Especial Polônia: Kiéslowski e o drama moral da desespiritualização

“Decálogo”, a obra-prima máxima de Krzysztof Kiéslowski, é a melhor minissérie da história da televisão e uma das obras religiosas mais importantes dos últimos anos.

Estado da Arte continua o Especial Polônia, dedicado à cultura, à história e à política da nação que, ao longo do século XX, viu-se vitimada pelos dois totalitarismos que marcaram os 1900: o nazismo e o comunismo. Diretor de excelência, Kiéslowski foi fundo nas possibilidades de um cinema que retratasse não apenas a condição da sociedade polonesa , mas também a dimensão moral do tempo que lhe coube viver. O ‘Decálogo’ é, talvez, a obra que mais sintetiza isso.

por Miguel Forlin

Na época de lançamento  do projeto que alçaria Krzysztof Kiéslowski ao céu da cinematografia internacional, o diretor justificou a existência de sua obra da seguinte maneira: “Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que a vida tem algo de errado. Há uma espécie de atmosfera que faz com que as pessoas busquem outros valores. Elas querem contemplar as questões básicas da vida e, provavelmente, essa é a verdadeira razão para contar essas histórias.”

Cirúrgico sobre a essência da produção, esse comentário  precisa ser dividido em duas partes para que compreendamos não somente o que o cineasta quis dizer, como também a linha geral que perpassa os dez episódios do “Decálogo”. A primeira delas diz respeito à biografia do diretor e a maneira como ele aborda a sua formação cristã. Já a segunda tem a ver com o conteúdo filosófico e os dilemas morais que definem os seus principais filmes e a obra máxima de sua carreira.

Nascido na Varsóvia em 1941, ano em que a Polônia já se encontrava sob ocupação nazista, durante décadas Kiéslowski viu o próprio país sofrer inúmeras perdas em razão da Segunda Guerra Mundial e do regime comunista que se instalou na região. No entanto, mesmo diante de genocídios e da repressão promovida por regimes autoritários, ateístas e formadores de uma moral distorcida e personalizada, ele nunca perdeu a fé católica que lhe fora ensinada na infância. Aliás, é possível que a ausência de Deus na formação dos discursos ideológicos da contemporaneidade tenham reforçado-a. Afinal de contas, apesar de ter se afastado da liturgia  característica da religião, manteve, segundo declaração dada no documentário de média-metragem “Krzysztof Kiéslowski I’m So-So”, “uma relação pessoal e privada com Deus”.

Invariavelmente, isso se alastrou pelo seu desenvolvimento profissional. Depois de se formar na Escola de Cinema de Lodz, começou a realizar documentários sobre a vida dos poloneses e longas-metragens de ficção caracterizados por situações eticamente complexas. Embora as produções dessa época possam ser chamadas de “políticas”, elas revelam majoritariamente preocupações de ordens moral e existencial.  Evidentemente, a degradação proporcionada por uma ideologia desumana jogou um povo historicamente católico na lama, o qual, através da pouca força que lhe restava e do poder contido na mensagem espiritual que carregava desde os primórdios da nação, cambaleava em busca de um comportamento que pudesse ser aplicado ao menos individualmente, uma vez que a salvação coletiva parecia ser algo além de sua capacidade.

Aos olhos de Kiéslowski, ficava cada vez mais claro que, a partir do momento em que uma civilização atinge o ponto máximo de decrepitude cultural, ética, social, econômica e até mesmo estética (há uma brincadeira hilária feita pelo diretor envolvendo a feiúra do prédio no qual os dez episódios da minissérie são desenvolvidos), as pessoas voltam a atenção para os princípios que a fundamentaram. Portanto, nada mais natural que o passado judaico-cristão retornasse fortemente (se é que um dia ele desapareceu) e, por conseguinte, se tornasse o assunto de interesse de um olhar artístico, ainda mais se tratando de um cineasta conhecido por seus diagnósticos históricos.

Assim, quando o roteirista Krzysztof Piesiewicz (o qual se tornaria um colaborador contumaz de Kiéslowski), após ver uma ilustração de arte do século XV na qual os Dez Mandamentos eram adaptados à época da pintura, sugeriu ao diretor que eles fizessem o mesmo com a Polônia do fim da década de 1980, foi como se a história e o próprio desenvolvimento artístico do cineasta se encontrassem no momento exato. Dali em diante, as negociações com a televisão polonesa ? e que contaram com a ideia abandonada posteriormente de contratar dez profissionais diferentes para comandar cada um dos episódios  e a promessa de transformar em longas-metragens alguns dos capítulos ?  foram apenas o preâmbulo de um projeto ambicioso, ancorado pela intenção de retratar os questionamentos de uma nação, porém, se afastando um pouco do caráter político que marcara boa parte da carreira de Kiéslowski e privilegiando a ânsia humana por respostas espirituais.

“Talvez o melhor trabalho dramático já feito especificamente para a televisão e a obra religiosa mais impressionante produzida em qualquer campo artístico durante as últimas décadas”, segundo Robert Fulford, do National Post (uma opinião da qual eu compartilho), o “Decálogo” retrata o vazio espiritual compartilhado por pessoas de diferentes gerações e mostra as possíveis consequências que uma vida desregrada moralmente pode produzir, tanto na trajetória individual de um sujeito quanto dentro de um ambiente familiar.

Contudo, é importante ressaltar que não há nenhum tipo de pregação ou comentário definitivo acerca da exclusividade benfeitora do judaísmo e cristianismo, como se agir corretamente fosse uma capacidade somente dos membros pertencentes a essas religiões (mesmo porque isso relativizaria muito o valor artístico da obra). Em verdade, o que existe são  situações humanamente complexas, em que há várias possibilidades de ação, porém, uma indeterminação de conduta compartilhada por aqueles que devem tomar uma decisão.

Essencial, esse detalhe serve para ilustrar que a esperança do diretor (embora ele se considerasse um pessimista) não residia apenas nesse retorno aos fundamentos religiosos da Civilização Ocidental (apesar de eu acreditar que seja justamente essa a sua principal intenção), mas também no “simples” questionamento moral. É como disse Fulford: “Embora não ofereçam respostas, as histórias exploram as perguntas”. Ou seja, após décadas de submissão e comportamento forçado, o ato de perguntar e escolher um caminho já era um indicativo de liberdade e consciência individual. Além disso, a busca por algo diferente do que fora visto nos anos anteriores anuciava novas trajetórias.

É por isso que, na iminência da União Europeia, os filmes da Trilogia das Cores denunciariam os perigos totalitários e globalistas que o continente iria enfrentar pelos próximos anos. E é por isso também que, no texto anterior, intitulado “A Europa sob a ótica de Krzysztof Kiéslowski”, afirmei que a resposta para os problemas vistos nos três filmes estava em uma obra anterior do diretor, a saber, o próprio “Decálogo”. É um fato que a moral só pode ser pensada por homens livres, pois, se uma ação é inteiramente condicionada, ela não possui valor ético (e isso se estende às nações também). Dessa maneira, gozar a liberdade de poder optar é gozar o direito de ser um sujeito moral. No entanto, o que direcionará as nossas escolhas cabe a cada um de nós dizer.

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