Resenha

Estupro: arma de destruição

por Adriana Novaes

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(Reprodução)

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O novo livro da jornalista britânica Christina Lamb, experiente e premiada correspondente, autora de best-sellers, trata de meninas e mulheres silenciadas e escondidas pelo estigma de uma arma de guerra usada desde a Antiguidade: o estupro. São relatos terríveis de atos de violência inimaginável que precisam aparecer no esforço para acabar com o descaso e abrir caminho para que se faça justiça.

Lamb ouviu mulheres de várias partes do mundo, da África à Ásia, Europa e América Latina. Conversou com profissionais de saúde, do direito, de instituições que combatem a violência sexual. Fez perguntas a estupradores. Esse tipo de crime que tem sido normalizado, estimulado nas lutas étnicas para humilhar as mulheres dos inimigos, traumatizar para forçar o deslocamento de regiões inteiras, engravidar mulheres para mudar a demografia, submeter, destruir opositores e comunidades, permaneceu predominantemente camuflado nas estatísticas de tortura, escondido na vergonha e na continuidade do desprezo pelas sobreviventes.

Além da violência atroz que causa consequências físicas — doenças, órgãos perfurados, mulheres grávidas que perdem seus bebês, danos irreversíveis — as sobreviventes são consideradas culpadas, rejeitadas pelos companheiros, pelos filhos, pela família e pela comunidade. São mal tratadas em campos de refugiados, são “marcadas” com uma vergonha pelo resto da vida. Muitas, por causa da normalização e da ampla impunidade, voltam a conviver com seus algozes, que circulam perto de suas casas como se nada tivesse acontecido. É alto o número de suicídios. Como afirma Pramila Patten, representante especial da ONU para violência sexual em conflitos, “o estupro é o único crime no qual a sociedade é mais propensa a estigmatizar a vítima do que punir o perpetrador”.

Por causa dessa invisibilidade histórica, o processo legal é ingrato. Há dificuldade na tipificação do estupro como crime, em relação às provas, na traumatizante necessidade de repetir muitas vezes o que aconteceu. Poucos tribunais minimizam o novo trauma dessa repetição com a alternativa de gravar o depoimento. As sobreviventes geralmente contam seu suplício diante dos criminosos. Muitas são ridicularizadas. Em vários casos de condenação específica por estupro como crime de guerra, a pena foi revista ou muito atenuada após recurso. Ou seja, a punição efetiva para esse tipo de crime é a absoluta exceção.

A primeira vez que o estupro foi reconhecido como um instrumento de genocídio e crime de guerra por um tribunal internacional, não como um tipo de tortura, foi no julgamento de Jean-Paul Akayesu, líder local, atuante no genocídio dos Tutsis em Ruanda. Durante esse primeiro tribunal estabelecido para julgar um genocídio em janeiro de 1997, a juíza sul-africana Navanethem Pillay, única mulher entre os três juízes, ao perguntar a uma testemunha sobre o conhecimento do réu sobre os estupros, tornou possível adicionar as acusações por estupro e violência sexual contra Akayesu. Em 1998, a juíza Pillay criou a primeira definição internacionalmente aceita de estupro e de violência sexual: “O Tribunal considera que estupro é uma forma de agressão e os elementos centrais do crime não podem ser capturados em uma descrição mecânica de objetos e de partes do corpo . . . O Tribunal define estupro como uma invasão física de natureza sexual, cometida em uma pessoa sob circunstâncias que são coercitivas. Violência sexual não é limitada à invasão física do corpo humano e pode incluir atos que não envolvem penetração ou mesmo contato físico”.

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U.S. Mission Geneva/ Eric Bridiers

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Neste mesmo ano, teve início uma guerra da qual pouco se fala, como bem destaca Lamb. O conflito, chamado de “Guerra Mundial da África”, envolveu Ruanda, Uganda, e Burundi contra a República Democrática do Congo, Zimbábue, Angola, Namíbia, Chade e Sudão. Terminou em 2003, com o número estimado de 5 milhões de mortos. Em 2010, o Congo era chamado “capital mundial do estupro” e foi lá, na cidade de Bukavu, que o ginecologista Denis Mukwege criou o Hospital Panzi para tratamento das vítimas, atendimento que começou no início da guerra, em 1999, em tendas. A intenção do Dr. Mukwege era ajudar mulheres grávidas, mas sua primeira paciente foi uma vítima de estupro. Ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2018, junto com Nadia Murad, ativista, vítima da violência sexual e da escravidão sexual sofridas pelas Yazidis. O Yazidismo é uma religião que possui um milhão de seguidores no mundo. Mais antiga que o Islamismo, já sofreu tanta violência que possui uma palavra específica para “extermínio” — ferman — muito anterior a “genocídio”, cunhada em 1944, por Raphael Lemkin. A violência sofrida por Nadia e sua comunidade foi cometida por integrantes do ISIS, abreviação em inglês de “Estado islâmico do Iraque e da Síria”.

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Nadia Murad e Denis Mukwege (Reprodução: Reuters)

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Rojian, sobrinha de Nadia, foi levada com ela quando combatentes do ISIS invadiram sua vila. Foi presa e sofreu estupros sucessivos. Um dia, ouviu os gritos de uma menina de dez anos que era estuprada no quarto ao lado, chamando desesperadamente pela mãe. Rojian conta a Lamb: “Eu nunca ouvi alguém gritar tanto, chorando, pedindo pela mãe. Eu chorei mais por essa menina do que nunca chorei por mim mesma”. Sobre a violência que sofreu, afirma: “Eu sinto como se estivesse morrendo a cada dia. Eu choro todas as noites. Aqueles homens tiraram algo de mim que eu não posso ter de volta”.

No mesmo ano em que Rojian e Nadia foram capturadas no Iraque, 2014, aconteceu na Nigéria o ataque do grupo terrorista mais mortífero do mundo, Boko Haram, que significa “Educação ocidental é proibida”, no qual 276 meninas foram capturadas. O presidente do país não fez nada. O advogado Ibrahim Abdullahi, que estava viajando a trabalho, viu na TV um ex-ministro da educação, Oby Ezekwesili, falando do crime e estimulando a população a exigir providências do governo. O advogado repetiu as palavras do ex-ministro adicionando as hashtags #BringBackOurDaughters e #BringBackOurGirls no Twitter que logo se espalharam e criaram um movimento internacional pela libertação das meninas. Lamb descreve as inúmeras dificuldades de interferência das entidades internacionais, a falta de apoio do governo nigeriano, e o que aconteceu com muitas meninas.

O Dr. Mukwege, chamado de Dr. Milagre, ameaçado de morte, sobrevivente de atentados, é incansável em chamar a atenção da comunidade internacional para essa violência, esse crime contra a humanidade. Dos horrores que presenciou por mais de vinte anos, há mulheres estupradas que depois foram baleadas na vagina e bebês de meses estupradas por causa da crença de que o ato daria poderes especiais e proteção ao estuprador.

Segundo o Dr. Mukwege, o estupro “não é uma coisa sexual, é um modo de destruir o outro, de tirar de dentro da vítima o sentido de ser um humano e mostrar que ‘você não existe’, que ‘você é nada’. É uma estratégia deliberada: estuprar uma mulher em frente ao marido para humilhá-lo para ele partir e a vergonha recair sobre a vítima. É impossível viver com a realidade, então a primeira reação é deixar a região. Há destruição total da comunidade. Eu vi vilarejos inteiros desertos.” Milícias atuam nessa destruição de regiões em que são descobertos cobalto e coltan (columbita-tantalita), minerais necessários nas baterias de laptops, celulares e carros elétricos. Lamb diz ao Dr. Mukwege que seu discurso ao receber o Nobel foi um dos mais poderosos que já ouviu. Ele responde que muitos aplaudiram, mas nada se fez: “As pessoas que cometeram esses crimes ainda governam o país”.

Poucos anos antes do início da “Guerra Mundial da África”, durante a Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1996, o estupro foi usado como arma de limpeza étnica e genocídio, chocando o mundo ao estabelecer “campos de estupro”: foram cinquenta e sete campos, com vinte a cinquenta mil mulheres violentadas. Meninas foram estupradas na frente dos pais.

Na América Latina, Lamb conversou com as vítimas da ditadura militar na Argentina, a Guerra Suja que matou milhares de pessoas. Trata do movimento das Mães e depois Avós da Praça de Maio e sua luta incansável para encontrar os bebês roubados das presas e assassinadas, tema abordado, por exemplo, em A História Oficial com Norma Aleandro, que ganhou o Oscar de Melhor filme estrangeiro em 1986. Várias mulheres foram mantidas como escravas sexuais durante o regime, sob a ameaça de que suas famílias sofreriam se tentassem fugir. Crime recorrente em guerras, estigmatiza as sobreviventes e em geral permanece impune. A primeira condenação por violência sexual na Argentina só aconteceu em 2010.

O desprezo pelo crime de estupro ainda é regra, a desconsideração de sua gravidade persiste. O livro de Lamb é sobre o estupro como arma em guerras, mas essa brutalidade está associada ao crime cometido cotidianamente: em lugares em que o estupro foi utilizado como arma em conflitos, o número de estupros em tempos sem guerras é alarmante. A falta de conhecimento de tamanha desumanidade, dos rostos, nomes e histórias das sobreviventes dificulta a conscientização, a compreensão da especificidade desse crime e a punição devida, porque já há muito tempo há conivência e normalização dessa violência. Mulheres que foram vítimas de estupro na Europa e na Ásia há décadas reclamam com razão que seu suplício não está nos livros de história. A inacreditável marginalização e culpabilização da vítima ainda vigora, a crueldade ainda é usada como “arma” para desprezar o sofrimento da mulher e seu corpo.  Assistimos a declarações ofensivas corroboradas por disposições de operadores da justiça que humilham vítimas.

Recentemente no Brasil, em Santa Catarina, um tribunal acolheu a tese de estupro “sem intenção”, um julgamento gravado, em que o advogado humilha a vítima, uma crueldade que deveria ter consequências. Algo não muito diferente do que ocorreu e ocorre em vários outros tribunais e em ocasiões públicas. Em Burma, um ministro perguntou como aquelas mulheres teriam sido estupradas já que elas não eram atraentes. Lamb cita o episódio do mesmo tipo em que Jair Bolsonaro ofendeu a deputada Maria do Rosário. Rodrigo Duterte, o ditador das Filipinas, disse publicamente aos seus combatentes para atirar na genitália das mulheres rebeldes porque “se não há vagina, elas são inúteis”. É preciso insistir na identificação do estupro como crime gravíssimo, único, e exigir prontas identificação e punição.

A questão que Lamb se faz várias vezes e lança a alguns entrevistados é sobre a possibilidade de uma mulher que passou por tamanhas atrocidades se recuperar. Há centros de atendimento às sobreviventes, iniciativas corajosas para tentar minimizar os efeitos da violência, como a Cidade da Alegria, no Congo, resultado do trabalho de Christine Schuler Deschryver, junto ao Dr. Mukwege. Ele responde à pergunta de Lamb:  não, não é possível se recuperar.

Contar o que aconteceu, no caso do estupro, infelizmente, não cura. Talvez torne suportável, já que o relato é fundamental para buscar justiça, o principal objetivo dessas mulheres, o que é difícil, quase impossível em algumas circunstâncias. Lamb destaca que em todos os tribunais nos quais houve condenação por estupro havia juízas, o que não é coincidência. Se as mulheres são as principais vítimas, mulheres precisam estar no trato da lei. Além disso, é preciso esclarecer e insistir na especificidade do crime de estupro.

As sobreviventes de estupro não podem mais ficar sem nome. O desconhecimento, a identidade roubada, é mais uma desumanidade. Os crimes e as sobreviventes precisam aparecer e o livro de Lamb é uma inestimável contribuição para essa luta, mais uma, por justiça.

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Our Bodies, Their Battlefields: War Through the Lives of Women

Christina Lamb

Scribner, 2020

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Adriana Novaes

Pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Projeto “Bolsonarismo: o novo Fascismo Brasileiro” do Laboratório de Política Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ. É autora de "O canto de Perséfone" e de "Hannah Arendt no século XXI: a atualidade de uma pensadora independente".