Política

Montesquieu e a liberdade política por meio da lei

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Do Capítulo Sexto (“Da constituição da Inglaterra”) do Livro Décimo Primeiro (“Das Leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição”), d’O Espírito das Leis, publicado anonimamente por Charles Louis de Secondat, barão de La Bréde e de Montesquieu, em Genebra, 1748 d.C.
Tradução de Cristina Murachco. Edição da Martins Fontes.

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Montesquieu

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Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito
civil.

Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.

A liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz
poderia ter a força de um
opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.

Na maioria dos reinos da Europa, o governo é moderado, porque o príncipe, que possui os dois primeiros poderes, deixa a seus súditos o exercício do terceiro. Entre os turcos, onde estes três poderes estão reunidos na pessoa do sultão, reina um horrível despotismo.

Nas repúblicas da Itália, onde estes três poderes estão reunidos, se encontra menos liberdade do que em nossas monarquias. Assim, o governo precisa, para se manter, de meios tão violentos quanto o governo dos turcos; prova disto são os inquisidores de Estado e o tronco onde qualquer delator pode, a qualquer momento, lançar um bilhete, com sua acusação.

Vejam qual pode ser a situação de um cidadão nestas repúblicas. O mesmo corpo de magistratura possui, como executor das leis, todo o poder que se atribuiu como legislador. Pode arrasar o Estado com suas vontades gerais e, como também possui o poder de julgar, pode destruir cada cidadão com suas vontades particulares.

Ali, todo o poder é um só e, ainda que não tenha a pompa exterior que revela um príncipe despótico, ele faz-se sentir a todo instante.

Assim, os príncipes que quiseram tornar-se despóticos sempre começaram por reunir em sua pessoa todas as magistraturas; e vários reis da Europa reuniam todos os grandes cargos de seu Estado.

Creio que a pura aristocracia hereditária das repúblicas da Itália não corresponde precisamente ao despotismo da Ásia. A multidão de magistrados suaviza por vezes a magistratura; nem todos os nobres possuem sempre os mesmos objetivos; formam-se diversos tribunais que moderam uns aos outros. Assim, em Veneza, o grande conselho tem a legislação; o pregadi, a execução; os quarenta, o poder de julgar. Mas o mal está em que estes diferentes tribunais são formados por magistrados do mesmo corpo, o que constitui um mesmo poder.

O poder de julgar não deve ser dado a um senado permanente, mas deve ser exercido por pessoas tiradas do seio do povo em certos momentos do ano, da maneira prescrita pela lei, para formar um tribunal que só dure o tempo que a necessidade requer.

Desta forma, o poder de julgar, tão terrível entre os homens, como não está ligado nem a certo estado, nem a certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não se têm continuamente juízes sob os olhos; e teme-se a magistratura, e não os magistrados.

É até mesmo necessário que, nas grandes acusações, o criminoso, de acordo com a lei, escolha seus juízes; ou pelo menos que possa recusar um número tão grande deles que aqueles que sobrarem sejam tidos como de sua escolha.

Os dois outros poderes poderiam ser dados antes a magistrados ou a corpos permanentes, porque não são exercidos sobre nenhum particular; sendo um apenas a vontade geral do Estado, e o outro a execução desta vontade
geral.

Mas, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente os compromissos que ali assumimos.

É até mesmo necessário que os juízes sejam da mesma condição do acusado, ou seus pares, para que não possa pensar que caiu nas mãos de pessoas inclinadas a lhe fazerem violência.

Se o poder legislativo deixa ao executivo o direito de prender cidadãos que podem dar caução de sua conduta, não há mais liberdade, a menos que sejam presos para responder, sem postergação, a uma acusação que a lei tornou capital; neste caso, estão realmente livres, já que estão submetidos apenas ao poder da
lei.

Mas se o poder legislativo se acreditasse em perigo devido a alguma conjuração secreta contra o Estado, ou a algum entendimento com os inimigos de fora, ele poderia, por um tempo curto e limitado, permitir ao poder executivo mandar prender os cidadãos suspeitos, que só perderiam sua liberdade por um tempo para conservá-la para sempre.

E este é o único meio conforme à razão de suprir à magistratura tirânica dos éforos e dos inquisidores de Estado de Veneza, que também são
despóticos.

Como, em um Estado livre, todo homem que supostamente tem uma alma livre deve ser governado por si mesmo, seria necessário que o povo em conjunto tivesse o poder legislativo. Mas, como isto é impossível nos grandes Estados e sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo faça através de seus representantes tudo o que não pode fazer por si mesmo.

Conhecemos muito melhor as necessidades de nossa cidade do que as das outras cidades, e julgamos melhor a capacidade de nossos vizinhos do que a de nossos outros compatriotas. Logo, em geral não se devem tirar os membros do corpo legislativo do corpo da nação, mas convém que, em cada lugar principal, os habitantes escolham um representante para si.

A grande vantagem dos representantes é que eles são capazes de discutir os assuntos. O povo não é nem um pouco capaz disto, o que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia.

Não é necessário que os representantes, que receberam daqueles que os escolheram uma instrução geral, recebam outra particular sobre cada assunto, como se pratica nas dietas da Alemanha. É verdade que, desta maneira, a palavra dos deputados seria a melhor expressão da voz da nação; mas isto provocaria demoras infinitas, tornaria cada deputado o senhor de todos os outros, e nas ocasiões mais urgentes, toda a força da nação poderia ser retida por um
capricho.

Quando os deputados, como diz muito bem Sidney, representam um grupo de pessoas, como na Holanda, devem prestar contas àqueles que os elegeram; o mesmo não ocorre quando são deputados pelos burgos, como na Inglaterra.

Todos os cidadãos, nos diversos distritos, devem ter o direito de dar seu voto para escolher seu representante; exceto aqueles que estão em tal estado de baixeza, que se considera que não têm vontade própria.

Havia um grande vício na maioria das antigas repúblicas: é que o povo tinha o direito de tomar decisões ativas, que demandavam alguma execução, coisa da qual ele é incapaz. Ele só deve participar do governo para escolher seus representantes, o que está bem a seu alcance. Pois, se há poucas pessoas que conhecem o grau preciso da capacidade dos homens, cada um é capaz, no entanto, de saber, em geral, se aquele que escolhe é mais esclarecido do que a maioria dos outros.

O corpo representante tampouco deve ser escolhido para tomar alguma decisão ativa, coisa que não faria direito, mas para fazer leis, ou para ver se foram bem executadas aquelas que fez, coisa que pode muito bem fazer e, até mesmo, só ele pode fazer bem.

Sempre há, num Estado, pessoas distintas pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas honras; mas se elas estivessem confundidas no meio do povo e só tivessem uma voz como a dos outros a liberdade comum seria sua escravidão, e elas não teriam nenhum interesse em defendê-la, porque a maioria das resoluções é contra elas. A parte que lhes cabe na legislação deve então ser proporcional às outras vantagens que possuem no Estado, o que acontecerá se formarem um corpo que tenha o direito de limitar as iniciativas do povo, assim como o povo tem o direito de limitar as deles.

Assim, o poder legislativo será confiado ao corpo dos nobres e ao corpo que for escolhido para representar o povo, que terão cada um suas assembleias e suas deliberações separadamente, e opiniões e interesses separados.

Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de alguma forma, nulo. Só sobram dois; e, como precisam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta por nobres é muito adequada para produzir este
efeito.

O corpo dos nobres deve ser hereditário. Ele o é em primeiro lugar por sua natureza; e, aliás, é preciso que possua um grande interesse em conservar suas prerrogativas, odiosas por si mesmas, e que, num Estado livre, devem sempre estar em perigo.

Mas, como um poder hereditário poderia ser induzido a seguir seus interesses particulares e a se esquecer dos do povo, é preciso que nas coisas em que se tem muito interesse em corrompê-lo, como nas leis que concernem à arrecadação de dinheiro, ele só participe da legislação por sua faculdade de impedir, e não de estatuir.

Chamo faculdade de estatuir ao direito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado por outrem. Chamo faculdade de impedir ao direito de anular uma resolução tomada por outrem; o que era o poder dos tribunos de Roma. E ainda que aquele que possua a faculdade de impedir também possa ter o direito de aprovar, no entanto, esta aprovação não é mais do que uma declaração de que ele não faz uso da faculdade de impedir e deriva desta faculdade.

O poder executivo deve estar entre as mãos de um monarca, porque esta parte do governo, que precisa quase sempre de uma ação instantânea, é mais bem administrada por um do que por vários; ao passo que o que depende do poder legislativo é com frequência mais bem ordenado por muitos do que por um só.

Pois, se não houvesse monarca e o poder executivo fosse confiado a um certo número de pessoas tiradas do corpo legislativo, não haveria mais liberdade, porque os dois poderes estariam unidos, participando as mesmas pessoas, por vezes, e podendo sempre participar de um e de outro.

Se o corpo legislativo passasse um tempo considerável sem se reunir, não haveria mais liberdade. Pois aconteceria uma destas duas coisas: ou não haveria mais resolução legislativa, e o Estado cairia na anarquia; ou estas resoluções seriam tomadas pelo poder executivo, e ele se tornaria absoluto.

Seria inútil que o corpo legislativo estivesse sempre reunido. Seria incômodo para os representantes e, aliás, ocuparia demais o poder executivo, que não pensaria em executar, mas em defender suas prerrogativas e o direito que tem de
executar.

Além disto, se o corpo legislativo estivesse continuamente reunido, poderia acontecer que só se chamariam novos deputados para o lugar daqueles que morressem, e, neste caso, uma vez corrompido o corpo legislativo, o mal não teria remédio. Quando diversos corpos legislativos sucedem uns aos outros, o povo, que tem uma má opinião do corpo legislativo atual, coloca, com razão, suas esperanças naquele que virá depois. Mas se fosse sempre o mesmo corpo, o povo, vendo-o uma vez corrompido, não esperaria mais nada de suas leis; tornar-se-ia furioso, ou cairia na indolência.

O corpo legislativo não deve convocar a si mesmo, pois se considera que um corpo só tem vontade quando está reunido; e, se não se convocasse unanimemente, não se saberia dizer que parte seria verdadeiramente o corpo legislativo: a que estivesse reunida, ou aquela que não estivesse. Se possuísse o direito de prorrogar a si mesmo, poderia acontecer que não se prorrogasse nunca, o que seria perigoso no caso em que quisesse atentar contra o poder executivo. Além disso, existem períodos mais convenientes do que outros para a reunião do corpo legislativo: logo, é preciso que seja o poder executivo que regulamente a época e a duração destas assembleias, em relação às circunstâncias que conhece.

Se o poder executivo não tiver o direito de limitar as iniciativas do corpo legislativo, este será despótico; pois, como ele poderá outorgar-se todo o poder que puder imaginar, anulará os outros
poderes.

Mas não é preciso que o poder legislativo tenha reciprocamente a faculdade de limitar o poder executivo. Pois, sendo a execução limitada por natureza, é inútil limitá-la: além do que o poder executivo exerce-se sempre sobre coisas momentâneas. E o poder dos tribunos de Roma era vicioso, enquanto não somente limitava a legislação como também a própria execução, o que causava grandes males.

Mas, se, num Estado livre, o poder legislativo não deve ter o direito de frear o poder executivo, tem o direito e deve ter a faculdade de examinar de que maneira as leis que criou foram executadas; e é esta a vantagem que possui este governo sobre os de Creta e da Lacedemônia, onde os cosmos e os éforos não prestavam contas de sua
administração.

Mas, qualquer que seja este exame, o corpo legislativo não deve ter o poder de julgar a pessoa e, por conseguinte, a conduta daquele que executa. Sua pessoa deve ser sagrada, porque, sendo necessária para o Estado para que o corpo legislativo não se torne tirânico, a partir do momento em que fosse acusado ou julgado, não haveria mais liberdade.

Neste caso, o Estado não seria uma monarquia, e sim uma república não livre. Mas, como aquele que executa não pode executar mal sem ter maus conselheiros, que odeiam as leis enquanto ministros, ainda que elas os favoreçam enquanto homens, estes podem ser procurados e punidos. Esta é a vantagem deste governo sobre o de Cnido, onde, como a lei não autorizava a levar a julgamento os “amimones, mesmo após sua administração”, o povo nunca podia cobrar as injustiças que lhe haviam feito.

Embora em geral o poder de julgar não deva estar unido a nenhuma parte do legislativo, isto está sujeito a três exceções, fundadas no interesse particular daquele que deve ser julgado.

Os grandes estão sempre expostos à inveja, e se fossem julgados pelo povo poderiam estar em perigo, e não gozariam do privilégio que possui o menor dos cidadãos, num Estado livre, que é o de ser julgado por seus pares. Assim, é preciso que os nobres sejam levados não aos tribunais ordinários da nação, e sim a esta parte do corpo legislativo que é composta de nobres.

Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse, em certos casos, rigorosa demais. Mas os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor. Assim, é a parte do corpo legislativo que acabamos de dizer ter sido, em outra oportunidade, um tribunal necessário que se mostra de novo necessária agora; sua autoridade suprema deve moderar a lei em favor da própria lei, sentenciando com menos rigor do que ela.

Poderia ainda acontecer que algum cidadão, nos negócios públicos, violasse os direitos do povo e cometesse crimes que os magistrados estabelecidos não soubessem ou não quisessem castigar. Mas, em geral, o poder legislativo não pode julgar; e o pode menos ainda neste caso particular, onde ele representa a parte interessada, que é o povo. Logo, ele só pode ser acusador. Mas diante de quem fará a acusação? Irá rebaixar-se diante dos tribunais da lei, que lhe são inferiores e compostos, aliás, de pessoas que, sendo do povo como ele, seriam levadas pela autoridade de tão grande acusador? Não: é preciso, para conservar a dignidade do povo e a segurança do particular, que a parte legislativa do povo faça a acusação perante a parte legislativa dos nobres, que não tem nem os mesmos interesses, nem as mesmas paixões que ela.

Esta é a vantagem que possui este governo sobre a maioria das repúblicas antigas, onde havia tal abuso, e o povo era ao mesmo tempo juiz e acusador.

O poder executivo, como já dissemos, deve participar da legislação com sua faculdade de impedir, sem o que ele seria logo despojado de suas prerrogativas. Mas se o poder legislativo participar da execução o poder executivo estará igualmente perdido.

Se o monarca participasse da legislação com poder de decidir, não haveria mais liberdade. Mas, como é necessário, no entanto, que participe da legislação para se defender, é preciso que tome parte nela com a faculdade de impedir.

A causa de que o governo tenha mudado em Roma foi que o Senado, que tinha uma parte do poder executivo, e os magistrados, que tinham a outra, não possuíam, como o povo, a faculdade de impedir.

Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o corpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo.

Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente.

Como o poder executivo só faz parte do legislativo com sua faculdade de impedir, não poderia participar do debate das questões. Não é nem mesmo necessário que proponha, porque, podendo sempre desaprovar as resoluções, pode rejeitar as decisões das propostas que não gostaria que tivessem sido feitas.

Em algumas repúblicas antigas, onde o povo em conjunto debatia as questões, era natural que o poder executivo as propusesse e as debatesse com ele; sem isto, haveria nas resoluções uma estranha confusão.

Se o poder executivo estatuir sobre a arrecadação do dinheiro público de outra forma que não a de seu consentimento, não haverá mais liberdade, porque ele se tornará legislativo no ponto mais importante da legislação.

Se o poder legislativo estatui, não de ano em ano, mas para sempre, sobre a arrecadação dos dinheiros públicos, corre o risco de perder sua liberdade, porque o poder executivo não dependerá mais dele; e quando se possui tal direito para sempre é bastante indiferente que o recebamos de nós ou de outrem. O mesmo ocorre se ele estatuir, não de ano em ano, mas para sempre, sobre as forças de terra e de mar que deve confiar ao poder executivo.

Para que aquele que executa não possa oprimir, é preciso que os exércitos que se lhe confiam sejam do povo e tenham o mesmo espírito do povo, como aconteceu em Roma até a época de Mário. E, para que seja assim, só existem dois meios: ou que aqueles que são empregados no exército possuam bens suficientes para responder por sua conduta perante os outros cidadãos e só estejam alistados por um ano, como se praticava em Roma; ou, se se possui um corpo de tropas permanente, onde os soldados são uma das partes mais vis da nação, é preciso que o poder legislativo possa dissolvê-lo quando quiser, que os soldados morem com os cidadãos e não haja nem acampamento separado, nem caserna, nem praça de guerra.

Uma vez estabelecido o exército, ele não deve depender imediatamente do corpo legislativo, e sim do poder executivo, e isto pela natureza da coisa, consistindo sua atribuição mais em ação do que em deliberação.

É da maneira de pensar dos homens que se valorize mais a coragem do que a timidez; a atividade do que a prudência; a força do que os conselhos. O exército sempre desprezará um senado e respeitará seus oficiais. Não dará importância às ordens que lhe serão enviadas da parte de um corpo composto por homens que achará tímidos e por isso indignos de comandá-lo. Assim, tão logo o exército depender unicamente do corpo legislativo, o governo se tornará militar. E se alguma vez aconteceu o contrário, foi em razão de algumas circunstâncias extraordinárias; ou porque o exército está sempre separado, ou porque ele é composto de vários corpos que dependem cada um de sua província particular, ou porque as cidades capitais são praças excelentes, que se protegem só por sua situação e onde não há
tropas.

A Holanda goza de ainda maior segurança do que Veneza; ela afogaria as tropas revoltadas, ela as faria morrer de fome. Elas não se encontram em cidades que poderiam dar-lhes subsistência; logo, esta subsistência é precária.

Se, no caso em que o exército é governado pelo corpo legislativo, circunstâncias particulares impedirem o governo de se tornar militar, cair-se-á em outros inconvenientes; de duas coisas, uma: ou será necessário que o exército destrua o governo, ou que o governo enfraqueça o
exército.

E este enfraquecimento terá uma causa muito fatal: nascerá da própria fraqueza do governo.

Se quisermos ler a obra admirável de Tácito, Sobre os costumes dos germanos, veremos que foi deles que os ingleses tiraram a ideia de seu governo político. Este belo sistema foi descoberto nos bosques.

Assim como todas as coisas humanas têm um fim, o Estado do qual falamos perderá sua liberdade e perecerá. Roma, Lacedemônia e Cartago pereceram. Ele perecerá quando o poder legislativo for mais corrupto do que o poder executivo.

Não é de minha alçada examinar se os ingleses gozam atualmente desta liberdade ou não. Para mim é suficiente dizer que ela está estabelecida por suas leis, e não vou além.

Não pretendo com isto rebaixar os outros governos, nem dizer que esta extrema liberdade política deve mortificar aqueles que só gozam de uma liberdade moderada. Como eu diria tal coisa, eu que penso que até mesmo o excesso de razão nem sempre é desejável e que os homens se acomodam sempre melhor nos meios do que nas
extremidades?

Harrington, em seu Oceana, também examinou qual era o mais alto grau de liberdade a que a constituição de um Estado pode ser levada. Mas pode-se dizer dele que só procurou por esta liberdade depois de havê-la desprezado e que construiu Calcedônia tendo a costa de Bizâncio diante dos olhos.

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A República por Daumier, 1848

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Publicado originalmente n’O Grande Teatro do Mundo.

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