Política

Alistamento obrigatório: violação de Direitos Humanos, cultura autoritária

por Mano Ferreira, com contribuição de Alan Gabriel Teixeira

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Numa República cuja história começou com um golpe e se implementou com espadas, o germe do autoritarismo precisa ser continuamente vigiado e combatido em todo aparelho do Estado, especialmente em suas Forças Armadas. Apesar disso, como uma banalidade cotidiana, até hoje convivemos com instituições herdadas de nossas ditaduras militares. É o caso do alistamento militar obrigatório. Veiculada todos os anos por meio de campanhas publicitárias em rede nacional de rádio e TV, a obrigatoriedade do alistamento é obsoleta e autoritária. Um resquício da cultura política antidemocrática ainda fossilizada no seio do Estado brasileiro.

Todos os anos, cerca de 1,5 milhão de jovens brasileiros do sexo masculino com 18 anos recém completados são obrigados a se alistarem para o serviço militar, independente de sua própria vontade. Quem não se alista no prazo é multado e fica impedido de tirar passaporte, se matricular em instituições de ensino e obter carteira profissional, entre outras penalidades. A cada ano, são efetivamente recrutados entre 80 a 100 mil garotos em todo Brasil. Segundo os próprios militares, o número de jovens dispostos a servir às Forças Armadas voluntariamente é maior do que a capacidade de absorção pelas três forças. Números divulgados pelo Estadão em 2017, referentes apenas ao estado de São Paulo, indicam que 10% dos alistados não desejavam ser dispensados. Nesse caso, o número de jovens dispostos a servir voluntariamente seria o dobro da incorporação média. Por si só, este dado já deveria esvaziar qualquer discussão acerca do sentido da manutenção da obrigatoriedade do alistamento.

A situação, porém, se torna ainda mais grotesca: enquanto jovens que gostariam de servir não conseguem ser incorporados, outros são forçados a servir contra a própria vontade. O número de jovens submetidos a essa violação é impreciso, por falta de transparência das Forças Armadas. Segundo estimativa divulgada pelo Exército, também em 2017, um número entre 4% a 8% do total de incorporados não desejava servir. Em 10 anos, isso significa um volume entre 40 a 80 mil jovens recrutados contra sua própria vontade. Um número assustador de cidadãos violentados em suas autonomias pelo próprio Estado brasileiro, que deveria protegê-las.

A obrigatoriedade do processo com punições para seu não cumprimento é a antítese dos princípios que norteiam as democracias liberais pelo mundo, pois contraria a autonomia do indivíduo e inverte a lógica da relação entre Estado e sociedade. Em democracias liberais, o Estado existe para servir à sociedade, não o oposto. No Brasil, a maioridade masculina é acompanhada por um ritual compulsório de negação da liberdade, uma roleta russa estatal contra a autonomia dos jovens na construção de seu próprio destino. Em plena porta de entrada da cidadania e da carreira militar.

A cada 20 alistados, apenas 1 é convocado a servir. Mesmo assim, o medo de ser incorporado contra a própria vontade é real e aterrorizante. O Livres começou a se engajar nessa causa em 2019, apoiando o associado Emerqui da Cruz Aguiar, do pequeno município de Juara, interior do Mato Grosso, na luta pela efetivação do seu direito à objeção de consciência ao serviço militar por motivação filosófica. Desde então, o movimento já ajudou mais de 800 jovens a obterem a dispensa do serviço militar. Apesar de ainda muito pouco conhecido e menos ainda respeitado país afora, o direito à objeção de consciência ao serviço militar está previsto na Constituição, inscrito na condição de garantia fundamental do indivíduo quanto à inviolabilidade de suas convicções políticas e filosóficas.

Nas campanhas publicitárias que convocam os jovens ao alistamento, não há nenhuma menção à existência desse direito. Mesmo nas Juntas Militares onde o alistamento ocorre, geralmente não há qualquer esclarecimento sobre a questão. Pelo contrário: é comum recebermos relatos sobre a conduta de militares que, além de desconhecerem essa prerrogativa dos cidadãos, reagem à solicitação de dispensa por objeção de consciência com ameaças, enumerando as punições previstas para o não alistamento e ostensivamente intimidando jovens ainda em fase de descoberta do exercício da cidadania. A cada ano, recebemos centenas de mensagens de jovens que temem a perda de seus empregos, o atraso na conclusão dos seus cursos de ensino superior, a distância de suas famílias ou a humilhação pelo desrespeito a suas identidades sexuais, entre tantas outras dificuldades que o serviço militar obrigatório pode causar.

Como se não bastasse, existem centenas de processos na Justiça Militar sobre maus tratos e lesões corporais que levaram militares a sofrer traumas permanentes e até a morte durante treinamentos e trotes. Certamente esses processos representam os casos mais extremos, mas é razoável supor que os números verdadeiros de outras situações violadoras dos Direitos Humanos sejam muito maiores do que as notificações oficiais. Ao fim e ao cabo, estamos falando de uma verdadeira tortura psicológica mantida sem qualquer propósito pelo Estado brasileiro.

Os depoimentos mais cortantes nos chegam daqueles que tentam recorrer à nossa ajuda após a incorporação, já em pleno serviço militar. Em geral, são pessoas que já estão sofrendo danos no prosseguimento de suas vidas, nos estudos ou trabalho, além de usualmente estarem sendo vítimas de humilhações no batalhão. Infelizmente, não há um entendimento pacífico quanto ao prazo adequado para que o pedido de objeção de consciência seja feito pelo cidadão. Essa situação gera receio de que, após a incorporação, a iniciativa seja enquadrada como crime militar de insubmissão, previsto no Código Penal Militar.

Recentemente, o Livres obteve uma vitória muito importante na justiça. A 16ª Vara da Justiça Federal determinou que o Exército suspenda a incorporação de um jovem associado do Crato, sertão do Ceará, que estava em pleno serviço militar forçado após ter tido a sua solicitação de dispensa por objeção de consciência ilegalmente negada pelo Comando da 10ª Região Militar do Exército. Segundo o entendimento do juiz Flávio Marcondes Soares Rodrigues, “a objeção de consciência não guarda pertinência com prazos preclusivos”. Sendo assim, podemos estar diante de um importante precedente para evitar o prosseguimento de violações em curso.

Quando consideramos o baixo risco de engajamento bélico do país, toda essa questão adquire ares ainda mais sem sentido. Recentemente, as próprias Forças Armadas afirmaram que existiam quartéis em Brasília sofrendo desabastecimento de alimentos, como arroz, feijão e óleo de cozinha. Além de garantir a liberdade de escolha dos jovens, o fim do alistamento e serviço militar obrigatórios poderia ajudar as próprias Forças Armadas a ampliar a profissionalização de suas tropas e também a racionalidade no uso do dinheiro público. Não podemos esquecer que coordenar um processo seletivo com milhões de candidatos por todo país é complexo e custoso. Ao tornar o processo voluntário, a economia de recursos com a redução do processo de alistamento poderia ser destinada para a melhoria dos treinamentos e equipamentos das tropas, tornando o uso do dinheiro público mais eficiente e racional.

Do ponto de vista da eficiência das Forças Armadas numa sociedade democrática, é claramente contraprodutivo obrigar jovens a se alistarem contra a sua vontade e vocação, ampliando compulsoriamente a concorrência do processo seletivo e oficializando uma lógica de subordinação do cidadão à Força militar. Há contrassenso também do ponto de vista dos jovens que realmente gostariam de prestar o serviço militar e se veem obrigados a participar de um processo mais concorrido do que o necessário. O problema se agrava após a incorporação. Os jovens recrutados às Forças Armadas contra a própria vontade se tornam soldados desmotivados e estressados, tendo desempenho pior do que teriam soldados voluntários — além, claro, do problema mais grave que precisa ser sempre realçado: a violação aos direitos humanos configurada pelo trabalho forçado.

Ter homens e mulheres que prestam o serviço militar sempre por escolha e vocação seria muito benéfico para todos. Enquanto a principal porta de entrada para a carreira militar for um ritual institucionalizado de desrespeito às liberdades e violação de Direitos Humanos, não teremos Forças Armadas realmente imbuídas da cultura democrática. Quando o desrespeito à autonomia do indivíduo é uma imposição legal para o recrutamento de seus quadros, qual o sentido de imaginar uma corporação militar que de fato defenda a democracia e respeite os Direitos Humanos?

Precisamos pôr fim a essa barbaridade. O fim do alistamento militar obrigatório evitaria o desgaste emocional que milhões de jovens passam anualmente e permitiria que o Exército tivesse tropas mais motivadas, profissionais e, sobretudo, respeitadoras da liberdade alheia.

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(Estadão Conteúdo)

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Mano Ferreira

Mano Ferreira é jornalista e especialista em comunicação política, cofundador e diretor de comunicação do Livres. Alumni da International Academy for Leadership da Fundação Friedrich Naumann Pela Liberdade, da Alemanha, é cofundador do Students For Liberty no Brasil.