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Daniele Menozzi (Reggio Emilia, 1947), professor emérito de História Contemporânea na Scuola Normale Superiore di Pisa, graduou-se em 1970 na Universidade de Bologna. Colaborando com o Istituto per le scienze religiose di Bologna, concentrou seus estudos sobre a visão católica sobre o Iluminismo e a Revolução Francesa e, posteriormente, sobre as cartas pastorais dos bispos itaianos na Idade Contemporânea. A partir dos anos oitenta, voltou-se às questões em torno das relações entre o catolicismo e a sociedade do período revolucionário aos nossos dias. Com publicações que giram em torno de quatrocentos títulos, enfrenta o tema da presença cristã no mundo moderno secularizado.
Entre suas obras, destacam-se Giovanni Paolo II: Una transizione incompiuta (Morcelliana, 2006), Chiesa e diritti umani (Il Mulino, 2012), e Da Cristo Re alla città degli uomini (Morcelliana, 2019). No Brasil, teve uma obra editada: A Igreja Católica e a secularização (Paulinas, 1999).
Em entrevista exclusiva ao Estado da Arte, conduzida por nosso colaborador, tradutor, ensaísta Rodrigo Coppe, Menozzi falou sobre a secularização, o mundo moderno, as revoluções, a Igreja Católica, o nosso tempo.…..
Como o senhor analisa o debate em torno do conceito de secularização a partir do olhar do historiador do cristianismo moderno e contemporâneo?
O conceito de secularização constituiu e ainda constitui uma categoria analítica útil para se compreender o desenvolvimento histórico da Idade Moderna e Contemporânea.
O valor heurístico desse conceito foi justamente colocado em questão pelo fato de ter sido utilizado como um paradigma universal preditivo. A secularização foi interpretada como um caminho histórico inescapável em nível planetário: previa o desaparecimento da religião após a difusão global dos processos de desenvolvimento econômico capitalista. O “retorno da religião” no mundo contemporâneo desmentiu essa concepção.
Mas a categoria de secularização mantém sua utilidade não tanto como uma previsão de uma ordem futura, mas como um instrumento para compreender o passado (e também oferecer orientações para se entender o presente). Basta pensar que no passado os sujeitos históricos elaboraram esta categoria para interpretar a realidade que viviam. No curso do tempo, o seu conteúdo semântico mudou gradualmente em relação seja aos diversos contextos geoculturais, seja às mudanças no tempo da relação entre religião e sociedade. Se desejamos indagar corretamente acerca deste passado, não podemos nos furtar da análise da forma pela qual diversos autores históricos recorreram ao conceito de secularização para explicar os eventos em que foram protagonistas. Trata-se de uma chave hermenêutica que, em comparação com o tempo e o espaço, permite entrar nos mundos culturais que nós hoje pretendemos reconstruir. Ao mesmo tempo, permite compreender a homogeneidade e as diferenças com o que acontece em nosso mundo.
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Como compreende as relações entre secularização e a Igreja Católica?
A Igreja de Roma foi fortemente marcada pela leitura da secularização fornecida pela cultura intransigente que teve hegemonia no mundo católico da segunda metade do Oitocentos até o Concílio Vaticano II (1962-1965). Para o intransigentismo, a secularização equivalia à descristianização. De fato, aos olhos dos intransigentes, tolher o controle das instituições públicas da Igreja, de modo que houvesse uma sobreposição entre as normas da ética cristã e as leis positivas de um Estado, significava impedir a Igreja de desenvolver a sua missão fundamental: operar eficazmente na história com o objetivo de assegurar a salvação eterna dos homens. Com o Vaticano II, iniciou-se a distinção entre secularização e secularismo. Com o primeiro termo, indica-se a emancipação da atividade temporal da tutela eclesiástica exercida nos tempos da cristandade. Nestes termos, a secularização significa o processo pelo qual se chega ao reconhecimento da autonomia da esfera mundana. Este processo não visa colocar em discussão o mistério e o sobrenatural; quer separar o plano temporal do religioso, liberando a fé cristã das incrustrações estranhas ao Evangelho que o sobrepuseram ao longo do séculos da era Constantiniana.
O secularismo representa, por outro lado, uma leitura ideológica da realidade em virtude da qual não existe nenhuma outra dimensão fora da material. A Igreja Católica nos primeiros anos do pontificado de Paulo VI utilizou essa expressão para liberar a sua relação com o mundo moderno da cultura intransigente, mas logo a abandonou. Com João Paulo II e sobretudo com Bento XVI retornou-se a uma sobreposição entre secularismo e secularização, provocando incerteza e confusão na cultura católica.…..
É correto afirmar que a Revolução de 1789 foi o momento paradigmático que levou o surgimento de correntes internas ao catolicismo que vigoram ainda hoje, conceituadas como progressismo e conservadorismo? Como entende os usos dessa terminologia no campo de pesquisas que tem o catolicismo como objeto de estudo?
Não há dúvida que a Revolução Francesa, proclamando o valor universal de seus valores, levou a uma divisão no campo católico. A Igreja oficial se opôs aos princípios de 1789, em particular à tradição de liberdade, igualdade e soberania popular como direitos humanos fundamentais, porque acreditava que eles estavam em contraste com a Revelação. Por outro lado, uma corrente do mundo católico – que então se denominava “democracia cristã” – acreditava que estes princípios tinham raízes no Evangelho. Tanto os “progressistas” quanto os “conservadores” do campo católico baseiam suas escolhas políticas na fé cristã. Na nova sociedade resultante da Revolução Francesa, essa tendência foi estimulada pela não aplicação pelos governos democráticos liberais de uma separação entre a religião e o Estado moderno: a sacralização de entidades políticas (por exemplo, a religião da liberdade, a religião da nação, a religião da raça, a religião da classe, a religião dos direitos humanos etc.) foi um recurso frequentemente usado e que visava substituir o cristianismo como fator coagulador dos laços sociais da comunidade com uma nova religião secular.
Em uma atmosfera política encharcada pelo sagrado, era difícil para os católicos estabelecer o critério da laicidade na base de suas escolhas políticas. Em vez disso, acho que esse é o critério fundamental para investigações científicas que tomam o cristianismo como objeto de estudo. A história da Igreja, como qualquer outra história, visa apenas averiguar o que aconteceu, sem desejar justificar uma opção política, uma ideologia, uma fé. Existem historiadores que sabem fazer bem seu trabalho e historiadores que o colocam a serviço de seus pré-entendimentos ou preconceitos ou ainda daqueles que ocupam posições de poder.
…Podemos dizer que o espaço público no Ocidente é atravessado atualmente por uma politização do religioso? Quando o fenômeno se iniciou, como se manifesta e quais são seus riscos?
O mundo atual é marcado pelo “retorno dos religiosos”: isso é evidenciado pela manifestação em todas as religiões do mundo de correntes fundamentalistas que pretendem regular todos os aspectos da vida coletiva à luz de normas consideradas absolutas e, portanto, válidas para todos e em todos os lugares. Mesmo no Ocidente, onde o processo de secularização foi mais intenso, as várias denominações cristãs veem as correntes fundamentalistas se fortalecendo. No entanto, este é um fenômeno quantitativamente limitado. Mas essas correntes encontram terreno de desenvolvimento em outro fenômeno que está ligado ao “retorno dos religioso”: o uso político da religião como um canal para obter consenso. Certamente não é um fenômeno novo. A exploração de símbolos religiosos para fins políticos tem uma história de séculos. Hoje, retorna em políticos que não hesitam em levantar o rosário ou invocar a proteção do Imaculado Coração de Maria em suas campanhas eleitorais e até mesmo durante os discursos no Parlamento. Manifesta-se também na invocação de leis que impõem a presença em locais públicos dos símbolos de uma religião identificada com uma civilização superior a qualquer outra (por exemplo, o crucifixo nos tribunais ou o berço nas salas de aula). Ou assume a face da proclamação constitucional da identidade cristã de uma nação, prevendo regras que punem criminalmente aqueles que a questionam. A importância desses fenômenos reside no fato de que eles se entrelaçam ao “retorno do religioso”, despertando uma lembrança sedimentada do contraste entre religião e a política: a politização atual dos religiosos é instrumental, mas aos aprendizes de feiticeiros escapam facilmente os espectros que evocaram incautamente.
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Nota-se também a emergência de uma sacralização da violência na contemporaneidade. Como o senhor analisa a questão?
Um dos pontos mais altos do pontificado de João Paulo II foi a denúncia da impossibilidade de justificar a violência em nome de Deus, em particular a violência bélica. O Encontro de Assis (1986), em que os representantes de numerosas religiões se encontraram para rezar pela paz, demonstrou que esta posição era largamente compartilhada. Todavia, o Papa Wojtyla não seguiu sempre com coerência essa linha: no Catecismo da Igreja Universal, por exemplo, retorna à teologia da guerra justa e, assim, assiste-se a uma moralização da violência. Mas ele foi responsável por uma primeira rejeição da sacralização da violência e, com o pedido de perdão pelos erros cometidos no passado pela Igreja, estabeleceu o início de um processo que levou às declarações de não violência de Francisco como método pelo qual o cristão deve confrontar os conflitos.
O significado dessa afirmação parece evidente se pensamos que, atualmente, o critério fundamental de leitura da geopolítica mundial é o “choque de civilizações”, onde o fator religioso surge como elemento primário de identificação de cada civilização. Nessa situação, alguém que queira emprender uma guerra leva inevitavelmente sua religião. A difusão de uma sacralização da violência é a sua consequência. Basta pensar que as intervenções militares dos Estados Unidos no Oriente Médio foram qualificados como espécies de “cruzadas”, enquanto os atentados terroristas islâmicos como jihad, a Guerra Santa. A justificativa da violência sobre a base destas categorias herdadas de um passado medieval em que o religioso permeava cada expressão da vida humana é um bom testemunho do retorno da sacralização da violência no mundo de hoje. E torna evidente o papel que a Igreja pode desempenhar na purificação da memória.
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João XXIII e o Concílio Vaticano II (1962-1965) colocaram em andamento um projeto de aggiornamento (atualização) da Igreja Católica. Como avalia esse projeto nesses quase 60 anos de evento conciliar?
O aggiornamento eclesial promovido por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) tinha como razão fundamental a dificuldade de transmitir a mensagem do Evangelho aos homens e mulheres contemporâneos. A partir da Revolução Francesa, a Igreja elaborou uma proposta pastoral cuja fé católica era entendida em contraposição à modernidade, em particular a autonomia do sujeito na construção das estruturas da vida coletiva. Disso derivava um crescente afastamento da Igreja daqueles que queriam autodeterminar as instituições fundamentais da sociedade. A crença de que os católicos tinham de adaptar a formulação da mensagem cristã aos tempos modernos era muito difundida. Mas sobre a modalidade do aggiornamento existia diversidade de ideias. Para alguns, tratava-se de retomar o modelo construído pelo filósofo francês Jacques Maritain: era necessário inserir na doutrina tomista os aspectos da modernidade (por exemplo, direitos humanos, em particular o direito à liberdade religiosa) que eram compatíveis com ela. Em suma, era uma questão de construir uma “nova cristandade”.
Para outros, era necessário uma mudança mais radical. Era necessário inserir a Igreja no devir da história humana: a sua presença na sociedade devia se basear na leitura dos sinais dos tempos à luz do Evangelho, que, por sua vez, era sempre mais compreendido no decorrer da história. Não havia nenhuma “nova cristandade” a ser reconstruída, mas apenas dar testemunho do Evangelho com esperança confiante de que os homens o receberiam. Entre estas duas linhas, o papado pós-conciliar acabou escolhendo a primeira. Mas ao mesmo tempo a modernidade se transformava: a pós-modernidade surgia e a reivindicação de autonomia do indivíduo alcançava as estruturas antropológicas mais profundas da vida humana. Dessa forma, a proposta pastoral da Igreja estava novamente atrasada em relação ao mundo contemporâneo, dificultando o diálogo que a atualização conciliar tentara promover.
.Na América Latina, vigora a chave hermenêutica historiográfica e teológica, construída no contexto da polêmica do Vaticano com a Teologia da Libertação no início da década de 1980, de que o papado de João Paulo II teria traído o Concílio e a tarefa de atualização da Igreja. Em que elementos se baseia essa perspectiva analítica e como o senhor compreende o período?
Não creio que se possa dizer que João Paulo II tenha traído o Concílio. Nos documentos do Concílio, não há uma única linha para a atualização eclesial. Entre as propostas de renovação que podem ser obtidas, a Teologia da Libertação escolheu uma, enquanto o Papa Wojtyla escolheu outra. A posição escolhida pelo pontífice não é compatível com aquela versão da Teologia da Libertação que, para emancipar a pessoa da servidão da miséria e da injustiça, privilegia a dimensão político-econômica sobre a religiosa. Era uma posição já expressa por Paulo VI, mas, enquanto Montini assegurava liberdade da discussão teológica, João Paulo II, com o fundamental apoio do então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, não hesitou em condenar os teólogos que ele acreditava desviarem dos princípios doutrinários ortodoxos.
Este triste momento eclesial mostrou que uma aplicação uniforme da atualização conciliar dificulta a capacidade apostólica da Igreja. A realidade do mundo atual é muito variada; portanto, cabe às comunidades locais definir a maneira mais apropriada de transmitir a mensagem do Evangelho em contextos socioculturais que têm características muito específicas e muito diferentes. A teologia da libertação também tem múltiplas faces: é uma prova dos fatos de que cada uma de suas correntes pode medir sua capacidade efetiva de tornar o Evangelho conhecido e praticado.
Como analisa o pontificado de Francisco no contexto mais amplo de atualização da Igreja e a multiplicação de grupos tradicionalistas em várias partes do mundo?
papado de Francisco é compreendido à luz da renúncia de Bento XVI. O ato de Ratzinger – incomum na história milenar da igreja – encontra razão em sua consciência da impossibilidade de enfrentar a profunda crise eclesial que surgira. Não foi uma crise devida apenas aos escândalos sexuais e financeiros que vieram à tona com maior frequência. Na realidade, não havia mais uma linha de governo da Igreja universal baseada na proposta da neocristandade que, além disso, em comparação com o governo de João Paulo II, Bento XVI havia endurecido. A escolha de Bergoglio – foi a primeira vez que um papa veio da América Latina e da Companhia de Jesus – se deve precisamente à percepção da necessidade de mudança. Francisco não decepcionou as expectativas. Ele deixou de lado o projeto, cultivado pelo papado pós-conciliar, de que, para restaurar a capacidade apostólica da Igreja, a doutrina tradicional poderia ser atualizada com alguns enxertos modernos. Em vez disso, ele se reconectou à linha que apareceu em algum texto do Concílio Vaticano II e nos primeiros anos do pontificado de Paulo VI, segundo os quais a Igreja, vivendo a história – entendida como uma compreensão cada vez melhor do Evangelho – caminha com o tempo, juntamente com os homens e mulheres contemporâneos, tentando apoiar seus esforços para uma melhor convivência civil e se esforçando para curar as feridas que sofrem nesse processo. É uma mudança radical de atitude e mentalidade baseada no núcleo central do Evangelho que Francisco identificou na misericórdia. A resistência conservadora e tradicionalista desacelerou sua tradução para a prática eclesial concreta, mas a face da Igreja já mudou. Somente o futuro revelará a profundidade e a eficácia dessa mudança.
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(Entrevista e tradução: Rodrigo Coppe)