por Rodrigo Cássio Oliveira
Em setembro de 2017, as redes socias vinham abaixo pelo fechamento da exposição Queermuseu, organizada pelo Santander Cultural em Porto Alegre. Militantes do Movimento Brasil Livre (MBL), endossados por grupos conservadores da política e da religião, denunciavam obras como Cena Interior II, de Adriana Varejão, sob a alegação de que ela faz apologia à zoofilia.
Do outro lado, vozes dissonantes acusavam, com razão, o ridículo dessa contenda. Uma obra de arte não deveria ser lida como apologia à zoofilia apenas porque representa uma cena de coito entre homens e um animal. Representar alguma coisa em uma obra artística – ou seja, uma obra sem pretensão de literalidade – não significa propor que esta coisa deva ser aceita e praticada. A arte opera no modo poético, não no modo imperativo.
Essa semana, apenas quatro meses depois do episódio Queermuseu, a mesma discussão voltou à tona por causa de um fato parecido com o que houve em Porto Alegre. Mais uma vez, acusações de apologia no mundo da arte são feitas por grupos que fazem da militância política um filtro permanente para verem o mundo.
As partes envolvidas, contudo, são outras. Não estamos mais no mundo da arte stricto sensu, mas no campo bem menos exclusivo da música de entretenimento, e mais especificamente do funk, um gênero cuja particular complexidade não tem a ver com sua forma musical, mas sim com a base social a partir da qual ele se apresenta como manifestação estética.
Agora, em vez da pintura instigante e cheia de referências de Adriana Varejão, o objeto do debate é a música “Só Surubinha de Leve”, de MC Diguinho. Este funk, como tantos outros também obscenos, fala, hipoteticamente, de uma mulher (uma “filha da p#*@”, diz a letra) embriagada e abandonada por um homem depois do sexo. O teor da letra motivou acusações de apologia ao estupro. Quanto aos acusadores, não são mais grupos conservadores e pseudo-liberais como o MBL, mas sim militantes de esquerda ligados às pautas identitárias, sobretudo feministas.
Firmes objeções morais
Há mais elementos que tornam o caso MC Diguinho semelhante ao da exposição Queermuseu. Assim como o Santander Cultural decidiu antecipar o fim da mostra de arte queer, o Spotify optou por excluir “Só Surubinha de Leve” da sua relação de músicas, acatando a ideia de que se trata de conteúdo apologético. Os termos de uso do Spotify proíbem qualquer conteúdo “ofensivo, abusivo, difamatório, pornográfico, ameaçador ou obsceno”, o que justificaria a exclusão.
MC Diguinho não demorou para criar uma nova versão – mais light – da música. Se a estratégia der certo, é possível que a polêmica o beneficie de alguma maneira, e o ajude a fazer carreira. “Quanto mais falam do funk, mais a gente aparece, entendeu?”, explicou MC Tock, amigo de Diguinho, em uma entrevista. Não é preciso ser especialista em cultura de massas para saber que ele tem toda a razão.
O resultado efetivo dos embates militantes contra a arte, que hoje se acumulam e se sucedem com a velocidade dos posts nas redes sociais, diz muito mais respeito à organização interna dos próprios movimentos do que à estrutura de produção e recepção da arte. Enquanto os militantes se gabam de possuir firmes objeções morais contra o que o público deve ver ou ouvir, “Só Surubinha de Leve” certamente vai ser escutada – nas duas versões – onde quer que seus ouvintes desejem ouvi-la. Do mesmo modo (e ainda bem), depois de todo o barulho em Porto Alegre, Cena Interior II, de Adriana Varejão, pode ser apreciada em silêncio, hoje, por qualquer um que visite a exposição Histórias da Sexualidade, no MASP, em São Paulo.
Mas não são os resultados efetivos das ações militantes que chamam a atenção na comparação destes dois casos, muito embora haja aqui uma pauta importante para qualquer pessoa interessada em entender os movimentos moralistas (à direita ou à esquerda) que estão em voga. Mario Perniola, filósofo italiano que faleceu este mês, escreveu de maneira bastante clara sobre o assunto no brilhante livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e nas artes, publicado no Brasil em 2009.
Para Perniola, esse moralismo militante já estava presente na Europa desde os anos 1980, como uma reação à frivolidade da dita sociedade do espetáculo. Não porque os fundamentalistas tivessem algum interesse em restabelecer a sociedade em novos acordos racionais, mas sim porque o espetáculo é seu concorrente direto na disputa pela ordem social. O anti-intelectualismo, nas palavras de Perniola, é um aliado do “neo-obscurantismo militante”. Em tempos de “pós-verdade”, em que a realidade política passa a ser decidida por fake news – nem sempre inconscientes da sua condição de fake –, a percepção de Perniola é uma chave interessante para entender muitos posicionamentos irracionais que proliferam dentro e fora das redes.
Cultura de massa e “comando”
Ao falar em irracionalidade, esbarramos na questão que realmente surpreende qualquer observador dos fatos nos últimos meses. Como é possível que as mesmas pessoas que há tão pouco tempo estavam defendendo a pintura de Adriana Varejão contra as acusações de apologia estejam agora acusando a música de MC Diguinho de ser apologética? Se nenhuma das duas obras tem pretensão de literalidade, por que MC Diguinho estaria fazendo apologia ao estupro, se Adriana Varejão não estava fazendo apologia à zoofilia? Como é possível que estes críticos transitem tão facilmente entre as posturas de ataque e de defesa da arte, variando suas convicções de acordo com os objetos que estão na mira?
A resposta óbvia é ideologia. Dois pesos, duas medidas. As pessoas de esquerda, tão distintas dos manifestantes incultos e caretas que não entendiam as alegorias de Adriana Varejão, precisariam agora ser cúmplices da crítica à música de MC Diguinho, pois a causa é justa, a misoginia deve mesmo ser combatida, então, às favas com a coerência. Apesar de óbvia, essa não é uma resposta falsa. O comportamento do militante padrão, em geral, é este mesmo.
Mas nem tudo é óbvio nas imposturas da esquerda. Por trás dessa flagrante contradição, há a construção histórica de um discurso sobre a cultura de massas que envelhece a passos largos, vulgarizando-se na opinião pública sem contar com substitutos à altura.
Em um texto de 1940 chamado O Esquema da Cultura de Massas, o filósofo alemão Theodor Adorno defendia a ideia de que o cinema produz imagens como se estas emitissem “comandos”. O caso paradigmático é o das estrelas do star system. A despeito dos papéis interpretados pelas atrizes mais famosas, as imagens delas, na tela, sempre implicariam uma ordem, funcionando no modo imperativo.
“Seja como eu”, é o que diria qualquer visão de Marilyn Monroe no cinema, mesmo que a sua personagem seja tão malévola como a Rose de Torrente de Paixão (Henry Hathaway, 1953). A lógica dessa relação imperativa entre as obras e o público não ocorreria apenas no cinema, mas em toda a indústria cultural, uma vez que não haveria diferença substancial entre os reclames publicitários e os produtos oferecidos aos consumidores como arte.
Adorno envelheceu, mas a sua tese ajuda a explicar, até hoje, a forte ligação entre os produtos culturais e as formas de comportamento social. A música de massas segmentada em gêneros pode render estudos de caso interessantes nesse sentido, e o funk de MC Diguinho não seria diferente do rock ou do sertanejo. A complexa sociologia do funk poderia passar por aqui, se discussões candentes como a do novo clipe de Anitta não estivessem dominadas por disputas morais sobre o que é certo ou errado em uma “representação”.
Mesmo assim, por mais que Adorno pudesse nos ajudar de alguma maneira, a militância moralista assimilou apenas uma versão vulgarizada da sua tese. Os produtos da cultura de massas, ao contrário da arte mais sofisticada, não seriam aptos a ser poiesis. Nessa leitura, ao contrário do que Adorno de fato dizia, a dimensão imperativa do produto cultural é associada ao que o enredo (ou a letra de uma canção) está dizendo. Adriana Varejão teria poesia. MC Diguinho seria literal, logo, apologético. No fundo, os censores de “Só Surubinha de Leve” estão sugerindo que não há arte possível na cultura de massas, assim como pensavam os adornianos mais sisudos, em suas pesadas diatribes contra tudo que não parecesse “emancipador” na arte.
Aqui, como quase sempre nas questões contemporâneas sobre arte e cultura, os críticos não conseguem separar os seus juízos estéticos de seus juízos morais, submetendo os primeiros aos segundos. Fazer essa separação é essencial para discutir a sério a liberdade de expressão na arte. Deixando suspensas as questões sociológicas, alguém poderia dizer que MC Diguinho faz música de péssimo gosto, e eu não discordaria. Mas a crítica do mau gosto é um tema de estética, e não de moral. Que o mau gosto possa ser conhecido é condição necessária para que seja criticado. O resto é autoritarismo.
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