico – pleno de “elegância” e “uma dificuldade altiva” -, algo comparável, ainda no ensaio, ao catálogo de Chopin. Para além dessas características, de cunho técnico e poético, Nazareth preservaria ainda dois aspectos flagrantemente brasileiros: raramente abandonaria, em sua música, a alegria, traduzida na forma brasileira de síncope – derivada, segundo ele, do maxixe, mas (importante ressalva!) “não tão baixos”. O ritmo do maxixe – termo tão reiteradamente afastado da produção de Nazareth – é sublimado, por assim dizer, numa música que é popular pela naturalidade e não pelo gosto do compositor. 

O elogio da construção motívica, a produção instrumental “abstrata”, o caráter nacional…  Todos esses são, escusado dizer, valores reconhecidos e positivados pela tradição musical culta da  Europa, desde as décadas finais do século XIX. Nazareth é, em Mário, o autor de um catálogo pronto para reinar ao lado da produção “alta”, nas salas de concerto. A “popularidade” da obra de Nazareth é, nesses termos, meramente aparente: a forma mentis, o cabedal técnico do qual parte, a colocaria ao lado da grande produção internacional.

Hoje, sabe-se, não é bem assim. 

Nazareth era, em 1926, um compositor celebrado, e se sua música não gera os recursos financeiros necessários para uma vida confortável, isso se deve mais por questões de temperamento ou desacerto nos negócios do que exatamente pela falta de oportunidades de reprodução ou de interesse na recepção de sua obra. Em vida, com mais de 200 composições escritas e quase todas publicadas, é reconhecido por Henrique Oswald e Alberto Nepomuceno, amigo pessoal de Villa-Lobos e Catulo da Paixão Cearense vê sua obra despertar interesse de Arthur Rubinstein, tendo peças gravadas nos EUA, e um catálogo na França. 

Está muito longe de ser alguém com dificuldades de se colocar no mercado musical, portanto. Ao menos, não do mercado musical do “divertimento e do passatempo agradável”. É com estas palavras que, em 12 de outubro de 1930, a seção “Discos e Machinas Falantes” do jornal carioca “O Paiz” descreve na crítica do disco “Ernesto Nazareth” a obra de Nazareth. Publicado pela casa fonográfica ODEON, a “execução do mestre é ainda a maravilha que todos admiram” e sua produção merece um reconhecimento inequivocamente positivo: “Nazareth ocupa na nossa música popular (popular, não vulgar) uma proeminência incontestável e inconfundível. É preciso ter bem em conta que ele nunca cortejou a popularidade, fazendo-lhe concessões grosseiras. Ao contrário, procurou sempre guardar intacta a sua feição pessoal, o seu estilo”, é o que diz o jornal. 

É notável e estimulante quando a música de Nazareth é compreendida nos seus próprios termos e não tomada como um exemplar exótico e distante do universo autorreflexivo da produção contemporânea europeia. Quando lemos a matriz do reconhecimento público de Nazareth de seu tempo – reconhecimento inequívoco mas não mitificador –  percebemos as contradições daquilo que Mário de Andrade gostaria, mas não tinha meios de afirmar. É nesta comparação que sua música poderia tornar-se menor. Nazareth ele mesmo talvez não soubesse ou reconhecesse que sua música – ligeira e estimulante, estimulante pois ligeira e despretensiosa, viva e rica de achados – é grande pois, nos seus próprios termos, consequente e poderosa.

Confira o Café Filosófico CPFL especial 3 x 22  “A Música na Semana”, com a professora da USP Flávia Toni.

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