Cinema

FOCO – “Neste mundo existem dois tipos de pessoas, meu amigo…”

por Valeska Silva

Uma parceria do Estado da Arte com a Foco – Revista de Cinema

No universo do western, o maniqueísmo preponderante que separa os vencidos dos vencedores, os vilões dos mocinhos, os heróis reticentes dos determinados ressalta a realidade brutal do oeste. A luta “por um dólar” é uma luta antiga; o homem apenas abdicou da corda no pescoço dos enforcados (e às vezes nem isso). O que verificamos através dos filmes que serão abordados neste artigo é que onde a cultura perde contato com o que é necessário à sua manutenção a barbárie se instala; e que o gosto pelo dualismo nos filmes de faroeste, derivado dos maniqueísmos do gênero, reforça um dado realista fundamental à composição do retrato do homem social em um ambiente contraditório, no qual se impõem os homens moralmente complexos.

No universo de Sergio Leone os números têm uma importância capital: os filmes se dividem em duas partes, e temos ainda duas trilogias. A divisão dos filmes em duas partes aponta para uma das constantes da obra de Leone, e um dos pontos em que a sua obra se afasta do western tradicional: a violência se intensifica a partir da saturação do maniqueísmo. O protagonista que encontra seus familiares todos mortos em Quando Explode a Vingança, a batalha na ponte de Sad Hill com a Guerra de Secessão como pano de fundo em Três Homens em Conflito, o circuito de destruição letal que se segue à descoberta da escritura em Era uma Vez no Oeste: nesses momentos as tramas parecem se dissolver de vez em uma violência imoderada que passa a dominar o restante dos filmes, que serão conduzidos aos extremos do esquematismo e da rarefação narrativa (algo facilmente verificável nas segundas partes de todos esses filmes, bem como na de Era uma Vez na América). O maniqueísmo, naturalizado nos faroestes americanos, é transformado por esse esquematismo formal em artifício autoconsciente: bandidos sem ética e anti-heróis com alguma ética interagem, lutam, aliam-se e desafiam-se. Seus papéis, seus perfis são constantemente postos à prova, verificados, demonstrados e reforçados em meio a um processo de repetições, inversões e complementaridades.

Quanto às duas trilogias, convém começar pelo primeiro filme da primeira, Por um Punhado de Dólares, que nos introduz ao cenário de predileção de Leone: um povoado completamente degradado. A história, originalmente filmada por Akira Kurosawa em Yojimbo – O Guarda-costas (1961), era centrada em um samurai, ao passo que com Leone é um pistoleiro que chega a uma cidade em busca de trabalho e a encontra sitiada por duas famílias inimigas e concorrentes no tráfico e no contrabando. De imediato percebemos, neste filme e na sua continuação (Por uns Dólares a Mais), que não há propriamente “heróis” no universo leoniano, mas anti-heróis – isto porque, embora não pareça em absoluto à primeira vista, o que Leone ressalta em seus filmes é um paralelismo entre a visão de um mito e a vida no mundo moderno.

Em O Estranho Sem Nome, primeiro faroeste dirigido pelo ator revelado na “trilogia dos dólares”, Clint Eastwood, um desajustado errante, sem nome, sintetiza esse matiz popular do velho oeste: uma cidade subjugada por bandidos de toda espécie é sacudida por um forasteiro que vem liquidar os malfeitores e oferecer um pouco da inspiração e do brio de quem está à margem, com sua coragem intacta. No passado a população da bela cidade de Lago assistiu passiva ao massacre do então xerife à base de chicotadas. A partir disso um tipo de trauma se instalou na comunidade, povoada por homens apequenados e mulheres infelizes. Desde a clássica primeira cena – o homem em seu cavalo que se aproxima lentamente pelo centro da tela – é revelada uma mescla de gêneros, entre o terror e o western, a qual provoca no espectador um sentimento de apreensão. A bela cidade terá sua falsa aparência profanada e, em uma gritante alusão ao inferno, será revelada em sua verdadeira essência no fim da narrativa. Desde que a população se deixou levar pela covardia e pela omissão o mal se instalou e se propagou, e é apenas com a presença inspiradora do forasteiro que as possibilidades se renovam, fazendo com que o ambiente ganhe ares de renascimento. Em Josey Wales – O Fora-da-lei, segundo faroeste de Eastwood, temos ainda o solitário cavaleiro que vem para salvar pessoas em necessidade – índios e mulheres desta vez, o que precisamente hoje chamaríamos de minorias, mas aqui a redenção é reservada para as pessoas comuns, não para o herói. Enquanto uma família migra para outro estado e sofre um assalto, tendo todos os seus homens mortos, Josey Wales (protagonizado pelo próprio Eastwood) se apresenta prontamente para substituir os homens da família, sacrifica o seu próprio percurso, e mais do que isso: dispõe-se a dar sua vida por eles. O único heroísmo possível.

Tuco Benedicto Pacifico Juan María Ramírez, o “Feio” de Três homens em conflito (Il buono, il brutto, il cativo, 1966).

Vemos o que separa as personagens de Eastwood das de Leone. Enquanto nos filmes do primeiro o homem singular inspira outros homens, nos filmes do segundo o homem, visto como uma sucessão de máscaras, é submetido a um sistema teórico de combinações. Ambos lidam diretamente com o mito, mas enquanto Eastwood é uma espécie de realista fabular, Leone é um cineasta puramente abstrato. Em retrospecto, é claro como isso faz com que o paralelismo no seu cinema jogue de forma inesperada com as nossas expectativas. A manobra feita na maioria de seus filmes de subdividi-los como se fossem dois, talvez revele, mais do que qualquer outra coisa, a vontade do realizador de tocar em assuntos políticos sem abrir mão de certa solenidade; sobretudo, sem abrir mão do sonhado western. Tuco Ramirez (Três homens em conflito) na corrida alucinada pelo ouro entre os túmulos do cemitério; o crocito insistente dos corvos que ressoa no inesperado encontro entre Tuco (o “Feio”), “Loirinho” (o “Bom”) e “Olhos de Anjo” (o “Mau”); a mastigação de comida em primeiríssimo plano enquanto representantes da sociedade dita civilizada denigrem um camponês; a pilha de corpos sem vida amontoada no fundo de uma caverna (Quando Explode a Vingança); a viagem lancinante de ópio e o toque excruciante do telefone; a violação da mulher amada (Era uma Vez na América); a pistola apontada para a criança; a gaita, as profundezas dos olhos das personagens vistas em super close-up, e a imensidão profunda da paisagem, o homem e o espaço apreendidos nas mesmas proporções (Era uma Vez no Oeste). Personagens humilhadas pelo mundo, párias, famílias desestruturadas em fuga de um passado desconhecido, verdadeiras personagens do desalento; as ações definindo essas personagens mais do que as suas palavras, uma vez que estão sempre mentindo, enganando, jogando, se precavendo, e sobrevivendo a duras penas.

Esses espécimes desajustados hoje, no cinema, são jogados para debaixo dos tapetes. Seja nas inúmeras máscaras utilizadas e descartadas por Tuco Ramirez (camponês inocente acusado injustamente, soldado confederado e depois soldado da união), seja nas máscaras de personagens sem nomes, em meio à fraternidade dos gângsteres de Nova York (Era uma Vez na América), Leone olha e faz com que olhemos de frente personagens as mais desajustadas. Então como falar de Leone em um tempo em que a arte e o artista passam por um regime de verificação de direitos e deveres, pelo crivo do puritanismo moral e pela devassa do voluntarismo ideológico, mais do que pelo filtro do pensamento? Como fazer ver que a arte asseptizada, feita para ser uma expressão da “boa conduta”, com personagens positivas, escapa à vida nos termos mais elementares?

Quando Explode a Vingança. México. Revolução de Emiliano Zapata e Pancho Villa a favor da reforma agrária – em nome, dizem, dos camponeses. Dois homens de mundos não tão distintos como inicialmente se apresenta: um revolucionário irlandês procurado pela lei e um assaltante mexicano. Para Leone as lutas revolucionárias estão “em toda parte e a todo o momento”, como foi colocado na boca de Juan Miranda, a personagem que ironicamente é teoricamente a mais esclarecida sobre o significado das revoluções. O homem do faroeste – imoral, violento e descomplicado – luta as pequenas batalhas, seja pressionado pelas circunstâncias, por homens mais imorais, seja adquirindo uma consciência que escapa à sua imoralidade, um sentido de urgência, em nome dos mais desfavorecidos. Independente da razão que se apresente, é a praticidade que o move. De uma forma ou de outra o que importa, para Leone, é que esse homem nunca teve a pretensão de salvar o mundo: as lutas afrontam, sem grandes teorias, aquilo ou aqueles que estão palpavelmente agindo como ameaças. “Joe” ajuda a família de mexicanos em Por um Punhado de Dólares, “Monco” ajuda o Coronel Mortimer no duelo final de Por uns Dólares a Mais, “Loirinho” e Tuco escandalizam-se com a estupidez da guerra em Três Homens em Conflito (nenhuma confusão: é claro, para Leone, que a guerra é mais asquerosa, e por isso mesmo mais espetacular, que as ações rocambolescas de bandidos pés-rapados), e toda a trajetória de “Harmonica”, Jill e “Cheyenne” em Era uma Vez no Oeste é aglutinada pelo tecido da grande História, que permanece mítica e imperecível enquanto os homens constroem ferrovias e se exterminam.

Entre as práticas escolhidas ou impostas de sobrevivência e as práticas escolhidas ou impostas de guerrilha, Sergio Leone, cineasta antimilitarista (“nunca vi serem desperdiçados tantos homens”, diz “o Bom” em Três Homens em Conflito) e crítico das iniquidades do progressismo revolucionário (“‘Tem de haver mudanças’. E a gente pobre faz as mudanças, hein? Aí, os que leem livros se sentam em grandes mesas lustrosas e falam, falam, comem e comem, hein? Mas o que acontece com os pobres? Morrem!”, diz o camponês, ladrão de galinhas e revolucionário a contragosto, Juan Miranda em Quando Explode a Vingança), Leone, dizíamos, preparou uma verdadeira cama de retalhos a partir dos tecidos de suas duas trilogias: a cultura que possibilita ou impõe a prática do banditismo (tráfico e contrabando, os quais ainda encontramos na vida moderna, cada vez mais estabelecidos) como condição de subsistência permite a coexistência das falsas lutas (guerras e revoluções que se solapam e obstruem ao invés de potencializarem o progresso). Para isso Leone faz um cinema sujo, o que quer dizer que da grande História ele recopila tanto os ruídos quanto os esplendores, tanto o que se distorceu quanto o que se conservou. É natural que nessas circunstâncias a violência acabe sendo muitas vezes o espetáculo principal, e é em função disso que vemos justamente nos filmes de Leone o homem moderno emergindo em sua plenitude. A prostituta interpretada por Claudia Cardinale em Era uma Vez no Oeste não deixa de ser a mesma pessoa que era antes de ser transplantada em um novo ambiente, e é assim que através dela uma nova cidade (civilização) nascerá. Se Leone subverte os mitos fundadores é porque ele sabe se apropriar do poder das metáforas, as quais devem ser identificadas e, em certa medida, decifradas pelo espectador moderno. Isso não ocorre, porém (ao menos não nos termos propostos por Leone), se o espectador traz consigo atitudes arcaicas, como a de recorrer a filtros culturais para revestir sua visão das coisas, principalmente aquelas que apresentam algum desafio ou incômodo ao colocá-lo frente à sua humanidade, que pode muito bem se revelar uma desumanidade. Os ruídos e os esplendores, a poesia e a abjeção, a teoria e o espetáculo: não é possível, nesta obra, expurgar a infâmia da grande História, retratar o mito somente pela sua faceta mais virtuosa. Se é possível dizer que toda criação nasce de uma autobiografia qualquer, somos então forçados a constatar que Leone (o homem que disse que acreditava em três coisas: no marxismo, no poder redentor do cinema e na dinamite, mas que a partir de determinado momento passou a acreditar apenas na dinamite) retratou fielmente a natureza de sua época, que coincide de ser também a nossa. Não precisamos temer nosso Mr. Hyde ao assistirmos esses filmes repletos de sangue, urina e dinamite. Se há uma lição, ela poderia bem ser esta: lasciate ogni speranza, voi ch’entrate (deixai toda esperança, vós que entrais). A inscrição que Dante lê no limiar do inferno serve de epígrafe à obra de Leone, a bem dizer a toda obra verdadeiramente moderna. É nesse mundo que existem, de fato, apenas dois tipos de pessoas: as que aceitam o aviso e seguem em frente e as que o rejeitam e voltam para as suas zonas de conforto.

Valeska G. Silva

Valeska G. Silva é crítica de cinema e co-edita a Foco - Revista de Cinema