Filosofia

A luz como metáfora da natureza metafísica principal do tempo passado

por Augusto de Carvalho

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O tempo, tema central da metafísica, mereceu a atenção de alguns dos mais valiosos pensadores, de filósofos a físicos; o que, todavia, não impediu a permanência de sua característica mais irritante, a de ser um fenômeno improvável, inexplicável e um problema aparentemente insolúvel. Talvez seja impróprio opinar sobre questões de reconhecida relevância em uma província intelectual. Eu não poderia, portanto, atrever-me a perguntar de forma sincera “o que é o tempo?”. Ainda assim, de maneira deliberadamente imprudente, permito-me especular sobre o que podemos nomear de a possibilidade do tempo, seu reconhecimento como fenômeno existente, antes de cogitar uma explicação sobre seu funcionamento ou alguma dedução lógica que prove sua realidade. A pergunta que proponho, por conseguinte, é de ordem existencial: o que exatamente possibilita experimentarmos o tempo em seu sentido mais simples, como a passagem ou a impermanência dos estados gerais da existência?

Para responder a essa questão, apresento muito rapidamente uma metáfora, a qual parte de determinada premissa que tomo emprestado das ciências físicas, da ótica, qual seja a luz é a matéria elementar catalizadora do fenômeno da visão. Em termos filosóficos, a luz deve ser compreendida, assim, como o fundamento da experiência plena do espaço. Experimentamos ou conhecemos a profundidade espacial da existência somente e na medida que há o fenômeno físico da luz, que permite, por assim dizer, a existência do espaço. Toda visão, do ponto de vista ótico, é dependente da luz, que nos autoriza, por consequência, a experimentar ou ver o espaço. Da mesma forma que a luz é a matéria ou o meio físico que nos permite ver ou conhecer o espaço, metaforicamente, o passado seria a matéria ou o meio metafísico que nos permitiria ver ou conhecer o tempo. A luz, o princípio físico que possibilita a experiência do espaço, seria um análogo do passado, o princípio metafísico que possibilita a experiência do tempo. Nesses termos, o passado seria a matéria elementar catalizadora do fenômeno do tempo.

Com essa metáfora, evidentemente não pretendo reduzir o conceito de passado ao fenômeno eletromagnético da luz, mas apenas ampliar a compreensão metafísica do fenômeno do tempo a partir da analogia entre uma experiência concreta, a visão, e outra experiência, neste caso, abstrata, a transitoriedade ou passagem da existência. Como abstração, o fenômeno da passagem do tempo é dificilmente conceitualizado, isso porque suas referências se escondem em contradições. Uma contradição natural, o tempo é por definição um fenômeno inconsistente, expressão imediata da contingência ou do caráter provisório de toda realidade, cujo contrassenso lógico entre devir e existir configura sua condição mais primeva; pois o tempo, paradoxalmente, passa sem passar, persiste efêmero, expressa a transitividade de maneira intransitiva, conjuga temporalidade e eternidade em um átimo; motivo essencial das incontáveis aporias que provêm de toda meditação sobre sua natureza: tempo é ontologicamente uma contradição. Por isso, tal como afirma a metaforologia de Hans Blumenberg, uma metáfora, exatamente por ser imprecisa e irredutível a qualquer fator concreto e consistente da realidade, amplia os sentidos da palavra tempo, uma antinomia natural.

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Hans Blumenberg (Reprodução: Der Spiegel)

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Tempo, uma abstração de primeira ordem derivada do fenômeno metafísico da transitoriedade ou passagem, alarga seu aspecto nessa metáfora, segundo a qual o passado comporta-se como a luz que possibilita a visão de certa imagem: imagem móvel da eternidade sempre presente; imagem dialética da contingência; imagem do agora, provisório, segundo um antes e um depois. O passado, assim, é o que nos permite ver o tempo, sua matéria fundamental, uma espécie de força existencial (ideal) e material (como vestígio), que constitui a aparição do que se apresenta presencialmente, aqui e agora. E como matéria existencial singular do tempo, o passado não se corresponde metaforicamente com o fenômeno, a visão, o que está ali, a existência sempre presente; mas, propriamente, o passado equivale à luz, ao meio físico que possibilita a visão, pois ele é a matéria metafísica do tempo. Não há visão sem luz, do ponto de vista físico, da mesma maneira que, da perspectiva metafísica, não há presença ou existência sem que haja passado, sem precedência ou, ainda tautologicamente, sem que haja experiência. Afinal, e a rigor, ensina a ontologia, ex nihilo nihil fit, nada advém do nada.

Somente através do passado nos é permitido olhar para qualquer fenômeno. Se há a existência, sua razão se ampara e se justifica em suficiente medida pela existência do passado. Há quem conteste e recuse essa ciência, e teorizações excessivas entulham conceitos em tentativas mirabolantes de explicar o que se mantém simples: se o tempo passa — pois sua passagem é fato físico e metafísico inultrapassável — é preciso haver passado, como substantivo, adjetivo e verbo principal da existência; pois como todos os tempos, presentes e futuros, irremediavelmente passam, eles já se tornaram ou se tornarão irresistivelmente passado. O passado não é nada além ou aquém que a origem e o destino do tempo. Mas como adverte Alberto Caeiro, sempre

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Querem uma luz melhor que a do Sol!

Querem prados mais verdes do que estes!

Querem flores mais belas do que estas que vejo!

A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.

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The Angel Standing in the Sun, JMW Turner (Reprodução: Tate)

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Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite

Augusto de Carvalho é professor e pesquisador visitante no Departamento de Filosofia Japonesa da Universidade de Quioto.