por Ary Quintella
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Na última Carta da Malásia, Tchekhov e os tigres, contei que, em Singapura, em dezembro, fui de teleférico com minha mulher à ilha de Sentosa. Esse foi um dos passeios mais encantadores naquele nosso reencontro, após uma separação de quase um ano por causa do fechamento das fronteiras.
O tempo, desde então, acelerou-se. Enquanto eu estava ainda, na minha imaginação, preparando-me em dezembro para viajar a Singapura e passar o Natal em família, sem eu notar o sábado 26 de março chegou rapidamente. Nesse dia, almocei na Malásia, no estado de Pahang, a uma hora de carro de Kuala Lumpur, em outro lugar chamado Sentosa.
Na verdade, o nome da aldeia é Janda Baik. Traduzido do malaio para o português, daria A Viúva Bondosa. Sentosa é a propriedade rural, perto da aldeia, onde almocei naquele sábado. Devo, na verdade, usar o plural, pois eu não estava só.
Assim como, em alto mar, algum movimento das ondas ou do vento faz prever uma tempestade, na Malásia, desde janeiro, pequenas mudanças haviam começado a surgir, deixando antever que a vida voltaria a um grau maior de normalidade. Após dois anos de restrições, confinamentos, dificuldades, toda evolução positiva, mesmo restrita, pode parecer um furacão ao modificar, embora para melhor, a vida cotidiana.
Ao regressar a Kuala Lumpur depois das festas de final de ano em Singapura, percebi sinais de tsunami. Antes de mais nada, minha mãe, Thereza Quintella, foi autorizada a vir me visitar, embora as fronteiras continuassem, em grande parte, fechadas. Sua chegada, no início de fevereiro, coincidiu com a retomada, pela população de Kuala Lumpur, de uma sociabilidade sem culpa.
Apesar de a Covid estar ainda bem presente — havia entre 20 mil e 30 mil novos casos todo dia — podia-se supor, graças ao alto grau de vacinação, que os perigos da pandemia pertenciam ao passado. Fevereiro, março transcorreram em ritmo intenso, com muito trabalho, reuniões presenciais normalizadas e uma vida social que poucas semanas antes seria considerada inconcebível.
Algum leitor talvez se lembre do livro The Incredible Fruits of Perak, que recebi de presente, em novembro de 2020, do sultão de Perak. A Sentosa de Pahang pertence aos pais do autor daquela obra, o fotógrafo Omar Ariff Kamarul Ariffin. Foi com toda a sua família que minha mãe e eu almoçamos no sábado 26 de março.
A calma era absoluta; “sentosa” significa textualmente paz, tranquilidade. Os pais de Omar Ariff, nossos anfitriões, cuidam da propriedade há cinquenta anos; sua mãe, Frances, australiana de nascimento, é a responsável pelo paisagismo. Ela cultiva no sítio apenas plantas nativas. Há no terreno quatro ou cinco casas de madeira em estilo malaio tradicional, uma delas tendo sido a do bisavô de Omar, onde seu pai, tan sri Kamarul Ariffin, foi criado. “Tan sri” é um título malásio elevado, não hereditário, altamente valorizado, que o rei da Malásia concede em recompensa a méritos pessoais.
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A atmosfera de felicidade na chácara de Sentosa era acentuada pelo fato de que Frances e Kamarul Ariffin, naquele dia, pisavam na sua propriedade pela primeira vez após uma ausência de dois anos, ditada pela pandemia. Estarmos todos ali, naquele sábado 26 de março, era de alguma maneira uma forma de celebrar a vitória sobre a Covid-19.
Era maravilhoso e inesperado que minha mãe, que logo fará 84 anos e que sobreviveu em 2021 a uma infecção do vírus, estivesse ao meu lado em Sentosa, no estado de Pahang, na Península Malaia, admirando os nenúfares, as palmeiras e as diversas coleções da família de Kamarul Ariffin, a 16 mil quilômetros de seu apartamento no Rio de Janeiro, onde passara boa parte dos últimos dois anos confinada.
Em uma das casas de Sentosa está aos poucos sendo organizado um pequeno museu de arte islâmica, com peças colecionadas por tan sri Kamarul Ariffin. Particularmente vistoso é um baú usado, no passado, por viajantes que faziam a peregrinação a Meca. O baú é exposto em uma sala onde as paredes são de madeira rendada.
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Outra casa, pintada de branco e verde, foi trazida do estado de Kelantan — o mais setentrional do país, na costa leste, fazendo fronteira com a Tailândia — e reconstruída em Sentosa. Nela são conservadas outras coleções de Kamarul Ariffin, por exemplo numerosas esculturas representando mães e filhos.
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O passeio a pé pela propriedade e a visita às coleções nos ocuparam mais de uma hora, talvez duas. Caminhamos de volta à casa principal, na varanda da qual almoçaríamos. Uma surpresa adicional nos esperava. A refeição seria preparada diante de nós. Para o leitor, e para mim, talvez isso não signifique tanto, mas para quem gosta de cozinhar e cozinha bem, como é o caso da minha mãe, presenciar como os ingredientes são combinados trouxe uma perspectiva única àquele momento de confraternização.
O almoço era um delicioso laksa. Prato típico da culinária malásia e de outros países do sudeste da Ásia, o laksa é, em sua base, um caldo de massa — em geral de arroz — perfumado com ervas. Os demais ingredientes variam de acordo com a região, mas leite de coco parece ser quase obrigatório. O laksa que estávamos prestes a provar incluía anchovas, camarão fresco, camarão seco, gengibre, bastão do imperador, cúrcuma, galanga, garcinia cambogia, noz da Índia, menta vietnamita e garcinia atroviridis.
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Eu já tinha experimentado esse prato outras vezes. Em setembro de 2020, de férias em uma praia na costa leste, no estado de Terengganu — experiência que contei em A Viagem a Balbec — meu café da manhã costumava ser um laksam, variação local com peixe. Minha mãe, do Rio de Janeiro, manifestara na ocasião, por whatsapp, surpresa de que se pudesse tomar no desjejum o que era essencialmente uma sopa de peixe e macarrão. Eu respondera lembrando a ela que, quando morávamos em Londres, considerávamos normal comer de manhã ovos e toicinho fritos, com salsicha, tomate e feijão. Da mesma forma, em Terengganu parecera-me natural tomar um laksam ao acordar, antes de nadar no Mar do Sul da China.
Em Janda Baik, enquanto almoçávamos, eu ouvia Frances explicar que há em Sentosa uma proliferação de macacos, resgatados de regiões em processo de urbanização. De fato, tanto no passeio a pé como durante o almoço, os únicos sons que ouvíamos eram os dos pássaros e das conversas das famílias de macacos.
Omar nos contava suas experiências como fotógrafo da natureza. Essa não é, descobri ali, uma atividade isenta de riscos, já que uma vez ele e sua filha, então ainda pequena, escaparam por pouco de serem esmagados por um elefante agressivo. Houve também um encontro inamistoso com um urso-malaio. Dias depois, ele me daria de presente um livro seu de fotografias sobre a flora e a fauna da Malásia. As fotos mostram uma enorme variedade de espécies, insetos extraordinários e répteis nativos, um deles uma cobra-real em posição de ataque. A Malásia é, assim como o Brasil, um dos países mais megadiversos do mundo.
O laksa de Sentosa foi certamente o melhor que já provei. Cada colherada criava uma impressão nova ao paladar. Eu teria preferido que a cumbuca nunca terminasse. Estar ali naquela varanda, com aquela família tão amistosa, saboreando aquele prato enquanto admirava a vegetação tão parecida com a da Mata Atlântica era sem dúvida um privilégio. Teria sido uma perfeita ocasião para suspender o tempo, se essa possibilidade existisse.
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Prestando atenção na comida, na conversa dos meus anfitriões, na minha mãe, no verde diante dos meus olhos, percebi que, de certa maneira, eu vivera antes aquela cena. Tudo ali lembrava-me as fotos de Tolstoi, já ancião, sentado à mesa com sua família, ao ar livre, debaixo das árvores em sua propriedade rural, Iasnaia Poliana. Os grandes artistas possuem a capacidade, como muitas vezes eu já notei, de aparecer na nossa imaginação nas circunstâncias menos prováveis. A varanda de uma propriedade rural, na paisagem tropical de Janda Baik, no interior da Malásia, pode evocar as mesmas sensações de quando vemos imagens do autor russo almoçando ou tomando chá, rodeado de mulher, filhos e netos, no campo na província de Tula, frente a uma vegetação bem diferente.
O almoço terminou. Era hora de partir. As horas são fugitivas, mas sua lembrança nem sempre. Aquelas passadas em Sentosa, eu já sabia, ficariam na minha mente.
Minha mãe e eu teríamos, à noite, outro compromisso. O jantar, naquele sábado, complementaria as experiências proporcionadas em Sentosa pela natureza do sudeste asiático, a coleção de arte islâmica, a arquitetura tradicional malaia e o laksa. De volta a Kuala Lumpur, iríamos à casa de um amigo, John Ang, colecionador de indumentária e tecidos antigos malaios. Sentados à sua mesa com outros poucos convidados, provaríamos uma refeição indiana, ouviríamos músicos tocando cítara e rebab, enquanto dançarinos de Odissi apresentariam, de forma coreografada, exemplares das 5 mil peças da coleção histórica do dono da casa. Alguns dos trajes poderiam ter sido usados pelos sultões, heróis e princesas de Os Anais Malaios ou, alternativamente, por Simbad, Aladim, Sherazade e Harun al-Rashid. Haveria uma pequena apresentação de mak yong, arte dramática malaia antiga, cantada.
Seriam vários dias até eu assimilar plenamente a vivência sensorial, cultural, ambiental, gastronômica daquele sábado. Como frequentemente acontece, um livro me ajudou. Relendo os textos de Jorge Luis Borges sobre As Mil e Uma Noites, caí na seguinte frase sua: “Un acontecimiento capital de la historia de las naciones occidentales es el descubrimiento del Oriente”. E, na página seguinte: “Para hablar de un lugar lejano, Juvenal dice: ultra Auroram et Gangem, ‘más allá de la aurora y del Ganges´. En essas cuatro palabras está el Oriente para nosotros”.
Sem dúvida, no dia 26 de março, na Malásia, bem mais além do Ganges e na direção do nascer do sol, o Oriente revelou-se a mim um pouco mais.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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