por Adriano Moraes Migliavacca
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No primeiro artigo que escrevi para este espaço, discuti o termo “negritude”, que surge como um conceito ontológico no campo da teoria literária e da estética. O poeta senegalês Léopold Sédar Senghor, no trânsito cultural entre África e Europa, se viu diante da tarefa de definir e caracterizar a experiência negra nas artes, na história, no pensamento e no bojo de seu próprio ser, tendo chegado a uma formulação mais metafísica que biológica. Muito tempo depois, na década de 1990, Aimé Césaire formulou outro entendimento de “negritude”, ancorado na experiência histórica de escravização, deslocamentos forçados e a busca por uma retomada ou reconstrução de um patrimônio, como vemos neste artigo.
É curioso perceber que, no ensaio Ce que l’homme noir apporte, publicado pela primeira vez em 1939, Senghor lança a si mesmo a pergunta: “Existem Negros, Negros puros, Negros pretos? A ciência diz que não.” No resto do ensaio, o poeta, evidenciando que não fala enquanto etnólogo, postula ao negro, de forma poética, intuitiva e metafísica, uma alma racial. A ideia de alma racial, na mesma época e não muito longe da Paris de Senghor, dava alicerces para o totalitarismo alemão. “O sangue foi reduzido a uma mera fórmula química”, dizia o filósofo oficial do nazismo, Alfred Rosenberg, logo no início de seu Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts, afirmando que, em um nível subconsciente, o homem obedece aos comandos do sangue. Não quero traçar qualquer paralelo ético entre o então futuro presidente do Senegal e o então futuro enforcado de Nuremberg, mas há uma semelhança teórica na recusa de ambos a uma noção puramente material ou biológica da raça. Ambos, no entanto, viam a raça como algo intrínseco ao sujeito: Rosenberg a conceituava como a imagem externa da alma e Senghor pensava nela como uma estrutura rítmica da qual irradiavam cosmovisões, produções culturais, organizações sociopolíticas e outras formas de perceber e se apresentar no mundo.
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Desde então, a ciência segue extinguindo as raças sistematicamente, e as raças seguem insistindo em existir. Podemos vê-lo no fato de que, em vez de a assim chamada raça negra se ter diluído em uma tão sonhada universalidade humana, o que vem ocorrendo é a exigência, por parte de jovens intelectuais e ativistas ligados à causa negra, de que uma racialidade branca há tempos oculta se evidencie. A essa racialidade branca que surge se tem dado nome análogo àquele com que Senghor batizou sua teoria: branquitude. Sua teorização parece, no entanto, seguir mais a negritude cesairiana dos anos de 1990 que a de Senghor: ser branco é uma experiência histórica mais que uma identidade intrínseca, quer biológica ou anímica.
Os estudos sobre critical whiteness tiveram um marco importante no Brasil com o lançamento, em 2004, da coletânea de ensaios Branquidade: identidade branca e multiculturalismo, organizada pela pesquisadora Vron Ware. Nesse primeiro momento, usou-se o termo branquidade em vez de branquitude para traduzir whiteness. O volume traz um ensaio da socióloga Ruth Frankenberg, pioneira no campo, em que ela propõe uma fórmula que lembra Fernando Pessoa: a raça é o tudo que é nada. Com todo o debate sobre o assunto, não encontramos uma definição de raça que permita postulá-la como realidade concreta e substantiva (a raça é nada). No entanto, não há um único campo da experiência humana (social, político econômico, subjetivo, artístico etc.) que não seja profundamente influenciado por ela (a raça é tudo). Isso coloca o construto da raça numa situação bastante especial: concretiza-se pelos seus efeitos e não por ter uma existência substantiva própria. Ou, como diria Frankenberg, a irrealidade da raça não a impede de ter efeitos reais.
Essa perspectiva ganha vigor quando pensamos na dinâmica do pensamento racial no ocidente. Na sólida introdução, a organizadora do volume, Vron Ware, lembra que é impossível analisar a branquidade sem analisar a negritude, sendo as duas inseparáveis. Uma existe no olhar da outra. Se formos buscar uma base histórica para essa relação, podemos lembrar de meu artigo anterior. Lá, há alguns exemplos, vindos do século XVIII e XIX, de teorias, na época tidas como científicas, sobre a natureza da “raça negra”. No século XVIII, a cor escura da pele e os traços faciais dos africanos eram atribuídos à ação do ambiente. No século XIX, há uma ênfase na filogênese racial — algumas raças teriam evoluído mais rapidamente que outras. O que ambas teorias têm em comum é o fato de que o negro é entendido como um não branco, sendo este a norma a partir da qual se avalia o outro. Aqui se produz o que Frankenberg chama de invisibilidade da raça branca, que se torna uma não raça, a negra vindo a ser a raça por excelência e definição. Achille Mbembe declara que o negro é sinônimo de raça, sendo ambos termos praticamente intercambiáveis. Já no artigo anterior, localizamos, assim como Mbembe, em Schelling a ideia de que o branco europeu se desracializara na experiência universal do cristianismo. A equação racial do ocidente moderno se compõe nas relações conflitivas entre branco e negro, imantadas pela ficção da raça. De posse dos meios simbólicos, o branco diluiu sua identidade racial em uma antropologia universal praticamente livre de condicionamentos, deixando ao negro o local de marcado, racializado, condicionado.
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É difícil dizer até que ponto essa ficção resulta de um persistente delírio ontológico e até que ponto ela surge como justificação para um favorecimento da raça universalizada, mas os efeitos práticos são óbvios: a posição privilegiada de pessoas brancas nas sociedades em que viceje tal imaginário. Privilégios parecem uma razão suficientemente boa para se construir uma realidade que os possibilite. No entanto, é provável que a gênese do estado de coisas aqui abordado tenha se dado de forma mais profunda. No ensaio “Branquitude e branqueamento no Brasil”, a pesquisadora Maria Aparecida Bento encontra a origem da díade branco-negro no mundo ocidental em uma longa história que precede escravidão transatlântica e colonização da África, lançando suas raízes no passado da Europa, na rejeição a elementos pagãos da sociedade, a mulheres tidas como perigosas e a mendigos. Todos esses grupos se constituiriam, então, em receptáculos de um medo segregador, a eles sendo imputados castigos físicos muito semelhantes aos que sofriam, na América, os escravizados negros. Ora, não seguiu outro caminho a história do pensamento eugenista. Georges Vacher de Lapouge via a diferença entre a classe alta e a classe baixa como essencialmente biológica: nobres eram dotados de organismos que os inclinavam ao sucesso intelectual e financeiro, ao comportamento ordeiro e racional e à saúde emocional — atributos que faltariam às classes baixas. Lapouge chegou a teorizar que estas eram de extração essencialmente celta enquanto as altas, de origem germânica. No Novo Mundo, as raças europeias se diluíram com facilidade em uma única e privilegiada raça branca, deixando para a mais facilmente identificável raça negra o papel de extração inferior que coubera, no Velho Mundo, a celtas, mendigos, bruxas ou outros grupos.
A eugenia teria força especial na constituição do imaginário racial branco na América anglo-saxã, como vemos na obra do ambientalista, eugenista e racista norte-americano Madison Grant. No livro The Passing of the Great Race, publicado pela primeira vez em 1916, Grant se foca na tarefa de sobrevivência e renovação da raça branca. O autor reivindicava um ressurgimento de uma consciência aristocrática, que redundaria, acima de tudo, em uma busca por promoverem-se os melhores elementos da raça proveniente da Europa. Além disso, Grant enfatizava que, mesmo entre as três subdivisões da raça branca — nórdica, mediterrânea e alpina —, havia uma hierarquia incontestável, e a pureza de cada uma deveria ser garantida. Voltando ao ensaio de Maria Aparecida Bento, é curioso ver como a busca da pureza branca no Brasil tomou um caminho contrário para chegar a um lugar semelhante, senão o mesmo: a miscigenação era incentivada para que os elementos negros fossem absorvidos no genoma branco, entendido como mais forte. Nesse momento, a autora lembra Sílvio Romero, que apostava na vitória do branco e em um futuro no qual este seria tão puro quanto era na Europa, mas isto só viria com a combinação entre miscigenação, fim do tráfico negreiro, extermínio da população indígena e imigração europeia. A ideia é a de uma substituição populacional gradual. Aqui nos encontramos com o branqueamento.
Passemos do branqueamento à branquitude. A declaração aberta de uma superioridade branca, de uma posição hierárquica mais alta na escala evolutiva e civilizacional vai abandonando os livros e, pouco a pouco, a própria boca do povo. A experiência e a imagem do branco passa a ser, então, de uma neutralidade universalista em um eterno presente desligado da história. Entre a população escravizada do passado e as pessoas negras de hoje há uma história contínua de sujeição e opressão; entre os proprietários de escravizados do passado e as pessoas brancas de hoje, “a gap in history closes, like a cloud” (uma lacuna na história se fecha, como uma nuvem), como no pentâmetro de Derek Walcott. O negro nasce e se descobre em um mundo velho e desgastado pela escravidão. O branco nasce em um mundo sempre novo e promissor; quando descobre a realidade do racismo, tem o privilégio de escolher lutar contra ele (e receber as honrarias de um herói) ou se abster de um problema que, afinal, não lhe diz respeito.
Assim, em nossa realidade, as duas identidades — branca e negra — fecham-se nos dois lados de um símbolo — o universal e o particular, o incondicionado e o condicionado. Voltemos, então, às formulações negritudinistas de Senghor e Césaire. Na ontologia de Senghor, o negro tem esse local marcado e particularizado — o que não chega a ser estranho, levando em conta que Senghor estava produzindo sua teoria em francês a partir de referenciais teóricos ocidentais, ou seja, movia-se intelectualmente no mundo para o qual o negro que era figurava como o de fora, o marcado, o estranho. Podemos dizer que, no dentro do etos ocidental, Senghor era um de fora (no que concerne à toda-poderosa ficção da raça), mas falava de dentro já que na língua e na cultura francesas (que dominava). Ainda assim, diferente de muitos intelectuais negros que o precederam (como os norte-americanos Alexander Crummell e Edward Wilmot Blyden), possuía considerável bagagem cultural africana (a cultura de fora). Nesse sentido, encontramos Senghor em posição curiosa: estava familiarizado com a universalidade proposta pela Europa e acreditava nela. No entanto, para ele, a África não figurava como um fora, mas como um dentro (mesmo que a África que lhe fosse acessível a partir do seu Senegal natal fosse mais parcial que a Europa que lhe chegava da França com sua forte cultura tradutória, editorial e museológica). E Senghor encontrava nas Áfricas que lhe eram acessíveis veios da mesma universalidade que a França (e, por consequência, todo o Ocidente) cortejava. Para ele, o universal era, de fato, universal. Sua colocação do negro como a parte correspondente ao emotivo, ao rítmico e ao sensitivo era uma forma (bastante incipiente, diga-se) de encaixar nessa universalidade por ele desejada e postulada pela França um particular negro — que só poderia parecer como particular para o universal europeu. Resta-nos a pergunta: como se encaixaria o particular europeu no universal wolof, iorubá ou zulu?
O copin de Senghor, Aimé Césaire, publica seu célebre Discours sur le colonialisme em 1950. Césaire é mais duro em criticar a violência e a barbárie europeias nas colônias. No entanto, logo no início do discurso, admite a importância das trocas culturais entre as civilizações, dizendo da Europa: “ter sido o local geométrico de todas as ideias, o receptáculo de todas as filosofias, o ponto de acolhimento de todos os sentimentos a fez a melhor redistribuidora de energia.” Em tempos de pensamentos unilaterais e estereotípicos, alguns podem dizer que Césaire estava “passando pano” para a dominação europeia. Nada mais errado. Fica evidente que Senghor e Césaire eram atentos tanto para a tarefa de trocas culturais quanto para a sanguinolência e destrutividade da Europa nos últimos séculos. As trocas culturais, para Césaire, e a universalidade das culturas, para Senghor, se constituíam em objetivo perfeitamente concreto e realizável. A Europa se viu na posição privilegiada de ser uma encruzilhada (para usar o termo de Césaire), uma espécie de ponto de partida para essa universalização; esse privilégio veio com um poder do qual os europeus abusaram de modo imperdoável. Tal universalização só poderia ser lograda e validada, no entanto, se outros povos a protagonizassem.
A branquitude de que fala Maria Aparecida Bento parece se caracterizar, então, pelo usufruto dos privilégios que tocaram às pessoas brancas com a posição da Europa nos últimos séculos separado da consciência do sofrimento e injustiças imputados aos povos que sustentaram a construção desses privilégios. Essa cisão é acompanhada de uma naturalização desse estado de coisas: para o branco dos dias de hoje, em particular o de classe média, ter nascido em uma família com recursos, gozar da melhor educação disponível em seu país e ter acesso aos seus melhores recursos são essencialmente coisas naturais, coisas que simplesmente estão ali. O estado de coisas conhecido como branquitude se fortalece na medida em que sua origem é apagada e não questionada.
Em 1957, o sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos publicou um estudo chamado “A patologia do “branco” no Brasil”. A palavra “branco”, aqui, curiosamente não se refere ao “homem branco” ou ao “indivíduo branco”, mas ao predicado “branco”, o qual, Guerreiro Ramos mostra, era cobiçado e reivindicado por um sem número de brasileiros. O sociólogo chega a citar um poeta alagoano famoso por escrever “poemas com motivos negros”. Mestiço, o poeta se mostrava contrário a ser entendido como negro ao mesmo tempo em que publicou um livro em alemão com teses arianizantes (o qual, acabo de descobrir, está em processo de tradução para o português no Brasil). A situação é tal que o próprio se dizer branco é um privilégio talvez tão grande quanto os privilégios que o ser entendido como branco traz.
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Tanto esse prestígio fortemente marcado quanto a invisibilidade são duas formas de um mesmo fenômeno se apresentar. Essa posição central da Europa — que se vê inclusive na fala de Césaire acima citada — parece se aproximar cada vez mais de um momento de saturação, o que não passa da consequência natural da posição em que se encontra toda uma raça, no momento em que aqueles que estão fora dessa raça percebem a história com outras possibilidades, nas quais podem tomar um local central. É necessário admitir que estamos prestes a encontrar (ou mesmo já encontramos) um ponto de não retorno.
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