por Anderson Vichinkeski Teixeira
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Chamar alguém de “visionário” pode soar um tanto forte, até mesmo hiperbólico. Nos dois textos precedentes (Parte I e Parte II), respectivamente, sobre a biografia e sobre a sua concepção de estado de exceção, havia sempre um elemento sombrio no pensamento de Carl Schmitt. Seja por sua personalidade peculiar, seja por sua vinculação ao nazismo, todo um campo de seu pensamento passou algumas décadas fora dos holofotes acadêmicos, tanto que somente depois de sua morte (1985) – e com o surgimento da União Europeia em sua forma institucional atual (1999) – é que tal campo fora resgatado: a filosofia das relações internacionais. Para entender como Schmitt concebia as relações internacionais é necessário passar por três fases: (1) sua tentativa de idealizar um modelo de império alemão em oposição às potências que haviam vencido a Primeira Guerra Mundial, (2) seu conflito teórico dentro do partido nacional-socialista e consequente expulsão, (3) sua concepção de grande espaço como conceito ordenador das relações internacionais. Neste breve ensaio que segue a tentativa é de refletir sobre as razões de ser possível concebê-lo como um “visionário das relações internacionais”, de modo que uma análise mais aprofundada sob a ótica jusfilosófica desenvolvemos em Teoria pluriversalista do direito internacional,[1] texto ao qual de início retemos para maior aprofundamento.
Um bom material para compreender a teoria política schmittiana no tocante ao Estado nas relações internacionais pode ser encontrado em uma coletânea de textos selecionados, publicados de modo esparso por Schmitt ao longos dos anos 1923 a 1939.[2] Especial atenção deve ser dada aos textos entre 1933 e 1939, pois lá estão os famosos “O Führer protege o Direito” (1934) e “O conceito de Império no Direito Internacional” (1939), uma vez que, afastada a relevância da adesão de Schmitt ao nacional-socialismo, vemos que ele reconstrói as noções de Estado e de poder a partir da figura política do mito: trata-se de conceito definido em texto, de 1923, que abre a coletânea e demonstra como Schmitt usaria a obra de Georges Sorel para se apropriar da concepção de mito político e adaptá-la ao seu jusrealismo. Em poucas palavras, Schmitt transforma o mito político em um elemento abstrato que possui a capacidade de congregar em si elementos intersubjetivos capazes de dar união a uma dada coletividade; seria o nível de racionalidade – e, por consequência, de suas ações racionais tomadas coletivamente – o ponto central a diferenciar as sociedades humanas. E seria, sobretudo, o ponto que para Schmitt demonstraria a superioridade intelectual, moral e histórica do Volksgeist, isto é, o “espírito do povo” alemão, um conceito clássico na filosofia alemã, mas que para Schmitt seria a prova de que a evolução histórica do povo alemão teria sido um processo sem nada similar.
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O dissenso doutrinário entre os nazistas começou a partir do momento em que Schmitt idealizava as bases de sua teoria dos grandes espaços (Grossraumlehre). Os elementos essenciais que adotava eram substancialmente diferentes da teoria que, futuramente, seria a hegemônica na política hitleriana, isto é, a teoria do “espaço vital” (Lebensraum), pois aquela não tinha nenhuma relação com a ideologia racista do Terceiro Reich, a qual possuía um critério biológico como ponto de referência para a constituição do que seria o Lebensraum.[3] Enquanto este conceito exprimia o ideal da supremacia da raça ariana frente a todas as outras, o conceito de Grossraum exprimia a dominação política, ideológica ou ainda econômica de um país, ou melhor, de um Império (Reich),[4] segundo a terminologia schmittiana, frente a outros países; tal influência seria exercida, direta ou indiretamente, mas sempre mediante o reconhecimento de dita superioridade política, ideológica, econômica ou tecnológica.
Quando Karl Haushofer, ex-professor e à época conselheiro de Rudolf Hess, assume funções dentro do Partido, a afirmação da noção de “espaço vital” (Lebensraum) toma conta dos discursos políticos e da propaganda nazista conduzida por Joseph Goebbels. A presença era tanta que Hitler frequentemente usava essa expressão em seus discursos, sobretudo depois de 1935, pois falar em “espaço vital” significava sustentar que o império alemão teria o direito de anexar todo o território necessário para satisfazer as exigências da sua própria população. A implementação teórico-normativa do espaço vital chegou ao ápice no momento em que foram editadas as Leis Raciais de Nuremberg. Era uma teoria geopolítica que se enquadrava na visão de mundo de Hitler porque se baseava na eterna luta entre os povos para conquistar a terra, pois o “espaço vital” (Lebensraum) seria guiado por leis da natureza que premiam somente os mais fortes.[5]
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Mesmo um crítico, embora profundo conhecedor da obra na sua integralidade, como Jan-Werner Müller destacou que Schmitt não havia jamais utilizado critérios biológicos ou racistas em sua teoria do “grande espaço” (Grossraumlehre), mas advertia para o fato de que em tal teoria existiria um “vazio substancial” interno que “poderia facilmente ser preenchido com categorias racistas.”[6]
Ocorre que foi somente após sua expulsão do partido nacional-socialista e entrada em um período de “esquecimento” por parte do regime que Schmitt decide mergulhar por completo na temática do que definia como “grande espaço”. O seu primeiro texto de maior relevo foi apresentado pela primeira vez em 1939.[7] Não obstante tenha sido amplamente criticado como um momento de profundo envolvimento intelectual com o regime, o tempo demonstrou que se tratava de uma crítica à política hegemônica do “espaço vital” (Lebensraum), já que ela se assemelharia muito à versão universalista da “doutrina Monroe” com a qual os Estados Unidos tentaram impor a sua hegemonia em escala global. Assim, além das diferenças substanciais entre o Lebensraum nazista e o Grossraum schmittiano, salta aos olhos também uma incompatibilidade lógica entre essas duas propostas: o próprio Schmitt dizia que sua teoria seria uma alternativa ao universalismo, algo que resumiu na célebre frase o “‘grande espaço’ contra o universalismo (Grossraum gegen Universalismus).”[8]
Estruturalmente, um Grossraum não englobaria todos os Estados que o compõem como uma fração do Império dominante, uma vez que a existência de um Império não coincide com a existência do seu respectivo Grossraum. Da mesma forma pode ocorrer que a todo Império corresponda de qualquer forma um Grossraum em que “dominam as suas ideias políticas e no qual não podem ser permitidas intervenções estranhas.”[9] Para Schmitt, sempre foi importante ressaltar que a relação entre Império e “grande espaço” é, de fato, baseada na dominação política, ideológica, cultural e/ou econômica que o primeiro é capaz de exercer dentro do segundo.
Com isso, a existência de diversos “impérios” (grandes potências) implicaria em dividir o globo terrestre em “grandes espaços” (Grossräume), cada um guiado por um império em condições de manter internamente a ordem e a paz, dado que, do ponto de vista da relação entre os “grandes espaços”, o princípio de não intervenção seria responsável por manter o equilíbrio entre eles e, por consequência, tornar-se-ia a norma fundamental do direito internacional.[10]
Considerando que na Grossraumlehre schmittiana existiria o já referido vazio substancial interno, isto é, uma ausência de conteúdo propriamente normativo, há ainda um ponto a ser respondido: como nortear o grande espaço e as nações com base em interesse comuns? Interesses que não sejam condicionados por parte dos interesses econômicos e comerciais do Império dominante. Schmitt nunca enfrentou diretamente esse questionamento, deixando uma série de discussões no campo acadêmico correrem livremente. Por exemplo, Christian Joerges sustenta que, basicamente, Schmitt deixou esse “vazio” em sua teoria ou porque não acreditava na importância da institucionalização de uma espécie de racionalidade econômica, técnica ou política; ou porque, ao abandonar a teoria tradicional do direito internacional, ele não identificaria estruturas fundamentais em condições de superar a função que o princípio de soberania até então exercia, embora, para ele, fosse uma categoria política condenada a ser superada pelo grande espaço.
A atualidade dessa construção de Schmitt não está em ser ela aplicável, mas, primeiramente, no fato de que, cada vez mais, a função do Estado seria limitada por instâncias transnacionais originadas dentro da ordem internacional. Ao Estado nacional restaria o tratamento interno de questões concernentes aos seus problemas não comunicáveis com as demais ordens supranacionais ou transnacionais.
Talvez a grande contribuição de Schmitt para o século XXI tenha sido reposicionar a relação Estado e ordem internacional, colocando ambos em uma relação de complementariedade e interdependência funcional. Crises globais, como a do coronavírus no ano de 2020, demonstram que uma vasta rede de normatividade internacional está em pleno desenvolvimento, formando uma espécie de constitucionalismo transnacional. Em artigo publicado no Estado da Arte, Dominique Rousseau bem salienta a importância de um próximo passo nesse processo evolutivo: a formação de uma governança global democrática. Schmitt dizia, em texto de 1933, que a Constituição é a “decisão política fundamental” de uma ordem política.[11] Ocorre que, em um constitucionalismo transnacional, verifica-se que a função da constituição será instrumentalizar a aplicação e efetivação de políticas públicas internacionais, decididas tanto no âmbito regional como supranacional, uma vez que, por uma obviedade prática, não seria possível a qualquer instituição internacional de amplitude global garantir a efetividade de suas normas e de suas políticas em todas as regiões do globo terrestre.
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Ao que conhecemos ainda como “constituição nacional” restaria a função de ser a decisão política fundamental daquela dada comunidade política. Todavia, as comunidades políticas nacionais estariam, cada vez mais, interligadas em um pluriversum de ordens transnacionais. Em outro momento sustentamos a tese de que, por um lado, o conceito de império é altamente inadequado ao século XXI, enquanto que, por outro lado, vínculos históricos, culturais e políticos entre os povos, guiados por um princípio de solidariedade, estariam em melhores condições para preencher qualquer “vazio substancial” deixado na teoria schmittiana, possibilitando que novos “espaços regionais” pudessem ser criados.[12] Tais vínculos seriam elementos materiais hábeis a fundamentar um modelo de regionalismo que, como dizia Danilo Zolo, deveria ser policêntrico e multipolar, cujas decisões teriam força normativa e seriam tomadas a partir da negociação multilateral e dos processos de integração regional.[13]
Assim como Schmitt previu que diversos institutos clássicos do direito público não chegariam inabalados ao final do século XX, previu também que o Estado e sua soberania nacional entrariam o século XXI em contínuo processo de esvaziamento; um processo que seria norteado por um novo nomos da Terra,[14] por uma necessária imposição de interesses humanos básicos em face dos próprios Estados nacionais, por uma ordem internacional em progressiva complexização e especialização funcional.
Não mais em uma era de Estados competindo entre si anarquicamente, como Leviatãs uns contra os outros, a ordem constitucional transnacional que assistimos se desenvolver neste século demanda cooperação e solidariedade entre os Estados, entre as comunidades regionais, entre os organismos internacionais e, em última instância, entre as distintas concepções de mundo que norteiam os povos.
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Notas:
[1] TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
[2] SCHMITT, Carl. Positionen und Begriffe im Kampf mit Weimar, Genf, Versailles 1923-1939. Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1940, trad. it. Posizioni e concetti in lotta con Weimar-Ginevra-Versailles 1923-1939. Milano: Giuffrè, 2007.
[3] BENDERSKY, Joseph W. Carl Schmitt Theorist for the Reich. Princeton: Princeton University Press, 1983, trad. it., Carl Schmitt teorico del Reich. Bologna: il Mulino, 1989, pp. 313.
[4] “Sono imperi (Reich), in tal senso, quelle potenze egemoniche e preponderanti la cui influenza politica s’irradia su un determinato ‘grande spazio’ e che per principio bandiscono da quest’ultimo l’intervento di potenze stranee.” SCHMITT, Carl. Völkerrechtliche Grossraumordnung mit Interventionsverbot für Raumfremde Mächte – Ein Bitrag zum Reichsbegriff im Völkerrecht. Berlin: Deutscher Rechtsverlag, 1941, trad. it. Il concetto d’Impero nel diritto internazionale. Ordinamento dei grandi spazi con esclusione delle potenze estranee. Roma: Settimo Sigillo, 1996, p. 45.
[5] Cfr. CORNI, Gustavo. Il sogno del ‘grande spazio’. Le politiche d’occupazione nell’Europa nazista. Roma-Bari: Laterza, 2005, p. 05
[6] MÜLLER, Jan-Werner. A Dangerous Mind. Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven: Yale University Press, 2003, p. 43. (tradução livre)
[7] Trata-se de SCHMITT, Carl. Völkerrechtliche Grossraumordnung…, trad. it. cit.
[8] Ver SCHMITT, Carl. Grossraum gegen Universalismus. Der völkerrechtliche Kampf um die Monroedoktrin. In: Id. Positionen und Begriffe im Kampf mit Weimar, Genf, Versailles 1923-1939. Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1940, trad. it. Posizioni e concetti in lotta con Weimar-Ginevra-Versailles 1923-1939. Milano, Giuffrè, 2007.
[9] SCHMITT, Carl. Völkerrechtliche Grossraumordnung…, trad. it. cit., p. 45. (tradução livre)
[10] SCHMITT, Carl. Völkerrechtliche Grossraumordnung…, trad. it. cit., pp. 45-46.
[11] SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 2011, p 23-25.
[12] TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional, cit.
[13] ZOLO, Danilo. “La profezia della guerra globale” (Prefazione). In: Las Casas, Bartolomé de (a cura di Giuseppe Tosi). De Regia Potestate. Roma-Bari: Laterza, 2007, p. XXI.
[14] SCHMITT, Carl. Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum. Berlim: Duncker&Humblot, 1974, trad. it. Il nomos della terra nel diritto internazionale del Jus Publicum Europaeum. Milano: Adelphi, 2003.
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