Educação

Os caminhos da USP

por Felipe Pait

A Universidade de São Paulo está satisfeita com seus caminhos. Essa é a conclusão inescapável dos resultados do processo de escolha do novo reitor: mais de 70% dos votos foram para candidatos que exerceram altos cargos tanto na administração mais recente como na anterior. Os eleitos para a lista tríplice enviada ao governador foram chefes de departamento e diretores, e ocuparam diversos cargos institucionais na USP e nas instituições estatais de apoio à pesquisa, como Fapesp, Capes, e CNPq. O resultado da consulta feita anteriormente à comunidade inteira, que teve caráter indicativo, foi semelhante, sendo notável apenas a participação pequena dos funcionários e ínfima dos estudantes, apesar da facilidade de voto via internet.

A campanha eleitoral foi curta, mas nenhuma barreira impedia que alguma liderança intelectual menos ligada à administração acadêmica apresentasse uma candidatura com propostas diversas; não o fizeram por saberem que a universidade convive bem com o status quo. O governador, único envolvido na escolha do reitor que foi eleito pela população para cuidar da coisa pública, escolheu o nome mais votado, sem desafiar o quase consenso na universidade.

Como é possível essa satisfação na situação atual? O fato é que não há real divergência quanto à missão da universidade: formar estudantes para profissões específicas, manter a USP no mapa da ciência brasileira e mundial, e adicionalmente prestar alguns serviços à comunidade. A universidade desempenha adequadamente esses papeis, e reconhece que não é realista o objetivo de mudar sozinha a realidade do país e o modo como desenvolvemos nossa atividade intelectual.

Existem visões divergentes da universidade? Sim, mas são fantasiosas e irrelevantes.

A que poderíamos rotular “de esquerda” propõe que a universidade expie as mazelas da sociedade brasileira, distribuindo diplomas aos injustiçados e construindo obstáculos para os mais favorecidos. É a barulhenta mas microscópica turma das pixações “fora todos” e “fim do vestibular”. Em sua forma última, conselhos populares estatais fariam engenharia social distribuindo vagas, cargos, e diplomas por critérios raciais e de classe, ao estilo das repúblicas que botam as palavras “democrática” ou “social” em seu nome oficial.

A alternativa “de direita” é transformar a universidade no análogo de uma empresa com fins lucrativos, que arrecada fortunas vendendo pesquisas e apoia o ensino generosamente com as sobras. É inspirada em um fabuloso país que seus proponentes chamam de “Estados Unidos da América”, irreconhecível para quem conhece as universidades dos EUA. Lá como aqui, a pesquisa pura é essencialmente financiada pelo Estado, enquanto o desenvolvimento tecnológico com vistas a lucros previsíveis é feito por empresas.

E não há como ser de outro modo: a educação e a ciência são bens públicos, que beneficiam a sociedade como um todo, e não apenas aqueles que nelas investem. A fração do orçamento universitário que vem de empresas privadas é pequena, já que estas visam em primeiro lugar o lucro. A maior diferença é que nos EUA nem as universidades públicas são inteiramente gratuitas, nem as privadas inteiramente pagas. As universidades lá recebem sim importantes doações de indivíduos, em geral ex-alunos gratos pela oportunidade de colaborar com as gerações futuras, uma prática que ainda está começando a se estabelecer no Brasil.

Em comum as duas visões aparentemente opostas propõem que a universidade abandone as investigações de longo prazo, fundamentais para o futuro do País, e se volte para trabalhos com retornos imediatos, para benefício dos mais pobres em um caso, dos mais ricos em outro. Conforme lemos nos resultados eleitorais, esses dois pontos de vista têm ressonância minúscula quando a universidade toma decisões concretas, embora sejam capazes de fazer bastante barulho nos carros de som e nas redes sociais.

Mas, e a crise? A USP passou nos últimos anos por uma crise financeira aguda, cuja causa imediata foi a queda do comércio no estado. A universidade é sustentada por uma fração da arrecadação do ICMS estadual, que é gasta quase integralmente com pagamento de salários. (Esse fato às vezes é mencionado como indicativo de ineficiência da universidade, uma crítica tão tola quanto comum. A indústria e o comércio usam receitas na compra de bens; uma organização prestadora de serviços como a universidade essencialmente gasta em salários.) Com menos dinheiro dos impostos, a USP teve dificuldade para pagar suas despesas fixas.

Já a causa anterior foi, ao contrário, o aumento da receita. A universidade não tem grande capacidade para resistir a pressões internas e externas para gastar verbas adicionais da única forma que sabe fazer, qual seja, aumentando gastos fixos. Limitada pelos dispositivos legais e pelo conservadorismo institucional, ela contornou a situação também da única forma possível: contendo gastos salariais e esperando a inflação e a recuperação do comércio aumentarem a receita. A parte aguda da crise passou sem maiores mudanças de comportamento, mostrando que a condução atual, apesar de uma certa inépcia administrativa, não é incompatível com a realidade financeira.

Outra suposta ameaça é o impacto do ensino à distância. Poderia acontecer com a universidade o que ocorreu com os jornais impressos, que sustentavam o noticiário com a venda de anúncios classificados. A universidade oferece também um “pacote” composto por ensino, pesquisa, e outros serviços, e estaria sujeita a um “desempacotamento”: seu modo de operação poderia se tornar obsoleto se os interessados pudessem se servir dos itens mais desejados separadamente.

Porém o ensino à distância continua mais caro que o presencial: o custo da educação não se resume ao tempo que o professor passa em sala de aula riscando a pedra com giz. Trata-se de um processo social e culturalmente bem mais complexo do que a transmissão de informações, e de substituição difícil por meio cibernéticos. Sem dúvidas os cursos voltados para a transmissão de conhecimentos específicos e especializados tendem a migrar para a internet, mas esse não é o caso da USP em geral. A instrução à distância talvez seja até uma oportunidade de ampliar o alcance dos cursos de especialização pagos que a universidade oferece, mas não uma ameaça às suas atividades principais.

Podemos então dizer de forma otimista que a universidade está na melhor situação possível? Não, a USP poderia oferecer muito mais ao Estado com os recursos que o contribuinte fornece. Os mais sérios problemas são a burocracia e o corporativismo. O corporativismo se manifesta quando os departamentos defendem interesses específicos dentro das faculdades; as faculdades cerram fileiras dentro da universidade; e a comunidade acadêmica defende a si própria perante a sociedade. Os exemplos mais acabados da atitude são justamente os proponentes das ideologias mais extremas: a defesa do “papel social da universidade” começa e em geral termina com campanhas pelo aumento dos salários de professores e funcionários, que, se não chegam a nababescos, decerto são muito superiores à média da população paulista. E na outra ponta os privatistas são contra os subsídios oferecidos aos filhos dos pobres, mas não abrem mão de receberem salários enquanto prestam serviços remunerados, nem de guardarem a porção principal das rendas auferidas.

Os departamentos e grupos de interesse controlam os currículos e as carreiras dos estudantes de forma a ocuparem espaços dentro da universidade. As burocracias dos cursos enxergam os “seus” alunos como propriedade a ser resguardada contra influências externas, e consideram um estudante que se forma sem completar uma lista exaustiva de matérias específicas como um problema maior do que o que simplesmente abandona o curso. Tanto na graduação como na pós-graduação e na pesquisa, trabalhos que não se encaixam dentro das fronteiras disciplinares enfrentam obstáculos institucionais. O pensamento corporativista vê com normalidade esses mecanismos de construção de barreiras ao desenvolvimento profissional e intelectual dos estudantes.

A burocracia se manifesta nas barreiras institucionais e culturais que mantêm os estudantes e a pesquisa amarrados às áreas de atuação de cada feudo acadêmico. A avaliação da pesquisa se resume a contagem do número de artigos publicados. Trabalhos fora da área principal de atuação do departamento são desconsiderados, e o poder de avaliar é exercido por uma máquina formal onde a suposta objetividade dá passe livre para a arbitrariedade de quem formula as regras. Os grandes avanços do conhecimento ocorrem nas fronteiras entre as áreas estabelecidas. A supressão da interdisciplinaridade dificulta o surgimento de lideranças intelectuais que poderiam conduzir a universidade de uma forma mais consensual e menos burocrática.

O maior prejuízo é para a formação dos estudantes. Os cursos superiores são organizados em função de um mercado de trabalho dividido em profissões regulamentadas, um conceito com origem nas ordenações coloniais, e não satisfaz os estudantes nem na preparação para as carreiras nem na formação cívica. Embora a USP tenha plena capacidade para oferecer linhas de estudo mais flexíveis e interdisciplinares, o domínio da burocracia e do corporativismo a impede. O resultado é que as taxas de evasão são altas, mesmo sendo a universidade seletiva na escolha de alunos. Apenas os com condições mais favoráveis conseguem conciliar as pesadas cargas horárias em estudos especializados com a formação complementar para a vida profissional e pessoal que almejam numa sociedade complexa. Os demais acabam desistindo.

A escolha do novo reitor não foi um momento de discussão dos caminhos futuros da universidade. Talvez seja melhor assim. Processos eleitorais costumam focar questões polêmicas ou imediatas. Os grandes problemas da universidade brasileira, a burocracia e o corporativismo, que foram mencionadas apenas no programa da chapa que ficou fora da lista tríplice, têm uma longa história na cultura oficial brasileira. Não é claro que possam ser resolvidos rapidamente, e as propostas ideológicas podem ter consequências imprevistas. Devemos esperar que os avanços ocorram paulatinamente com a exposição das novas gerações a ideias mais propícias ao trabalho criativo.

Felipe Pait

Felipe Pait é professor no Laboratório de Automação & Controle da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Estudou engenharia elétrica na USP e na Universidade Yale.