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João Cezar de Castro Rocha é ensaísta e Professor Titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pela Editora Caminhos, o Professor João Cezar lançará a obra Guerra Cultural Bolsonarista – A Retórica do Ódio.
Depois de termos publicado a Introdução à obra vindoura, hoje, apresentamos ao leitor do Estado da Arte as três perguntas que fizemos ao Professor João Cezar. O que é a retórica do ódio? Quais são as marcas que definem a guerra cultural bolsonarista? Como se pode ir além dela?
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Confira o… diálogo com João Cezar de Castro Rocha:
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Professor, o senhor lançará, no belo trabalho da Caminhos, a obra intitulada Guerra Cultural Bolsonarista – A Retórica do Ódio. Comecemos por algumas definições, ainda que iniciais. Como o senhor caracteriza (a) a própria ideia de guerra cultural e (b) a retórica do ódio?
João Cezar: Guerra cultural, em sentido amplo, é um fenômeno indissociável da modernidade. Uma vez que se inaugura uma concepção do tempo que implica uma diferença qualitativa entre passado, presente e futuro, não somente a ideia de novidade se torna dominante, como também a disputa de valores se torna por isso mesmo inevitável. Afinal, para que o “novo” se imponha é preciso superar o que só agora se vê como “antigo”. Nessa acepção, o próprio gênero literário da utopia já contém diversos elementos de futuras “guerras culturais”, pois, pelo avesso, são textos que criticam a sociedade presente.
Em termos mais rigorosos, porém, a célebre Querelle des Anciens et des Modernes, no século XVII, marcou o início de uma série de conflitos que envolveram visões de mundo diversas. O século XVIII inglês teve sua versão dessa disputa na famosa Battle of the Books. Claro, a Revolução Francesa foi longamente preparada pela guerra cultural desenvolvida pelos philosophes da Ilustração.
Vamos dar um salto vertiginoso no tempo? Assim, encontraremos o sentido dominante hoje em dia.
Em 1987, o professor de filosofia política Allan Bloom publicou o polêmico The Closing of the American Mind. Ele associou a crise norte-americana ao empobrecimento do horizonte do ensino nas universidades: a “alma dos estudantes” estaria em perigo e, desse modo, o futuro da sociedade, comprometido. Não é verdade que a cruzada contra as universidades é o sal da terra para o despreparado senhor que ocupa o ministério mais importante da República, o MEC?
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Em 1991, o professor de sociologia e estudos religiosos James Davison Hunter lançou o ensaio Culture Wars – The Struggle to Define America. Aqui, o sentido é o mais comum atualmente. Guerras culturais seriam disputas narrativas sobre a definição dos valores que deveriam orientar a “família, arte, educação, lei e política”, como enumera o subtítulo do livro. No Brasil de hoje, há quatro ministérios cuja função é levar adiante esse tipo de batalha: (a) Relações Exteriores; (b) Meio Ambiente; (c) da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; (d) Educação. Infelizmente, o MEC transformou-se no quartel general de uma nefasta guerra cultural, o que explica a melancólica ineficiência que domina o ministério, que sequer consegue realizar uma execução orçamentária minimamente aceitável pelos padrões do próprio histórico da pasta.
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No livro que está para ser lançado, contudo, sem ignorar esse movimento transnacional, examino quase que exclusivamente aspectos brasileiros da guerra cultural bolsonarista. Faço uma advertência: embora se relacione à onda internacional de ascensão da direita, ela tem traços exclusivamente nacionais. E esses são ameaçadores, pois dependem de uma posição revisionista, que nega os crimes da ditadura militar e, ainda mais, busca, num cenário de democracia, atualizar a draconiana Doutrina de Segurança Nacional, cujo objetivo é a eliminação do inimigo interno.
Em palavras diretas: a guerra cultural bolsonarista é a ponta de lança de um projeto autoritário de matiz plúmbeo. Se não a compreendermos em seus próprios termos, a democracia será a primeira vítima. Em seguida, todos nós que nos opomos à violência bolsonarista e à destruição das instituições, seguindo a inspiração da Doutrina de Segurança Nacional.
O instrumento da guerra cultural bolsonarista é a retórica do ódio.
Vejamos em que consiste a retórica do ódio.
A retórica do ódio tem como único objetivo eliminar simbolicamente todo aquele que não repita as lições da seita. Daí, seus dois traços dominantes: a desqualificação nulificadora do outro e a hipérbole descaracterizadora dos próprios atributos.
Desqualificação nulificadora: o outro é tornado paradoxalmente invisível pelo uso pouco criativo de palavrões – após presentear alguém com uma colar de palavrões, por que levar essa pessoa a sério? Além disso, quem pensa de forma diversa é ridicularizado por meio de jogos infantis com seu nome. Isso para não mencionar a tediosa obsessão com referências sexuais monomaníacas.
Hipérbole descaracterizadora: a retórica do ódio abole o sentido mais elementar de proporção, impedindo a apreciação crítica das palavras do líder ou do guru, e, desse modo, estimula uma adoração de nítido caráter paranoico; afinal, a adesão cega às narrativas delirantes de intrincadas teorias conspiratórias leva inevitavelmente à negação de dados objetivos e, em última instância, da realidade mesma.
As milícias digitais bolsonaristas levaram essa retórica do ódio a um patamar nunca visto na história nacional e realizam autênticos rituais vitimários em série. Não há aliado do governo Bolsonaro que não possa ser transformado no próximo bode expiatório de plantão, cujo sacrifício, realizado cruelmente, passo a passo, em fogo lento, favorece a constante excitação dos apoiadores do Messias Bolsonaro.
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Para tudo dizer: o bolsonarismo é o primeiro movimento de massas da política brasileira cujo eixo é uma incitação permanente ao ódio como forma de ação. O resultado não pode ser outro: colapso da gestão pública e esgarçamento máximo do tecido social.
Ponto a ponto.
Colapso da gestão pública: no afã de inventar inimigos, o governo despreza dados objetivos elementares de todas as áreas da administração. Por isso, em lugar de buscar diagnósticos precisos de problemas concretos, o governo produz mais do mesmo, numa eterna luta ideológica, independentemente da área em tela: da educação ao desmatamento, da economia à prescrição de medicamentos, a guerra cultural troca efeito por causa e turva mais do que ilumina.
Dois exemplos apenas.
O ministro do Meio Ambiente nega que o desmonte do IBAMA vá afetar o controle das queimadas na Amazônia; Ricardo Galvão, o ex-diretor do INPA, alerta sobre o crescimento alarmante dos índices de desmatamento, o presidente o elege “inimigo da semana” e o demite. Qual a consequência? Explosão do desmatamento e queimadas cuja extensão provocaram um escândalo internacional.
Ponto a ponto.
Colapso da gestão pública: no afã de inventar inimigos, o governo despreza dados objetivos elementares de todas as áreas da administração. Por isso, em lugar de buscar diagnósticos precisos de problemas concretos, o governo produz mais do mesmo, numa eterna luta ideológica, independentemente da área em tela: da educação ao desmatamento, da economia à prescrição de medicamentos, a guerra cultural troca efeito por causa e turva mais do que ilumina.
Dois exemplos apenas.
O ministro do Meio Ambiente nega que o desmonte do IBAMA vá afetar o controle das queimadas na Amazônia; Ricardo Galvão, o diretor do INPE, alerta sobre o crescimento alarmante dos índices de desmatamento, o presidente o elege “inimigo da semana” e o demite. Qual a consequência? Explosão do desmatamento e queimadas cuja extensão provocaram um escândalo internacional.
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O ministro do MEC insiste em considerar que a “lacração” contínua é a missão suprema de sua pasta. Não surpreende que, em decisão recente, no dia 22 de março, o ministro do STF, Alexandre Moraes, tenha determinado que a fantástica quantia de 1 bilhão e 600 milhões de reais, obtida com a Operação Lava Jato, fosse transferida do MEC para o combate à pandemia da Covid-19. A razão da transferência? Em 2019, o MEC recebeu 1 bilhão de reais e não gastou um centavo sequer, pois não apresentou projeto algum para o emprego dos recursos. Enquanto isso, o ministro segue “mitando” nas redes sociais.
Esgarçamento do tecido social: não há como resistir a um cotidiano eternamente agônico, definido por uma polarização que, fora do período eleitoral, se torna pasto fértil para irracionalismos os mais variados, desde fundamentalismos religiosos a anticientificismos acéfalos. A atual crise na saúde produzirá o momento de maior tensão da história política brasileira desde a redemocratização e nossa tarefa, urgente, é defender as instituições do acirramento do ânimo golpista do Messias Bolsonaro. Acrescente-se a esse cenário a própria pandemia e a posterior dificuldade de retomada do desenvolvimento econômico!
As perspectivas não são boas.
A guerra cultural, pelos motivos acima expostos, levará mais cedo ou mais tarde o governo Bolsonaro a um rotundo fracasso. Contudo, o processo de negação paranoica da realidade, substituída pela eleição neurótica de inimigos e de teorias conspiratórias, não pode ocultar o dado concreto inescapável do encontro com a finitude. Em termos menos filosóficos: a Morte não é um meme; a Vida não se limita à disputa de narrativas. Toda a estrutura de poder bolsonarista entrará em colapso pela impossibilidade de seguir alimentando o latifúndio de robôs nas redes sociais com a máquina bolsonarista de notícias falsas. Milhões de mensagens podem ser enviadas nas correntes de WhatsApp, ou nas redes sociais mantidas pela família Bolsonaro, mas, quando a pandemia se aproximar do dia a dia das pessoas, ficará evidente que não se trata de uma “gripezinha”. E não haverá “lacração” que possa alterar esse brutal chamado à realidade. A morte deixará de ser uma sucessão de números, mero combustível para disputas narrativas, e adquirirá rosto; nesse momento, o bolsonarismo entrará em decadência inevitável e quanto mais violenta for a reação da militância fanatizada, mais próximo do final estará o fenômeno.
Eis então que se aproxima o momento de maior risco à democracia desde o golpe militar de 1964.
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Nesse sentido, como opera, e quis são as consequências dessa lógica estruturada a partir da chamada “retórica do ódio”?
João Cezar: Se minha hipótese estiver correta, em virtude da pandemia da Covid-19, será inevitável a explosão de notícias falsas e o aumento exponencial de robôs para manipulação dos bolsonaristas, pois a impossibilidade de continuar negando a realidade somente produzirá um número ainda maior de notícias falsas. A linguagem será sempre mais violenta e poderá mesmo produzir momentos de confrontos físicos em conflitos localizados, como os que lamentavelmente assistimos recentemente, com a covarde e inaceitável agressão a um casal em Porto Alegre por um grupo de bolsonaristas. Nesse contexto, insistir na retórica do ódio é de uma irresponsabilidade cívica inédita na história republicana, pois estamos no olho do furacão de uma crise mundial de saúde. Os vídeos que negam a existência de mortes causadas pelo Covid-19 são de uma torpeza sem limites e passarão para a História como um dos momentos mais vis da cultura brasileira.
Tudo pode ficar ainda pior: como a guerra cultural bolsonarista adapta os princípios da Doutrina de Segurança Nacional, que preconiza a eliminação física do inimigo interno, e como para o bolsonarismo inimigos são todos os que não são caninamente fiéis ao Messias Bolsonaro, estamos próximos à terra em transe. Ou o governo abre mão dessa nefasta guerra cultural e finalmente apresenta à sociedade um projeto de país, ou logicamente o bolsonarismo terá de tudo arriscar num gesto de força rumo a um regime autoritário. Nesse potencial curto-circuito, incentivar ainda mais a retórica do ódio equivale a uma ação criminosa.
Nesse sentido, proponho uma hipótese, talvez ousada, mas a hora é de não ter medo de pensar: a reação esquizofrênica das massas bolsonaristas com o ídolo máximo de ontem, Sérgio Moro, produzirá um colapso no mecanismo mais eficiente da retórica do ódio: a produção em série de bodes expiatórios. Não é possível em menos de 48 horas passar da veneração ao ex-juiz para a mais completa execração. Claro, amor e ódio são duplos miméticos explosivos, mas, dessa vez, o bolsonarismo esticou a corda excessivamente… Há um paradoxo que o gabinete do ódio ignora e, ainda que dominasse, não poderia controlar. O mecanismo do bode expiatório é caprichoso: ele avança em espirais de complexidade crescente. O próximo bode expiatório deve ser hierarquicamente superior à vítima da véspera. Ora, depois de sacrificar o herói máximo, Sérgio Moro, quem deverá ser o próximo bode expiatório?
Pois é…
Por isso mesmo, e pelo contrário, chegou a hora de pensar no país e não na própria tribo; chegou finalmente a hora de construir a nação que ainda não conseguimos formar, pois, em meio às desigualdades estruturais da sociedade brasileira, nenhum Brasil existe. Situação que a atual crise de saúde somente agrava, devido ao comportamento inacreditável de uma elite que, na comodidade e proteção de carros luxuosos, exige que o trabalhador pobre volte à “normalidade”, ou seja, que passe de 3 a 4 horas em transportes públicos lotados e desconfortáveis. E à pergunta incisiva de Carlos Drummond de Andrade, e acaso existirão os brasileiros?, podemos inventar uma resposta nova como forma generosa, visionária até, de reagir à pandemia da Covid-19.
Trata-se de apostar não na retórica do ódio, porém na ética do diálogo.
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Quais são os elementos que constituem essa ética do diálogo e qual deve ser o papel dos chamados intelectuais públicos nessa nova lógica?
A retórica do ódio converte o outro num adversário, um inimigo a ser eliminado simbolicamente, por meio da “lacração” ou do puro e simples silenciamento.
A ética do diálogo considera o outro um outro eu, cuja diferença somente amplia meu horizonte e por isso enriquece meu repertório existencial.
Desde 2013 a sociedade brasileira vive numa tensão crescente, materializada numa polarização, a longo prazo suicida, mas que não parece arrefecer, porém escalar numa violência que ameaça sair de controle. Retornar à ética do diálogo é uma estratégia para a superação da crise.
E se houver resistência nos tempos ásperos que correm, concluo com um poema de Carlos Drummond de Andrade, “O constante diálogo”:
Há tantos diálogos
Diálogo com o ser amado
………………….o semelhante
………………….o diferente
………………….o indiferente
………………….o oposto
………………….o adversário
………………….o surdo-mudo
………………….o possesso
………………….o irracional
………………….o vegetal
………………….o mineral
………………….o inominado
Diálogo consigo mesmo
………………..com a noite
………………..os astros
………………..os mortos
………………..as ideias
………………..o sonho
………………..o passado
………………..o mais que futuro
Escolhe teu diálogo
………………………e
tua melhor palavra
………………………ou
teu melhor silêncio.
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.
……………
Pois bem: como recusar o convite do poeta?
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