A educação pelo assombro: uma conversa com Catherine L’Ecuyer

Em entrevista exclusiva, a educadora canadense afirma: "Quando educamos, transmitimos quem somos. Não são os métodos e os dispositivos que educam, mas as pessoas que estão com a criança no dia a dia".

por Hugo Langone, especial para o Estado da Arte

Os méritos de Catherine L’Ecuyer não se conquistam facilmente nos tempos que correm: além de fazer um livro sobre educação chegar à 21ª edição, fê-lo não somente sem prometer fórmulas fantásticas e de resultados imediatos, mas sobretudo associando o rigor da literatura neuropediátrica atual a expressões centenárias e consolidadas do pensamento filosófico, literário e pedagógico. Desse modo, em seu Educar en el asombro (no Brasil, Educar na curiosidade, pela editora Fons Sapientiae), Catherine contrapõe os superestímulos aos quais são submetidas as crianças de hoje a conceitos como o de beleza, mistério e liberdade interior.  Trata-se, no final das contas, de um necessário retorno ao bom senso, à postura de respeito pela natureza e ritmos dos filhos – e, precisamente por isso, um retorno acessível a qualquer pai, mãe ou professor.

Por ocasião de sua vinda a São Paulo, onde em 13 de dezembro falará no 3º Seminário Internacional de Educação Integral , Catherine L’Ecuyer pôde conversar com o poeta e editor Hugo Langone, que mais uma vez colabora com o Estado da Arte.

Até cerca de setenta anos atrás, educavam-se muito bem os filhos sem a televisão. Hoje, quando as telas são onipresentes, qualquer referência a uma educação sem TV, celulares e tablets suscita reações que parecem, antes, esconder certo comodismo dos pais sob o rótulo da temperança e da moderação: “Ah, mas só um pouco não faz mal!”, “Minha mãe me deixava diante da TV e hoje estou bem!”, “Sabendo usar, não há problema!”. O quão válido é esse discurso? E mais: haveria um só fator a explicar essa aversão ao sacrifício que faz com que a televisão seja mais um recurso para os pais do que para os filhos?

Catherine L’Ecuyer – Todos temos direito a nossas opiniões, mas não a nossos fatos. Meu livro não faz juízo nenhum, nem define normas a serem seguidas pelos pais. Tudo o que faço é detalhar o que diz a literatura neuropediátrica acerca do efeito das telas sobre a infância. Também ofereço chaves de leitura para compreendê-la. Desse modo, os pais devem tomar decisões livres e assumi-las, pois são os primeiros educadores de seus filhos. É preciso saber que, hoje, as principais associações pediátricas do mundo insistem em que as crianças com menos de dois anos não devem ser expostas a tela nenhuma e que aquelas entre dois e cinco não devem ser expostas por mais de uma hora ao dia. Não se trata de uma questão educativa, mas de uma questão de saúde pública, que diz respeito à saúde neurológica de nossos filhos, dado que a exposição às telas nessa faixa etária está associada, segundo estudos, à falta de atenção, à impulsividade, ao déficit de aprendizagem, à diminuição do vocabulário etc. O que ocorre é que há muitos mitos tecnológicos por aí, crenças em que as telas favorecem o aprendizado. A Associação Canadense de Pediatria declarou formalmente em 2017: “Não há estudo que respalde a introdução da tecnologia na infância.” Creio que não se possa ser mais claro.

O espanto como motor do conhecimento é a ideia fundamental de seu primeiro livro. De certa forma, porém, trata-se de uma ideia um tanto quanto antiga. Encontramo-la em Platão, em Tomás de Aquino, bem como em outros. No plano da educação dos filhos, é fácil ver como esse elemento propulsor funciona quando eles são verdadeiramente pequenos, de dois, três, quatro anos: tudo o que é, tudo o que existe, os desconcerta simplesmente porque existe e poderia não existir. Tudo é mágico. E, como essa capacidade de assombrar-se é inata, não precisamos criar estímulos excepcionais para que os filhos se desenvolvam, bastando somente os elementos que um ambiente familiar normal já possui. Essa capacidade de assombrar-se permanece igual ao longo dos anos? Nos adultos, não parece adormecer-se naturalmente, perdurando apenas, talvez, nos poetas e artistas, por alguma inclinação especial? 

Catherine L’Ecuyer – Sim, minha teoria se apoia em ideias centenárias. Gaudí dizia que ser original é voltar às origens. A capacidade de assombro é inata, mas corremos o risco de perdê-la quando não respeitamos o que pede nossa natureza, quando vivemos segundo ritmos que não se adequam a nossos ritmos internos, quando não há espaços, tempos e silêncios que permitam saborear a lentidão da beleza da realidade. Creio que a perda do assombro pode ocorrer tanto nas crianças quanto nos adultos, e também que há adultos tão assombrados quanto as crianças pequenas, uma vez que souberam conservar essa abertura para a realidade, essa atitude de descobrimento sem filtro, sem preconceito. Ou, ainda, porque conseguiram recuperá-la, o que costuma acontecer quando reduzimos o ritmo vital, em geral na velhice. Depois das crianças, os mais assombrados são os mais velhos.

O fato de o assombro ser uma capacidade inata coloca as crianças no centro do processo de aprendizado. Elas ditam o ritmo, e o estabelecimento de marcos externos se tornaria, segundo seu livro, algo não tão decisivo como pensamos. Em alguns casos, chegaria a ser irrelevante ou prejudicial ao desenvolvimento infantil. Ao mesmo tempo, a aquisição de certas virtudes exige a moderação das inclinações naturais. Para uma criança ser generosa, deve aprender a deixar de lado seu egoísmo e emprestar um objeto; para ter temperança, deve aprender a não comer mais do que o conveniente – e assim por diante. Esses não seriam marcos externos?

Catherine L’Ecuyer – Os últimos estudos na área da neurociência confirmam que os pequenos não dependem exclusivamente dos estímulos externos para aprender. De fato, o “mito do enriquecimento”, interpretação equivocada da literatura neurocientífica, baseia-se na falsa crença de que há períodos críticos durante os quais temos de superestimular as crianças, e não expô-las a uma grande quantidade de estímulos durante esse período resultaria em “oportunidades perdidas para sempre”. As coisas simplesmente não são assim. A criança pode aprender em um ambiente normal. Não precisamos ficar obcecados por enriquecer o ambiente, convertendo-nos em recreadores atarefados ou animadores de festa infantil.

Dito isso, os limites são importantes, e procurar que a criança descubra as coisas por si só, sem bombardeá-la com estímulos contínuos, não significa que se está deixando de “educá-la”. Creio que Maria Montessori acertou em cheio ao dizer que “nossos filhos não fazem tudo o que querem, mas querem fazer tudo o que fazem”. Tratar o hábito ou a virtude como resultado de um estímulo externo é equivocado. Bombardear as crianças repetidamente com palavras de ordem e proibições não fará com que fiquem mais dispostas à virtude. A virtude é um hábito livre em direção ao verdadeiro, ao bom e ao belo. Temos de nos afastar das motivações externas que adestram e ajudar as crianças a agirem segundo uma motivação interior. Se a criança sabe reconhecer o bom, o verdadeiro e o belo, educar sempre será mais fácil. Por isso Platão dizia que “educar é ajudar a querer o belo”.

Onde está o equilíbrio entre a liberdade da criança e a imposição dos limites que lhe serão positivos? 

Catherine L’Ecuyer – Os limites fazem parte do “ambiente preparado”, para usarmos a expressão de Montessori. De certo modo, são “as regras do jogo”. Não constituem motivação externa quando são conhecidas a priori, quando se compreende seu sentido e quando se convive bem com elas. O silêncio ao ouvir música clássica, por exemplo. Suponhamos que uma criança viva o ritual, na companhia de um adulto que lhe é querido, de desfrutar de música clássica em silêncio. Nesse caso, o silêncio não é visto como imposição, mas como algo necessário para que se possa apreciar a música.

As crianças precisam de limites para poderem se adaptar ao mundo em que lhes caberá viver. O mundo está cheio de limites: uma gravidez dura nove meses, as alfaces crescem lentamente… Temos de prepará-las para a vida ajudando-as a aceitar as limitações com paciência e temperança, e temos de ajudá-las também a ganhar resistência à frustração. Uma criança que não ganha tudo o que pede é alguém que valoriza as coisas, é alguém assombrado, agradecido. Hoje as crianças estão cada vez menos adaptadas à realidade, pois vivem num mundo cada vez mais virtual – rápido, acelerado – e acham que as coisas devem se comportar como elas querem. Quando, então, voltam à realidade, tudo as aborrece…

O excesso de estímulos a que as crianças são hoje submetidas é, nas suas palavras, o principal inimigo do desenvolvimento dos pequenos, uma vez que retira deles a capacidade de assombrar-se. As crianças ficam anestesiadas e necessitam de estímulos cada vez maiores. Por isso a impressão de que há mais e mais meninos que não conseguem se concentrar, ou que não sabem lidar com o ócio, ou que procuram sensações as mais intensas… Mas esse é apenas um dos fatores o mais comentado, é verdade a inibirem o assombro. O pouco acesso à beleza não é tão mencionado por aí, mas em seu livro, sim. O belo convida ao conhecimento, ele atrai, ele espanta. Ao mesmo tempo, as cidades grandes são cada vez mais feias, os apartamentos não possibilitam o contato com as belezas da natureza, os filmes e músicas são barulhentos, a arquitetura não é harmônica… Há alguma palavra de alento?

Catherine L’Ecuyer – Tomás de Aquino dizia que “há beleza em todas as coisas”. Desse modo, há beleza na cidade também. Não devemos cair na tentação de reduzir o conceito de beleza a tudo aquilo que se encontra em seu “estado primitivo”, como faria, por exemplo, Rousseau. Há filmes belos, há arquiteturas belas. A beleza não se encontra somente nos museus, nos teatros ou nas óperas, pois não se trata apenas de um tema artístico. Diziam os gregos que a beleza é “a expressão visível da verdade e da bondade”. Vemos, assim, que a beleza é um conceito muito amplo.  Diante disso, o que seria belo para uma criança? Tudo, pois, o que respeita a verdade e a bondade do que sua natureza exige. O que respeita seus ritmos, as etapas de sua infância, sua sede de mistério, sua necessidade de silêncio… O que ocorre é que a quantidade de beleza nas coisas não é igual. Elas possuem mais ou menos beleza, a depender do quanto respeitam o que pede a natureza da criança. Assim, o medidor da beleza por excelência é o cuidador sensível. A sensibilidade é essa pele fina que nos permite intuir o que a criança necessita e preparar o ambiente para que ele se adeque a essas necessidades.

Diz seu Educar en el asombro, logo no princípio, que na primeira infância é mais importante o ambiente de segurança criado pelos pais ou cuidadores do que a preocupação com a quantidade e qualidade de estímulos exteriores. É possível cultivar um ambiente adequado nas escolas de hoje, quando a indústria da educação infantil está sempre pronta a propagandear o uso de novidades tecnológicas e de métodos “inovadores”, que prometem mundos e fundos para inculcar não sei quantas habilidades?

Catherine L’Ecuyer – A educação não é verdadeira por ser inovadora. É inovadora porque é verdadeira. E é verdadeira porque responde ao que as crianças necessitam. Uma vez que elas não precisam de tecnologia na fase infantil (a tecnologia chega a prejudicá-las), seria um erro falar em inovação. Dizem os estudos que, na primeira infância, os pequenos necessitam de um vínculo de apego seguro com seu principal cuidador, e não de um bombardeio contínuo de estímulos sensoriais.

Em vista disso, mais conveniente não seria o retorno ao modelo tradicional da dona de casa que tem os filhos sob seu olhar? No Brasil, algumas famílias têm optado pela educação domiciliar precisamente por essa razão…

Catherine L’Ecuyer – Não me cabe promover de modo específico nenhum modelo tradicional, pois os estudos dizem que o principal cuidador pode ser tanto o pai quanto a mãe. Com efeito, pode tratar-se mesmo de uma avó ou de uma outra cuidadora sensível. O importante é que a criança possua uma referência estável, um olhar atento a suas necessidades, durante seus dois primeiros anos de vida.

A senhora, partindo de observações muito empíricas e imediatas, recorda ao leitor que os ritmos da criança são muito diferentes dos nossos. Elas, de certa forma, só possuem o presente: não lhes preocupa o futuro, não remoem o passado, não vivem num mundo do “oxalá”. Nesse caso, parece que somos nós que devemos aprender com os pequeninos: esse viver o presente, os deveres do momento, possui repercussões físicas, psicológicas, sociais e espirituais muito positivas… e cada vez mais raras. Não chegaríamos, com isso, à raiz desta “incapacidade educativa” dos pais de hoje?

Catherine L’Ecuyer – Quando educamos, transmitimos quem somos. Não são os métodos e os dispositivos que educam, mas as pessoas que estão com a criança no dia a dia – e elas o fazem quando menos se espera. Dizia Rachel Carson: “As crianças se assombram na companhia de um adulto que se assombra com elas.” Pai assombrado, filho assombrado. Pai cínico, filho cínico. Por isso, educar é uma tarefa árdua. No final das contas, acabamos nos encontrando com nós mesmos, com nossos próprios fantasmas.

Com a difusão de sua teoria e seu livro, que já teve numerosas edições na Espanha, é de se esperar que sejam submetidos ao rigor dos pesquisadores acadêmicos e aos métodos científicos. Passados alguns anos, a senhora teria hoje algo a acrescentar, modificar ou suprimir da obra?

Catherine L’Ecuyer – O que gostaria de revisar no livro é a noção de fantasia. Desde sua publicação, li muitas coisas de Maria Montessori e começo a questionar minha postura sobre o papel da fantasia na infância. Montessori insistia na importância de rodear as crianças da realidade e dos mistérios verdadeiros (não aqueles inventados pelos adultos), deixando a fantasia para a etapa posterior aos seis anos, quando os pequenos já são capazes de distinguir o real do fantasioso. Sinto-me cada vez mais atraída pela proposta de Montessori, e é possível que haja algumas mudanças nesse sentido. No que diz respeito aos outros temas, o livro já chegou à 21ª edição e não recebi, até aqui, qualquer crítica por parte de acadêmicos, já que minhas ideias se fundamentam na literatura acadêmica das áreas de psicologia, neuropediatria, educação e filosofia. É difícil discordar nesse âmbito científico. Para completar, em 2014, a Frontiers in Human Neuroscience, revista suíça indexada, publicou um artigo sobre a educação no assombro em que a reconhecia como hipótese/teoria educativa.

Os três temas finais de Educar en el asombro – a beleza, o culto à feiura e a cultura – parecem ser o ponto alto de uma subida lenta. É como se toda a obra se encaminhasse até ali. Ao mesmo tempo, esses capítulos assumem um pouco o caráter de uma crítica cultural. Nesse caso, o problema da educação dos filhos nos dias de hoje parece pedir a atuação não apenas de pais e pedagogos, mas também artistas e sociólogos, publicitários, políticos, profissionais de mídia… A lista seria enorme. Ao mesmo tempo, é com os pais (e cuidadores) que as crianças têm contato direto e de qualidade no dia a dia. Como não resvalar no exagero ao tratar da influência, sobre a criança, da cultura e do ambiente exterior ao lar e à escola?

Catherine L’Ecuyer – “Educa toda a tribo”, diz o provérbio. Frases como “Só um pouco não faz mal”, “É tudo questão de equilíbrio” ou “Não há problema, o que importa é a intenção” não são muito educativas, pois na educação não há nada que seja neutro. De fato, se algo não convém à criança, é melhor que ela não o tenha, ainda que se trate de pequena quantidade e se possua a melhor intenção do mundo. O fato de os outros fazerem ou terem não é critério algum, pois as coisas não são boas, verdadeiras e belas porque um número grande de pessoas as julga assim. É importante questionarmos o que as crianças necessitam em cada momento, e isso nos é revelado pelos estudos em neurociência. Hoje, por exemplo, sabemos que o cérebro da criança foi feito para aprender segundo a chave da realidade. As crianças pequenas aprendem mais a partir do que lhes chega pelos cinco sentidos do que por meio de discursos, uma vez que ainda não desenvolveram a capacidade de abstração. Assim, o que chega aos pequenos mediante os sentidos deixa em suas almas uma marca que afeta seu senso de identidade por meio da memória biográfica. Como dizia o slogan da Dove: “Fale com sua filha sobre a beleza antes que a indústria da beleza fale com ela.”

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