Falando de Música

Além de Beethoven, além de São Paulo: a temporada musical de 2020

por Leandro Oliveira

Em São Paulo, a atividade incansável e laudatória das duas principais insituições de música – a Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e a Sociedade Cultura Artística – traz para 2020 algumas grandes atrações internacionais. Em ambas, Beethoven é o nome inescapável de um ano em que, em todo mundo, celebra-se os 250 anos de nascimento do compositor que para todos os efeitos é a figura mais importante da história da música ocidental. 

Será um ano em que obras raras do catálogo do gênio de Bonn, como o oratório “Cristo nos Montes das Oliveiras” (22, 23 e 24 de outubro), suas duas missas – “Missa Solemnis em Ré Maior, Op.123” (dias 10, 11 e 12 de março) e a “Missa em dó maior” (dias 21, 22 e 23 de maio) – ou as injustamente pouco programadas “Abertura Zur Namensfeier, Op.115”, “Concerto Tríplice em Dó Maior, Op.56”, “Canto Elegíaco, Op.118” e a “Fantasia Coral, Op.80” (nos dias 08, 09 e 10 de outubro) serão apresentadas pela Osesp. 

Até por isso, quando o público paulistano terá a oportunidade de ouvir a integral das 32 “Sonatas para piano” (com Paul Lewis, Louis Lortie, Andreas Staier, Alexander Melnikov, Jean-Efflam Bavouzet, Fazil Say, Aleyson Scopel, Pablo Rossi, Ronaldo Rolim, Sonia Rubinsky, Eduardo Monteiro, Leonardo Hilsdorf e Lucas Tomazinho pela Fundação Osesp), duas versões das cinco “Sonatas para Violoncelo” (com Antonio Meneses e Ricardo Castro, pela Fundação Osesp; com Gautier Capuçon e Jerôme Ducros, pela Cultura Artística), alguns dos mais importantes Trios (com o Trio Wanderer, dias 24 e 25 de março), a integral dos “Concertos” e algumas diferentes versões das “Sinfonias” (tanto com a Osesp quanto pelas orquestras Academy de Saint Martin in the Fields e a Orchestre de Chambre Nouvelle Europe), sem qualquer demérito para o interesse dessa imersão, os destaques da temporada ficam para os programas que fogem à efeméride.

Do Cultura Artística interessa, assim, o programa do dia 28 de Abril do Quarteto Hagen, quando serão apresentados os “Quarteto de cordas nº 10, op.118” de Dmitri Shostakovich, “Quarteto de cordas nº 1, op.12”  de Félix Mendelssohn e, de quebra, a pequena e rara “Crisantemi, elegia para quarteto de cordas” de Giacomo Puccini. De interesse absoluto, ainda, os concertos dos dias 9 e 10 de junho, quando o estelar Daniil Trifonov traz transcrições e transcriações da obra de Johann Sebastian Bach – um seleção de repertório que ficará para a história da programação pianística da cidade. A conferir, evidentemente, o programa a ser anunciado pelo grupo “Le Concert de la Loge” e o contratenor Philippe Jaroussky, no evento a acontecer nos dias 27 e 28 de outubro.

Nos dias 16, 17 e 18 de abril, a Osesp apresenta um programa onde obras de Maurice Ravel – “Alborada del Gracioso”, “Concerto em Sol Maior”, “Tzigane – Rapsódia para violino e Orquestra” e “Bolero” – convivem com duas pequenas jóias de Lili Boulanger, uma artista ainda a ser entendida pelo grande público nos termos de sua genialidade. “D’un Matin de Printemps” e “D’un Soir Triste” são talvez as melhores peças para entrada no catálogo da precocemente falecida compositora francesa. Louis Langrée dirige ainda, em setembro (dias 10, 11 e 12), um programa “vienense”, com a “Passacaglia op. 1” de Anton Webern e a “Sinfonia nº 4” de Johannes Brahms emoldurando o “Concerto para violino” de Alban Berg, com solo de Isabelle Faust. Aliás, cada uma das peças da Segunda Escola de Viena (Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern) deve ser agendada com cuidado reiterado: são clássicos absolutos do modernismo. Ao lado de algumas “Sinfonias” de Beethoven, em programas dirigidos pelo novo diretor musical, Thierry Fischer, serão apresentadas as ”Cinco Peças para Orquestra, Op.16” de Arnold Schoenberg (07, 08 e 09 de maio), ”Seis Peças para Orquestra, Op.6” de Anton Webern (11, 12 e 13 de Junho) e as “Três Peças para Orquestra, Op.6” de Alban Berg (10, 11 e 12 de dezembro).

O Coro da Osesp, sob a direção do maestro inglês Thomas Blunt, apresentará no dia 19 de abril um programa de obras de compositores modernistas, com Francis Poulenc (“Missa em Sol”), Gustav Holst (“Nunc Dimittis), William Walton (“Set me as a seal upon thine heart”), Olivier Messiaen (“O Sacrum Convivium), Michael Tippett (“A Child of our Time: Five Negro Spirituals”) e Frank Martin (“Missa para dois Coros”). 

Em Novembro, Jean-Guihen Queyras participa de dois programas imperdíveis: nos dias 12, 13 e 14 com as “Variações sobre um Tema Rococó” de Piotr Ilitch Tchaikovsky e a estréia latino-americana da “Obra para Violoncelo e Orquestra” de Tristan Murail, no dia 15 – ao lado do quarteto Osesp e Maria Angélica Cameron – com o “Sexteto op. 18″ de Johannes Brahms. Em Dezembro, encerrando um ano pleno de energia, não é recomendável perder, ainda, o programa dirigido por Neil Thomson, com obras de Alberto Nepomuceno, Richard Wagner e o “Maracatu do Chico Rei” de Francisco Mignone.

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A temporada de concertos 2020 da Filarmônica de Minas Gerais mostra a maturidade deste que pode ser já entendido como um dos mais importantes e consistentes projetos sinfônicos do país. Organizada com quatro séries de doze concertos cada, às quintas e sextas, e uma série aos sábados com nove concertos, essa Temporada marca os cinco anos da Sala Minas Gerais.

As boas notícias da orquestra já haviam chegado quando no primeiro semestre foi lançado uma cativante gravação com obras de Alberto Nepomuceno pelo selo Naxos. De fato, para além da sempre reveladora “Sinfonia em sol menor”, a apresentação em catálogo internacional de uma pequena jóia como a “Série Brasileira” é motivo de todas as loas. Ainda: na gravação, a orquestra mostra algumas evidentes qualidades conquistadas ao longo do trabalho desses cinco anos, como flexibilidade no tempo, a palheta de som densa mas jamais opaca – que na gravação colaborou muito apropriadamente em expressar a matriz centro-européia da escrita de Nepomuceno -, ou um equilíbrio engenhoso entre os naipes. Tudo a justificar um nível excelente para a interlocução internacional ao qual a orquestra parece, com razão, pleitear. Não à toa, o álbum angariou críticas positivas em revistas especializadas como a Gramophon e a Diapason.

A penúltima visita do Estado da Arte ao projeto, realizada em julho desse ano, confirmou as impressões de evolução do grupamento instrumental mineiro, assim como da entusiasmada recepção do público local – atento e estimulado por um programa ao mesmo tempo culto e acessível, com o “Concerto para violino  nº 1” de Benjamin Britten (Augustin Hadelich, como solista), na primeira parte, a “Sinfonia nº 36 em Dó maior, K. 425 – Linz”, de W. A. Mozart e a charmosa “Contos dos bosques de Viena, op. 325” de Johann Strauss Jr., na segunda parte.

O catálogo de Strauss Jr. é apenas aparentemente fácil. Herbert von Karajan e Frank Shipway estavam entre os dois maestros que sugeriam este repertório para a “educação” de uma orquestra – e, de fato, trata-se de um repertório que apresenta desafios objetivos quanto a naturalização em conjunto da agógica que caracteriza o bom estilo vienense. Na performance do dia 11 de Julho, sob regência do maestro Fabio Mechetti, para além do puro deleite de uma música despretensiosa, foi possível presenciar em todos os termos a maturidade musical da orquestra mineira. Se há três ou quatro anos era fácil perceber que a precisão virtuosística dos instrumentistas cobrava o preço de uma certa rigidez ritmica do conjunto, agora foi possível ouvir não apenas a respiração natural dos músicos como a de um grupo coeso, mas a permanente atmosfera de jogo e distensão que apenas formações de primeiro nível são capazes de alcançar.

Para 2020, ao menos seis programas especialíssimos valem a visita do público de outras partes do Brasil a Belo Horizonte. No primeiro semestre, a “Sinfonia no 2 em dó menor – Ressurreição” de Gustav Mahler, que abre a temporada nos dias 13 e 14 de fevereiro; o programa com a “Sinfonia nº 1” de Lorenzo Fernandez e a participação de Cristian Budu com o “Concerto para a mão esquerda” de Maurice Ravel e o “Concerto para piano no 1 em Ré bemol maior, op. 10” de Sergei Prokofiev, nos dias 07 e 08 de maio; e o compositor Leif Segerstam regendo a estréia mundial de sua “Sinfonia Piccola” (um programa que é completado pelo “Concerto para piano” de Dimitar Nenov e a “Sinfonia no 7 em Dó maior, op. 105” de Jean Sibelius), nos dias 28 e 29 de maio. No segundo semestre, o programa com o “Primeiro Concerto para violoncelo” de Villa-Lobos, com solo de Antonio Meneses (e o “Concerto para Orquestra”, de Bela Bartok), nos dias 09 e 10 de julho; a descoberta para o público brasileiro da obra do grande compositor japonês Takashi Yoshimatsu – de quem a extraordinária “Sinfonia nº4″ será apresentada nos dias 05 e 06 de Novembro (um programa que conta ainda com o “Segundo Concerto para piano” de Sergei Rachmaninoff); e, por fim, a ópera “Fidélio”, de Beethoven nos dias 03 e 04 de dezembro. 

São seis programas de uma Temporada luminosa com, entre outras obras beethovenianas, a integral dos concertos para piano com Arnaldo Cohen entre 25 de Julho e 07 de Agosto. Num tom mais pessoal, sugiro não subestimar o inteligente e bem pensado programa puramente orquestral com “Cinco Movimentos, op. 5” de Anton Webern, “Esboços Húngaros, BB 103” e Béla Bartók, “Valsa Ouro e Prata, op. 79” de Franz Léhar e, ainda, a “Sinfonia no 7 em Lá maior, op. 92” de Beethoven, nos dias 02 e 03 de Julho.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.