por Adriano Moraes Migliavacca
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Em 23 de abril deste ano de isolamento, Gilberto Morbach, deputy editor deste Estado da Arte, publicou o ensaio “Cultura e história, civilização e humanidade”, onde, partindo do texto “Cultura: história de uma ideia”, de José Guilherme Merquior, distingue entre os significados perfectivo e expressivo da noção de cultura. Em termos gerais, o viés perfectivo se refere à cultura como algo que o indivíduo adquire com grande esforço e disciplina para o cultivo (não por acaso a identidade morfológica) da própria inteligência e sensibilidade. Por sua vez, o viés expressivo diz respeito à cultura como um patrimônio de um povo que é passado coletivamente de forma quase inconsciente, sendo algo constitutivo da identidade desse povo, independente da escolha e do esforço do indivíduo.
Vemos o sentido expressivo de cultura se fortalecer no final do século XIX e no início do XX, quando a disciplina da etnologia verte o interesse de muitos intelectuais europeus para as sociedades então chamadas primitivas. No evolucionismo de Edward Burnett Tylor, surge a noção de “cultura primitiva”, associada a um estágio evolutivo em que se encontrariam povos como os africanos e os indígenas das Américas. No clássico The Golden Bough, James Frazer – outro expoente dessa escola – encontra inúmeros paralelos entre as culturas “primitivas” e os “rudes ancestrais” dos europeus de seu tempo. Logo, surgiria Lévy-Brühl que, embora não enveredando pelo evolucionismo propriamente dito, relegou as culturas não ocidentais a uma “mentalidade primitiva”, também dita “mentalidade pré-lógica”, comum à humanidade não europeia.
Em outras palavras, às produções culturais ameríndias e africanas, entre outras, se aplicaria o sentido expressivo – seriam produtos espontâneos da alma de um povo sem qualquer elaboração intelectual. É importante tentar entender as bases para isso. Além do caráter exclusivamente oral, vemos nessas sociedades a ausência da prática de se manter na memória a autoria dos bens culturais. Uma vez que o texto oral é incorporado ao cânone das artes verbais, não há sentido em se guardar o nome de quem o compôs. A percepção e o desentendimento desse fato vieram a dar origem, entre algumas assim ditas “elites intelectuais” ocidentais, a comentários infames do tipo “Mas onde está o Shakespeare africano?”, “Nunca ouvi falar de um Tolstói zulu”.
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No entanto, no Novo Mundo, esse viés exclusivamente etnológico teve efeitos muito mais nocivos que alguns comentários de mau gosto. Acompanhando a abolição da escravatura nas obras de, entre outros, um Nina Rodrigues, o evolucionismo ossificou uma visão dos bens culturais africanos – em especial, as religiões afro-brasileiras – como um resultado mecânico e não mediado do funcionamento cerebral primitivo, algo mais atinente ao instinto que ao intelecto. Em outras palavras, uma cultura africana ou está nos genes e nos instintos de seu povo originário ou não está em lugar nenhum. Segundo essa perspectiva, é impossível adquirir e desenvolver cultura africana ou cultivar uma perspectiva espiritual africana; só é possível tê-la nos genes. De lá para cá, nada mudou nessa percepção. Isso se percebe em adeptos brancos das religiões afro-brasileiras que atribuem sua pertença espiritual a uma hipotética fração de sangue negro correndo em suas veias – cuja origem teria se perdido na noite dos tempos coloniais – e não a uma escolha consciente por um sistema espiritual intelectualmente instigante e produtivo.
O fato é que qualquer um que tenha alguma familiaridade com bens culturais da África negra sabe que estes são tudo menos erupções instintivas e espontâneas. O povo Surma da Etiópia, por exemplo, comumente não utiliza roupas (o que ainda é tomado como sinal de primitivismo); no entanto, cobrem seus corpos com maquiagens extremamente intrincadas, transformando-os em diagramas móveis de padrões e formas geométricas exatas e minuciosas. Outros exemplos temos nas diversas formas de esculturas africanas em que estase e movimento se combinam para ilustrar a essência de um ser ou máscaras cuja simetria desfecha não mais que um vislumbre de expressão emotiva.
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No caso dos povos africanos que vieram compor a cultura brasileira, o de influência mais evidente foram os iorubás da África do Oeste. A eles se deve o tutano das formações míticas, rituais, artísticas e simbólicas das religiões afro-brasileiras, bem como das afro-cubanas e outras religiões americanas. Curiosamente, a religião iorubá (e todo o complexo estético-filosófico que a acompanha) tem atingido regiões cuja população afrodescendente é consideravelmente pequena, como o Leste Europeu, o que levou autores como Stephan Palmié a falarem de uma “globalização ioruba”. Já no século XIX, o povo iorubá, sua cultura e, particularmente, sua religião, exerciam especial atração sobre etnólogos, teólogos e outros estudiosos coloniais que, mantendo o diapasão antropológico do sentido expressivo de cultura, enfatizavam a originalidade e sofisticação desse povo, malgrado seu “primitivismo”.
O antropologismo dominou os estudos iorubanos (e africanos em geral) até a metade do século XX. A importância desses estudos iniciais foi lucidamente avaliada pelo crítico nigeriano Abiola Irele em uma palestra na cidade de Osogbo, na Nigéria, à qual tive a honra de comparecer. O então decano dos estudos literários africanos apontou que intelectuais africanos têm uma dívida para com a antropologia, mas trata-se de uma dívida ambígua, pois, se essa disciplina deu a conhecer ao mundo elementos das culturas africanas, o fez com essas culturas no eterno lugar do “outro”, do “objeto”. Uma mudança entra em processo a partir da clássica obra Olódùmarè: God in Yoruba Belief, do teólogo metodista Bolaji Idowu, publicada em 1962. Utilizando ainda alguns métodos da etnoteologia, Idowu se lança a compreender a religião iorubá não mais como um edifício de superstições de valor meramente científico, mas como um sistema metafísico com profundas contribuições à humanidade em sua busca por conhecimento e transcendência. A obra de Idowu segue atual, mas alguns autores, como o poeta Wole Soyinka e o teólogo Jacob Olupona, criticaram o que viam como um excesso de influência cristã na mesma.
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O acima citado Wole Soyinka, por sua vez, destila, em sua obra, uma doutrina humanista a partir da cultura iorubá tradicional, seus rituais e mitos. Na ideia de fragmentação de uma divindade primordial em uma série de divindades, Soyinka vê a possibilidade de um aprofundamento do sentido de pluralidade – uma pluralidade irredutível, mas não inconciliável. Se múltiplas divindades podem ser cultuadas em uma aldeia nigeriana, por que não se poderia estender essa rede de teofanias para a aldeia do mundo? Para Soyinka, a própria palavra “orixá” (nome coletivo das divindades cultuadas na tradição iorubá) é sinônimo de ecumenismo, constituindo a própria materialização da tolerância. Não se trata, no entanto, da ilusão de uma perfeita harmonia; isso seria anti-iorubá. A tolerância que Soyinka encontra nos orixás se ampara no reconhecimento do conflito como algo inerente às fibras do tecido que coere o pluralismo humano; o que ele recusa é qualquer totalização que leve à completa aniquilação ou absorção do outro.
A obra teológica de Idowu e a literária de Soyinka, tão distintas entre si, pavimentaram um caminho para outros autores de áreas sortidas investigarem o legado cultural desse povo em seus muitos aspectos. O que vem se revelando é algo bem distante das antigas imagens de primitivismo. Chama a atenção que as obras que mais luz jogam sobre os conceitos que fundamentam uma filosofia iorubá se encontram no âmbito das artes visuais e performáticas. A obra de Babatunde Lawal, The G??l??dé Spectacle, examina aquele que é considerado, entre os iorubás, “o maior espetáculo da Terra”: o festival da sociedade feminina G??l??dé, em que se unem celebrações rituais, danças, artes plásticas, música e poesia oral.
Nessa obra, o crítico nigeriano mostra como o fazer estético está inteiramente colado a uma ética e uma metafísica. Os familiarizados com o programa holandês “O belo e a consolação” que viram a entrevista de Wole Soyinka descobriram lá a expressão “ìwà l’?wà”, que o poeta traduziu como “caráter é beleza”. De uso corrente entre os iorubás, esse dito dá nome a um dos primeiros capítulos do livro de Lawal, no qual descobrimos que “ìwà” é a nominalização do verbo “wà”, que significa “ser” ou “existir”. A tradução para “ìwà” seria, então, “o fato de ser” – aquilo que é constante no ser humano (segundo Soyinka, em qualquer objeto). Há, no entanto, um segundo sentido para “ìwà” que envolve uma dimensão moral, em que a tradução “caráter” se torna mais adequada. Assim sendo, “ìwà” se refere tanto a uma dimensão ontológica quanto axiológica, tanto estática quanto dinâmica, passiva e ativa. A “beleza” (?wà) de que fala o dito vai além da pura formosura plástica; é uma beleza inerente ao caráter, que deve, ao mesmo tempo, ser cultivada pelo indivíduo. Essa é a beleza que busca o artista em seu trabalho; esse é o conceito que embasa o fazer estético. Daí, se infere que o “caráter”, sendo inerente ao ser humano, é, ainda assim, algo que precisa ser buscado e cultivado; a beleza resulta, então, do esforço que o indivíduo faz na busca de ser ele mesmo. Outro crítico de arte, o norte-americano David Doris, apresenta um conceito que une o fazer artístico com a essência do “ìwà”: trata-se de “jíj?ra”, algo próximo ao termo ocidental “mimese”. O trabalho de um escultor deve imitar o objeto que é esculpido não somente em sua aparência, mas também em sua natureza interior, em seu ìwà. Daí vemos, nas esculturas em madeira, a simplicidade e a definição das formas geométricas que compõem o corpo humano, em especial a ovoide do rosto, assim como as superfícies minuciosamente polidas e lisas. Aplica-se aí a ideia de Senghor de que a escultura africana representa uma figura não por uma exata reprodução de cariz fotográfico, mas por uma relação rítmica entre as formas essenciais que a compõem. Já a antiga e célebre arte do reino de Ifé, datada entre os séculos XII e XV, exibe a perfeição naturalista e a exatidão anatômica do rosto humano em uma serenidade que prescinde de sinais emotivos. Em ambos os casos, vale o que diz Wole Soyinka sobre a escultura iorubá: é uma arte de essências.
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Ao filólogo e crítico literário Solomon Adeboye Babalola devemos estudos sistemáticos do ìjalá, forma poética oral associada à guilda dos caçadores e ao culto de Ogum, orixá da inventividade técnica, ao qual é atribuída a gama de recursos verbais usados por esses caçadores poetas que, compondo em meio aos bosques, espelham nas técnicas morfossintáticas de seus textos orais as técnicas com que manipulam as plantas da mata. Do ìjalá Wole Soyinka disse ser “a suprema forma lírica da arte poética iorubá”, que “celebra não apenas a deidade (Ogum), mas a vida animal e vegetal, busca capturar a essência e as relações das coisas que crescem e os insights do homem nos segredos do universo”. De fato, nesses poemas orais vemos das mais singelas saudações a plantas e animais até metáforas resultantes da reação entre uma paisagem externa e um filamento da subjetividade do poeta. Em termos de poesia, mais conhecido entre nós é o termo “oriki”, que designa tanto versos individuais utilizados em muitos gêneros poéticos (incluindo o ìjalá) quanto a forma mais geralmente praticada de poesia predicativa iorubá, no cruzamento entre louvor e nomeação, com cadeias de metáforas que tornam concretos os objetos que predicam.
Talvez, no entanto, nenhuma produção cultural dê melhor ideia do engenho intelectual iorubá que o oráculo de Ifá. Sobre este, não me estenderei aqui; primeiro, pela alta complexidade do tema; segundo, por ele já ter sido examinado neste artigo. Basta dizer que certa vez o fotógrafo e africanista Gert Chesi caracterizou o Ifá como “a inimaginavelmente complexa rede de veios e canais que permeia por completo” a gigantesca árvore da espiritualidade iorubá. A tábua oracular de Ifá (?p??n Ifá) é um exemplo de uma concepção de mundo enformada em um objeto de arte, a circularidade da tábua reproduzindo a circularidade do tempo, com infinitas virtualidades fiscalizadas e manipuladas pela divindade mensageira Exu, que age em conjunto com a divindade tutelar do oráculo, Orunmilá, orixá conhecedor de destinos e idiomas em suas estruturas mais sutis. Orunmilá e Exu completam o ciclo entre pensamento e fala – a palavra na mente e na boca.
Do que foi discutido acima, é impossível escapar da constatação de que, longe do caos a que antes era atribuída, é sobre uma estrutura lógica e racional que se assenta a cultura africana que mais influência tem sobre nós. Meus estudos sobre outras culturas africanas sugerem a mesma conclusão, embora não seja possível discuti-las aqui. Retomando o texto de Gilberto Morbach, vemos que, no âmbito das humanidades no Ocidente, a predominância do viés expressivo tem varrido para longe a noção perfectiva de cultura (rejeitada como vil elitismo), levando ao filho dileto de nossos tempos, o relativismo cultural. No que toca às culturas africanas (incluindo a iorubá), o caráter expressivo sempre foi e é até hoje o único concedido a ela, e o relativismo cultural, o único argumento que justificaria o extravagante interesse por culturas que, a princípio, não teriam nada a acrescentar para o aperfeiçoamento espiritual da humanidade. A farta e crescente bibliografia sobre o assunto, de autores africanos e alguns estrangeiros, nos mostra que continuamos pensando assim por preguiça e automatismo racista. Que Ogum nos dê ânimo e engenho para vencer ambos e fazer o trabalho que deve ser feito.
Por fim, este artigo se iniciou com a leitura que Gilberto Morbach fez de um ensaio de José Guilherme Merquior. Eu me permito o paralelismo de terminar com outro ensaio de Merquior analisado por nosso ensaísta e editor. Trata-se do breve texto “Cultura e vida”, em que o pensador carioca relata um deslocamento, no discurso intelectual ocidental, da “cultura” para a “vida”, sendo a primeira o repositório da racionalidade e da convenção engessadora e a última o respiro primaveril rejuvenescedor. O resultado dessa fantasia foi o irracionalismo e o primitivismo presentes entre nós até hoje. Pois bem, puxando o pilão para o meu inhame, é bom perceber que as culturas africanas – tomadas pelo racionalismo iluminista como exemplo de primitivismo irracional – foram previsivelmente elegidas pelos rebeldes da “vida” como fetiche (no sentido de objeto poderoso, mas não bem conhecido) com que combater a cruel racionalidade ocidental. Essas duas percepções – de produto degenerado e de objeto subversivo – nascem de uma mesma waste land. Se queremos de fato, buscar, segundo a recomendação que Gilberto Morbach recolhe nos escritos de Merquior e Joseph Brodsky, um retorno à cultura como cultivo perfectivo de si, podemos encontrar nesse tesouro cultural africano lições únicas e valiosas, se ao menos soubermos contemplá-lo.
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