Relações Internacionais

China, 20 anos depois

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China, 20 anos depois

Impressões e reflexões ligeiras de um ex-Embaixador do Brasil em Pequim

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por Sergio Duarte

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A cidade de Pequim que vi pela primeira vez em 1996 na qualidade de embaixador-designado do Brasil e membro da comitiva brasileira na visita oficial do então presidente Fernando Henrique Cardoso, era repleta de pedestres e ciclistas e tinha aspecto descuidado. O aeroporto onde desembarquei era pequeno, antiquado e ineficiente. Nas largas avenidas da área urbana viam-se poucos veículos. Boa parte do comércio popular era feito em tendinhas ou barracas nas calçadas e a maioria da população — aproximadamente 12 milhões dentro dos limites da cidade — vivia nos tradicionais hu-tongs, espaços residenciais delimitados por muros altos cujo acesso se dava por ruas estreitas e um único portão. No interior moravam diversas famílias em edificações de um pavimento, que dispunham de cozinha comum e de uma fossa aberta no chão para a higiene geral. O conteúdo das fossas era regularmente recolhido por carrinhos de mão que os ocidentais chamavam pelo poético apelido de “honey wagons” e depois levado em caminhões para servir de adubo nas hortas e pomares da periferia da cidade. Muitas daquelas habitações tradicionais foram sendo demolidas durante o tempo que durou minha missão em Pequim, a fim de dar lugar a grande número de edifícios residenciais.  Por toda parte havia também prédios de quatro ou seis pavimentos, sem elevador, construídos em anos anteriores, com apartamentos pequenos e mal cuidados. Em cada andar havia em geral uma cozinha e um banheiro para uso comum dos moradores. Os estrangeiros — diplomatas, empresários, jornalistas — ocupavam apartamentos mais espaçosos em quadras residenciais especiais ou, no caso dos primeiros, também em compounds dentro do terreno das respectivas embaixadas.

Na avenida Chang’An, que corta a parte central da capital chinesa, ergue-se o antigo e histórico conjunto de prédios oficiais da Cidade Proibida, sede dos governos imperiais, acima de cuja entrada monumental há um grande retrato de Mao Zedong. Diante da entrada, do lado oposto da avenida, abre-se a espaçosa Tiananmen, a Praça da Paz Celestial, onde fica o mausoléu com o corpo embalsamado do falecido Secretário Geral do Partido Comunista Chinês (PCC), aberto à visitação. O Grande Salão do Povo, onde se realizam os congressos do Partido e as grandes solenidades do governo, ocupa o espaço à direita da praça. No lado oposto à Cidade Proibida via-se um restaurante McDonald’s. Não muito longe da praça havia sido aberta uma churrascaria brasileira por iniciativa de uma empresa exportadora de carne bovina. Nessa área central e especialmente ao longo da avenida e arredores iam sendo erguidos muitos edifícios de aspecto arquitetônico misto entre oriental e ocidental. Ali estão também a principal estação ferroviária e hotéis modernos semelhantes aos ocidentais. A impressão geral era de uma grande metrópole em movimento; não se viam pessoas desocupadas e todos pareciam estar indo ou vindo de ou para algum lugar, a pé ou de bicicleta, por conta de seus afazeres. Uma das principais diversões dos estrangeiros, inclusive turistas, era visitar o mercado de antiguidades ao ar livre. Naturalmente era impossível verificar a idade das peças oferecidas, mas eu costumava dizer que se eu comprasse alguma, essa seria a prova de que eram realmente antigas.      ­

Aos poucos a cidade ia ganhando fisionomia mais moderna, com arranha-céus com apartamentos para famílias da classe média que vinha crescendo rapidamente. Outros edifícios para atividades comerciais iam surgindo como que da noite para o dia e novas e amplas avenidas iam sendo abertas. Ao voltar de um mês de férias não reconheci o bairro adjacente à parte central da cidade, onde ficavam algumas das embaixadas estrangeiras, inclusive a do Brasil, todas de aparência sóbria e vetusta, que datavam ainda dos tempos de Mao Zedong. Felizmente havia o motorista para indicar o caminho até a nossa embaixada.

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(Reprodução)

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Transformação

Três anos e meio depois, em 1999, quando me despedi para assumir minha missão seguinte, as multidões de ciclistas tinham praticamente desaparecido. Os pedestres ainda enchiam as ruas e avenidas de Pequim, mas agora o tráfego de veículos era intenso e bastante indisciplinado, com dezenas de milhares de automóveis e caminhões, apesar de já estar em funcionamento o terceiro anel rodoviário — poucos anos mais tarde já havia cinco. Muitos transeuntes, principalmente os mais jovens, já não vestiam o típico uniforme usado indiferentemente por homens e mulheres durante a era maoísta, e ostentavam roupas de estilo ocidental, diversificadas e coloridas. Algumas moças e rapazes pintavam os cabelos de ruivo ou de louro e frequentavam os numerosos bares, restaurantes de fast food e de cozinha ocidental sofisticada surgidos em vários pontos da cidade.

Tive oportunidade de visitar Pequim em 2009, logo após as Olimpíadas e encontrei uma cidade bem mais limpa e organizada. Além dos diversos estádios arquitetonicamente arrojados e outras instalações esportivas, havia novos bairros residenciais e centros comerciais modernos, muitos com artigos de luxo e um imenso aeroporto com ligações para todas as partes do mundo.

A transformação da China começara a ocorrer nos anos 1970, sob a influência do primeiro-ministro Chou En-Lai, e em seguida de Deng Xiao Ping, que assumiu a liderança do país sem deixar de ocupar formalmente a terceira posição na hierarquia do Presidium de sete membros. Deng, revolucionário histórico que participara da “Longa Marcha” percebeu a necessidade de adaptar e redefinir alguns dos dogmas da teoria econômica comunista dominante sob Mao Zedong, a fim de modernizar a economia chinesa e mitigar a pobreza e atraso, trazendo os frutos do progresso ao alcance da população. As mudanças se iniciaram pela criação de zonas especiais de desenvolvimento, nas quais não se aplicavam as receitas rígidas da cartilha comunista. O aporte de capitais, inclusive estrangeiros, assim como novas técnicas de gerência e uso de tecnologia externa eram estimulados, sempre em associação com empresas estatais chinesas. O empreendimento individual de pequeno porte deixou de ser visto e como uma aberração burguesa e subversiva. Regras restritivas da circulação de pessoas dentro do território chinês foram abrandadas ou revogadas. A fim de assegurar a renovação dos quadros governantes, Deng conseguiu também instituir a idade limite de 75 anos para os cargos de direção, inclusive os mais elevados, que anteriormente eram vitalícios ou duravam até que o titular caísse em desgraça.  Recentemente, porém, essa norma foi abandonada pelo atual presidente, Xi Jiping.

Após a famosa metáfora sobre a cor do gato e a política econômica (“Não importa que o gato seja branco ou preto, o importante é que cace os ratos”), Deng elaborou uma definição para o novo sistema econômico do país, que chegou a ser inscrita na Constituição após um Congresso do PCC: “Socialismo de mercado, com características chinesas”. Tradução: tudo é válido para atingir o desenvolvimento econômico, desde que aprovado e guiado pelo Partido Comunista.

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Guangzhou, 1994 (china.org.cn/Xinhua)

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Evolução das relações da China com o resto do mundo

As relações do mundo ocidental com a China, assim como com a União Soviética permaneceram durante muito tempo inseridas em um contexto de intensa rivalidade ideológica, econômica e militar com os Estados Unidos e seus aliados da Europa ocidental. Muitos países da América Latina acompanhavam as posições norte-americanas. Os laços diplomáticos do Brasil com Moscou, que existiam desde 1945, foram rompidos pelo governo brasileiro em 1947 e posteriormente restabelecidas em 1961. Os dois países mantiveram durante a época da Guerra Fria o que no jargão diplomático pode ser classificado como uma postura “correta” na qual o Brasil procurava manter-se distante do conflito ideológico mais amplo e as relações bilaterais oficiais se limitavam, na prática, ao intercâmbio comercial e a acordos de cooperação de menor expressão.

Em 1971 o presidente norte-americano Richard Nixon decidiu reconhecer a legitimidade da República Popular da China (RPC) ao revelar sua intenção de viajar a Pequim no ano seguinte, afirmando que uma paz duradoura não seria possível sem a participação da China. Pouco depois, em 1974, o governo brasileiro, sob a chefia do general Ernesto Geisel e no contexto do “pragmatismo responsável” do Chanceler Antônio Francisco Azeredo da Silveira, resolveu igualmente estabelecer relações diplomáticas com a República Popular. Até então o Brasil mantinha em Pequim desde 1914 sua embaixada ante o governo na República da China. Por ocasião da revolução comunista, em 1949, o governo nacionalista chinês se transferiu para a ilha de Taiwan, onde o Brasil instalou sua representação diplomática. Após o reconhecimento da China Popular como legítima, o Brasil abriu nova embaixada em Pequim, encerrando as relações diplomáticas com a República da China e transformou sua embaixada em Taipé, capital de Taiwan, em um escritório para assuntos comerciais, que existe até hoje.

Os condutores da política externa brasileira, nessa ocasião, adotaram a linha de priorizar decisões pragmáticas e de fortalecer a capacidade brasileira de seguir seus próprios rumos, evitando alinhamentos automáticos sem se afastar dos fundamentos da civilização ocidental, que fazem parte da formação e da personalidade internacional do Brasil. Reduzia-se, assim, a importância das diferenças ideológicas no desenho do relacionamento diplomático brasileiro. Ao mesmo tempo, a postura brasileira quanto ao processo de descolonização da África experimentou significativa mudança, especialmente no tocante à postura relativa às colônias portuguesas. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo governo de Angola e apoiou a emancipação de Moçambique e outros territórios até então sob domínio português.

A busca da expansão do relacionamento com os países do chamado Terceiro Mundo procurava ampliar a presença do Brasil no globo e não pressupunha o abandono da convicção de que a obtenção de tecnologias e financiamentos necessários ao desenvolvimento teriam que continuar a provir preferencialmente do mundo desenvolvido. O Brasil buscou, portanto, em sua política externa, expandir as relações construtivas, amistosas e pragmáticas com todos os países, sem criar atritos ou cultivar rivalidades, e ao mesmo tempo ampliar sua participação e influência nos foros multilaterais, tanto políticos quanto econômicos. Havia, assim, uma postura de solidariedade com o Sul e de preferência econômica com o Norte do mundo ocidental, guardada certa distância, mas não exclusão, do mundo comunista e socialista.

A partir do início da década de 1970 e em seguida ao cisma entre a URSS e a RPC que ameaçava agravar o isolamento internacional em que se encontrava esta última, a liderança chinesa compreendeu a necessidade de dedicar-se ao incremento de suas relações com outros países, inclusive no mundo em desenvolvimento. Em tal contexto, a política externa do Brasil manteve a fidelidade a sua origem ocidental, porém priorizando o relacionamento pragmático e procurando preservar sua margem de ação independente e evitar comprometimentos desnecessários. Nesse sentido, por exemplo, o Brasil preferiu não ingressar como membro pleno do movimento “não-alinhado” que surgira na década de 1950 como alternativa à dicotomia ideológica reinante.

À medida que a China saía de seu isolamento, o desconhecimento mútuo, a distância física e cultural entre ambos os países e a disputa ideológica mais ampla constituíam dificuldades adicionais para o estreitamento das relações com o Brasil. Houve tentativas de aproximação de parte a parte durante os curtos mandatos dos presidentes brasileiros Jânio Quadros e João Goulart. O primeiro procurou contatos com Pequim no âmbito de sua “política externa independente”. Goulart, aliás, ainda como vice-presidente, se encontrava justamente em uma missão exploratória à China quando ocorreu o episódio da renúncia de Quadros em 1961 que acabou por levar o político gaúcho ao poder. A China ainda era um país muito fechado, desconfiado e altamente ideologizado, que no ambiente da Guerra Fria despertava preocupações de segurança de setores conservadores da vida nacional e de boa parte da opinião pública, mais alinhados com o ideal democrático e de liberdade individual representado pelos Estados Unidos e a Europa Ocidental. A política externa chinesa, tanto quanto a soviética, priorizava abertamente a exportação da ideologia revolucionária comunista, contribuindo para a exacerbação da polarização interna no Brasil e outros países da América Latina, com os resultados que conhecemos.

Nesse panorama, o reconhecimento pelos Estados Unidos da legitimidade da República Popular da China levou à entrada desta última como titular da cadeira chinesa na ONU e como membro permanente do Conselho de Segurança, com apoio das potências ocidentais. Recordo haver assistido em 1971 à adoção da resolução que oficializou esse resultado. Diplomatas de alguns países africanos com governos de esquerda alinhados com Pequim dançaram em regozijo no plenário da Assembleia Geral da organização mundial. Um objetivo secundário, mas não menos importante, da decisão americana, era o de contribuir para acentuar o enfraquecimento da influência da União Soviética em consequência das revelações das atrocidades cometidas por Stalin e do revés diplomático representado pelo desenlace da crise dos mísseis de Cuba e do rompimento ideológico entre as duas potências socialistas.

Após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS, com a expansão da OTAN e a redução da área de influência soviética, instaurou-se a expectativa de uma era unipolar de paz e cooperação sob a égide do ideário democrático e da predominância benevolente de Washington. O “fim da história”, porém, deu lugar a um mundo mais complexo, no qual a crescente interdependência econômica entre os Estados Unidos e a China e o advento de blocos comerciais e políticos, como a União Europeia, a ASEAN e o Mercosul criaram a necessidade de encontrar fórmulas capazes de amenizar os inevitáveis choques de interesses. A ascensão chinesa passou a ser vista nos Estados Unidos inicialmente como uma ameaça econômica e em seguida como um risco de segurança nacional, principalmente a partir da chegada ao poder do presidente Donald Trump, gerando graves dissensões e acusações de parte a parte, que se refletiram na retórica brasileira para com Pequim, influenciada por setores mais conservadores no governo e na sociedade.        ­

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Nixon e Zhou Enlai, 1974 (Wikimedia Commons)

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A China, o Brasil e o mundo

Apesar desses percalços, ao longo das últimas três décadas o Brasil e a China vêm construindo um importante relacionamento político e comercial. Nos anos 90, diplomatas chineses e brasileiros se referiam a uma “parceria estratégica” entre os dois países. Essa expressão, utilizada pela primeira vez pelo ministro das Finanças chinês Zhu Rongji, exprimia mais uma aspiração do que uma realidade, pois não foram estabelecidos mecanismos eficazes para o desenvolvimento de tal parceria. Não obstante, a engenharia brasileira participou ativamente do início da modernização da infraestrutura chinesa nos setores de energia hidrelétrica e construção de rodovias. Mediante acordos com empresas chinesas, o minério de ferro e o nióbio brasileiros alimentaram o acelerado prosseguimento da expansão da infraestrutura e da indústria da China. Ao mesmo tempo, cresciam as exportações de alimentos para a China, principalmente soja, mas também outros produtos de maior valor agregado, como suco de laranja e peças de veículos. Entre 2003 e 2017 uma “joint venture” entre a Embraer e empresas chinesas produziram aeronaves Legacy e EMB-145 na cidade de Harbin. Acordos sanitários permitiram elevar o volume das exportações brasileiras de carnes de aves e também bovinas. Os dois países levam a cabo há muitos anos, com sucesso, uma parceria tecnológica para a construção e lançamento de satélites de observação de recursos naturais. Empresas brasileiras aproveitaram a mão de obra relativamente mais barata da China para a fabricação de bens de consumo como têxteis, calçados e brinquedos, enquanto empresas chinesas investem em diversos setores industriais no Brasil, como motocicletas, veículos leves e exploração de petróleo em águas profundas. Ainda não foram suficientemente exploradas as possibilidades de cooperação em vários campos de tecnologia, entrevistas por estudiosos do relacionamento entre o Brasil e a China.

O objetivo primordial e histórico da ação externa do Brasil é promover seu desenvolvimento econômico e social em um ambiente internacional de paz e cooperação. Essa tem sido, aliás, a principal contribuição brasileira à comunidade internacional esde sua formação como nação independente, baseada nos princípios de igualdade soberana, solução pacífica de controvérsias, manutenção da integridade territorial, não ingerência e não intervenção em assuntos internos de outros estados e respeito aos direitos humanos e a preservação e uso racional dos recursos naturais.

A formalização do grupo denominado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) aprofundou a cooperação com a China, incluindo outros atores importantes. Do final dos anos 90 a esta parte, o comércio bilateral do Brasil com a RPC, que no tempo em que estive em Pequim já era crescente, atingiu em 2020 a marca de mais de 100 bilhões de dólares nos dois sentidos, com superávit expressivo em favor do Brasil. Tudo indica que esse total seja superado em 2021.

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Primeira cúpula do BRICS, 2008

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Perspectivas para o futuro

Há 200 anos, Napoleão Bonaparte vaticinou que o mundo tremeria quando a China acordasse. Era a época em que o império chinês se viu obrigado pelas grandes potências europeias a aceitar obrigações políticas e comerciais injustas e humilhantes. O tempo passou e a China efetivamente acordou para buscar sua inserção no mundo. O papel mundial da China no século 21 será sem dúvida determinado pela evolução do comportamento de sua sociedade, racial e culturalmente homogênea porém diversificada em sua dimensão demográfica e em suas realizações e aspirações. Qualquer que seja a extensão do impacto do gigante asiático no mundo ao longo dos próximos decênios, sua influência nos destinos da humanidade tende a crescer à medida que declina a importância relativa de outros atores globais.

A partir das primeiras décadas do século 20 o regime feudal dos imperadores ao longo de várias dinastias foi substituído por uma ditadura comunista ortodoxa e em seguida pela atual convivência de um sistema econômico semicapitalista com um regime político centralizador, autocrático e dedicado a sua própria permanência. A expectativa de que a rápida transformação econômica trouxesse em seu bojo uma inevitável liberalização política não se materializou e pelo menos por enquanto não dá mostras de que esse resultado venha a realizar-se tão cedo. O império absolutista e discricionário das diversas dinastias imperiais foi substituído há 72 anos por um sistema igualmente personalista e autoritário que tal como seu antecessor exerce amplo domínio sobre o território e a população e que zela por sua própria consolidação e longevidade.  O domínio ideológico do partido único é tão autoritário quanto o do regime imperial anterior, embora sua face mais sectária e retrógrada tenha se abrandado nos últimos tempos.

O relacionamento com os Estados Unidos, única potência capaz de dificultar o prosseguimento da ascensão da China, será certamente determinante. A rivalidade e competição entre ambos os países ocorre principalmente no campo do comércio internacional e nos aspectos militares e de segurança. A China se mostra cada vez mais assertiva em seu entorno geográfico mais próximo, inclusive com reivindicações territoriais. A construção de uma frota de navios de guerra, porta-aviões e submarinos denota a projeção de seu poder para o entorno geográfico e mais além, estendendo-se ao espaço exterior e à cibernética. A disputa em torno da tecnologia de comunicações que opõe Washington a Pequim tem conotações estratégicas que vão além dos aspectos puramente comerciais. Ao contrário do equilíbrio quantitativo e qualitativo entre as forças nucleares russas e norte-americanas, o arsenal nuclear e convencional dos Estados Unidos é muitas vezes superior ao da China em quantidade e em sofisticação técnica. Enquanto os EUA dispõem de um total de cerca de 6.500 ogivas nucleares e de uma tríade de sistemas de lançamento — aéreos, marítimos e terrestres — o armamento nuclear chinês é estimado em menos de 350 ogivas, cujo uso depende de mísseis intercontinentais.  Além disso, os Estados Unidos possuem uma rede de bases militares em todo o mundo, inclusive em localizações próximas da China e tem alianças defensivas com cerca de vinte países, entre os quais o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália. Os chineses, porém, trabalham ativamente na expansão e modernização de sua capacidade nuclear.

Em seus mais de cinco mil anos de história a China se habituou a ver-se como o “império do centro”, que é aliás o nome do país no idioma chinês. Ali se situa, na visão dos chineses, o centro da civilização e da excelência humana. Ao contrário do império romano, que conquistou, escravizou e colonizou os bárbaros à sua volta, a China os manteve separados de si na antiguidade por uma extensa e elevada muralha do lado norte. A oeste já havia um vasto deserto dificilmente transponível e a cadeia de montanhas mais alta do mundo; ao sul e a leste, o oceano.

Pelo menos no futuro previsível os principais objetivos chineses parecem ser o de fortalecer sua capacidade militar, expandir os benefícios da prosperidade econômica para sua população e resguardar sua própria integridade territorial. A China procura evitar crises que possam redundar na separação da “província rebelde” de Taiwan com apoio norte-americano e confirma cada vez mais sua predominância nas águas circunvizinhas do Mar da China e do Oceano Índico por meio da expansão de sua frota. A rivalidade existente na fronteira ocidental entre a China e a Índia parece estar sob o controle de ambos os governos e a presença da Rússia nuclearmente armada ao norte não constitui uma preocupação premente para as autoridades chinesas. O apoio chinês à Coreia do Norte tem sido essencial para a manutenção do regime ditatorial dos descendentes de Kim Il-Sung e possibilitou a aquisição e manutenção por Pyongyang do arsenal atômico de que hoje dispõe. As tensões entre as duas Coreias e entre a Coreia do Norte e Japão constituem permanente preocupação para toda a região do nordeste asiático e por extensão para todo o Pacífico sul.

A China tem todos os motivos para buscar a estabilidade e a negociação de preferência ao atrito e à confrontação armada na defesa de seus interesses. Entre os possuidores de armamento nuclear, a China é o único que adota a doutrina de “não primeiro uso”. Desde a aceitação de sua legitimidade como nação soberana Pequim vem cada vez mais participando das instâncias decisórias das Nações Unidas, onde a condição de membro permanente do Conselho de Segurança lhe dá direito de veto, e participa cada vez mais ativamente dos demais organismos e foros internacionais multilaterais.

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Wang Yi na Assembleia da ONU (Reprodução: Nações Unidas)

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À guisa de conclusão

Como conclusão tentativa para estas reminiscências e considerações poder-se-ia parafrasear a previsão de Napoleão: o despertar da China não se deu com um forte movimento sísmico e sim com uma série de tremores de intensidade relativamente baixa, que vêm ocorrendo ao longo dos últimos cinquenta anos.

Internamente, Pequim tem conseguido conciliar o longo e lento processo de abertura econômica com uma estrutura política rigidamente baseada no autoritarismo e na coesão do partido único. Observadores da cena chinesa acreditam que à crescente amplitude da distribuição da riqueza gerada pelas reformas deverá necessariamente corresponder uma redistribuição do poder político por força de reivindicações de grupos de interesse. Até o momento, porém, têm sido evitados abalos mais intensos e perigosos.

Do ponto de vista do relacionamento com o resto do mundo, o país prossegue em busca da definição de seu papel no cenário mundial no século 21.  Para isso, desenvolve uma estratégia de desenvolvimento pacífico e procura dar caráter pragmático à projeção de seus interesses no Terceiro Mundo, especialmente na África e na América Latina. Exemplo disso é a iniciativa chamada “Belt and Road”, de cooperação em obras de infraestrutura nesses países. Suas relações com as demais nações se baseiam na visão de um mundo harmonioso no qual a China procura construir a imagem de potência confiável, responsável e previsível, evitando situações que possam causar embates desnecessários e potencialmente desvantajosos. No atual momento internacional, a China tem especial interesse na manutenção da paz, pois um agravamento das divergências com a potência norte-americana poderia levar a consequências desastrosas, já que ambos possuem meios de destruição em massa capazes de inviabilizar a vida sobre a Terra.

Apesar das importantes diferenças políticas, culturais e econômicas entre o Brasil e a China, não há dúvida de que ambos têm a ganhar com o incremento de suas relações bilaterais e das oportunidades de ação conjunta em instâncias multilaterais. Por sua tradição pacífica e seu relacionamento construtivo com todos os países do mundo, o Brasil tem condições especiais para participar ao lado da China do esforço de preservação e aperfeiçoamento do sistema internacional de normas no campo da segurança internacional. Nesse particular, têm especial relevância os tratados e convenções que visam a redução e a eliminação das armas de destruição em massa, principalmente as nucleares. Reconhecida como possuidora desse armamento pelo Tratado de Não Proliferação (TNP), a China está obrigada, em virtude desse instrumento, a “entabular, de boa-fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear”. O Brasil compartilha dessa obrigação e tem todas as credenciais para desempenhar papel construtivo nesse particular.

O Brasil pode também participar com êxito do debate e formulação de regras e instrumentos para tratar de outras prementes questões globais que afetam toda a comunidade internacional, como a emergência climática, a promoção e defesa dos direitos humanos, o fortalecimento da democracia e a redução da desigualdade. Para isso, é importante de parte a parte respeitar as diferenças e ressaltar as convergências, evitando as armadilhas das posições ideológicas absolutas.

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Sergio Duarte

Sergio Duarte é embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento, Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais.