Poesia

“Vindima”, por Lawrence Flores Pereira

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Vindima

Lawrence Flores Pereira

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Cézanne, Jas de Bouffan, 1876

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Intoxicado de beleza, imolando

…………………………………………….a vida em teu nome,

Indo e vindo,

………………….no aqui, no agora,

……………………………………………. pequeno,

Equidistante,

…………………..eu também ardo

…………………………………………..como se junto

………………………………………………………………..à fonte,

Junto aos hinários sagrados

……………………………………….que retornam

E me inundam

……………………..dadivosos.

O caminho que leva

……………………………..a ti

……………………………………é provação: é núpcias das coisas ínfimas

Mansidão

……………..da casa

………………………….e dos trabalhos, mãos.

……………………………..

E eu preciso de outra raça de palavras

Para

……..dizer de ti

…………………….e das pequenas coisas,

Porque

………….nesse ímpeto de

………………………………….subir

Minhas pernas

……………………desaprenderam

………………………………………….de caminhar.

E subir às vezes é queda.

……………………………..

…………………………Ensina-me, ó noite sobre o mar,

De um tempo

…………………..outro

……………………………quando, ao lançar

As barcas

 …………….no sal dos anos,

……………………………………..os pescadores

Intuíam sob o casco

…………………………….teu rumor.

……………………………..

Hoje,

………….timão e vela,

……………………………..mais seguro

………………………………………………. de teu norte,

Escudado pelo transe

………………………………..que vem de ti,

……………………………………………………..tão longe quanto

Alcança a vista,

…………………….. queimando nele por ti,

nunca sem

……………….o êxtase do simples,

……………………………………………. do pequeno:

eu me aparto de mim

…………………………….. na sobreposição

……………………………………………………..do choque

da imago

……………… de teus olhos

…………………………………..atravessando os meus.

……………………………..

Nem mais um dia para ti,

……………………………………medo,

……………………………..

Andrajo de segunda mão,

……………………………………restos do mundo,

Constructo,

………………..distração:

……………………………….nem uma concessão a ti,

Morte-em-vida,

……………………..falsária que absorve as almas,

Que aos poucos,

……………………….consome,

……………………………………… lançando a terra

Inteira

………….na muda inércia.

………….

.…….…….

…………..         

Mas tu, só tu trazes em ti o anjo,

…………………………….e suas purgações,

Pois

………na tua ceifa

………………………..brandes a espada inclemente,

E repudias

……………… o pão inócuo da apostasia

…………………………………..  e sabes detectá-lo à primeira vista.

E jovem

……………não te enganas

…………………………………..com o irrelevante,

nem te atrasas

……………………em teu plantio

Embora

……………dele brote a flor inquietante

E tenhas

…………… estado muito, muito perto de morrer.

………….

.…….…….

……….

Isso vai nos custar,

…………………………..vai ser oneroso,

Mas não

……………tanto quanto não

…………………………………….viver

Perto do abismo dos nossos olhos.

………………

……………… Repito: Nenhuma concessão ao inane.

………………

…………………………E por isso eu fui até a praia

Para

………evocar

…………………tua força primeira!

Para ti, amor

………………...  o incondicional — os longos dias

Júbilo, cor e sintonia

………………………………e se for

…………………………………………..dor,

……………………………..será da mais verídica.

………….

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……….

O herói é aquele que se retira

………………………………………….e dentro de si

se dissolve.

………………..Ele redesenha

………………………………………o mundo.

Ele vasculha o sempiterno

……………………………………..do fundo de sua ascese;

Tu também,

…………………filha do entusiasmo,

……………………………………………….velando na recusa,

já recuas com tuas vagas,

…………………………………….deitando à frente a sombra —

Mãe que olha o filho —

………………………….

Que tu mesma

…………………….interpelas.

………………………….

Pois assim era

…………………….a melancolia

Um flerte.

……………..e adivinhar não se podia

Que vagas,

……………….que ondas,

………………………………..que mar

Que espalmar,

……………………que gongos roucos dela

Surgiriam

……………..entre os pólipos morridos do velho tempo,

………………………….

Ela, a menina que veio do mar adentro.

………………………….

São estranhos

…………………….os teus estrondos longe.

Agora

…………estão mais próximos.

………………………………………..Estás aqui.

………………………….

Eles trazem até as minhas laudes

………………………………………………como manto

Olvideiro

…………….o sorvelinho

………………………………..da exultação,

Só o regalo,

…………………o gozo,

……………………………..o enlevo,

……………………………………………o gáudio.

E são eles

………………que avigoram o canto

Na consagração

………………………das festas sacras

……………………………………………….que saúdam tua vindima.

………….

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……….

………………………………E que doçura a luz!

………………………………E como é bom para os olhos ver o sol!

………………………………

É tão bom o amor por ti e o teu amor por mim.

E como

…………..é bom também amar o amor,

Paixão alta

…………………fulgurante,

………………………………….indefectível,

Canção ao vivo,

Ascese,

…………..o corpo da amada,

……………………………………..que exubera

…………………………………………………………luxos e pelagens

Bela mais do que todas as outras

Vê-la é como a

……………………..estrela que se atrela

…………………………………………………..ao final de um ano bom”

É lá na cama larga

………………………….que tudo se decide,

A morte do passado,

……………………………nossas núpcias antigas

Amor e desejo

Iguais

………..a cravos

……………………..bem pregados

Parábolas

……………..e pontas de aguilhão!

……………..

Pois para além

…………………….da melancolia

Um mundo

………………..imenso se anuncia:

E o herói

…………….é o que escreve sobre o fio da faca,

……………..

 …………………pandórico preparando

A travessia,

………………..colhida e misturada nas vazões do sonho.

Os que te

……………..viram crescer

………………………………….não podiam saber,

Nem por tuas origens

………………………………nem pela tua extrema

…………………..pobreza

……………………………….do que trazias

…………………………………………….e por isso eu digo:

Dissolvam-se as cidades

……………..

Dissolvam-se as ideias

………………………………..falsas.

E se façam de novo

……………………………novas casas de adobe

Ou barro

…………….batido

……………………….que retorne à terra.

Novas praças

…………………..novas ruas

……………………………………novas feiras

Onde as balanças

…………………………pesem com justeza.

Mas tu, amor, agora, descansa

……………..

…………………………………………..e deixa que

Meu zelo

……………..chegue até ti

…………………………………simples e renovado

Esteio e chão

…………………..da casa,

………………………………..fundação.

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Porto Alegre, 01/06/2021

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Lawrence Flores Pereira

Lawrence Flores Pereira é professor da UFSM. É pós-doutor e professor pesquisador do Massachusetts Center for Renaissance Studies, na Universidade de Massachusetts, Amherst. Suas publicações incluem um livro de poemas, 'Engano especular' (sob o pseudônimo Lawrence Salaberry), e inúmeras traduções poéticas: Antígona, de Sófocles, poesia barroca francesa, Charles Baudelaire, T.S. Eliot, entre outros. É organizador de uma série de volumes sobre a literatura dos séculos XVI e XVII e editor da revista acadêmica Philia&Filia (em parceria com Kathrin Rosenfield).