Cinema

FOCO: O efeito naturalista e o naturalismo ao gosto do dia

Janet Gaynor em Sétimo Céu (1927), de Frank Borzage.

por Valeska G. Silva
uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

Algo acontece ao mundo quando olhamos para os rostos graves e monocromáticos ordenados como se fossem as notas de uma harpa em execução.

O Naturalismo no Tempo

Na era medieval os eventos dramáticos tinham a mesma escala de tempo que os próprios acontecimentos os quais representavam. Uma peça teatral que não indicasse o mesmo tempo dos eventos naturais não encontrava respaldo com o público. Foram os dramaturgos clássicos que aprimoraram a técnica de abreviação na escala do tempo.

(No cinema Festim Diabólico [Rope, 1948], de Alfred Hitchcock, demonstra essa vocação da dramaturgia para reproduzir a vida na sua integralidade; porém Hitchcock, filho do classicismo, reproduziu apenas em aparência a escala de tempo da realidade, e isto através de uma série de artifícios pelos quais se obteve a ilusão de um grande plano-sequência que se resume simplesmente ao filme todo.)

Quando, por volta do século XVIII, em meio à intensa crise social da época, abandona-se o verso na dramaturgia com a desculpa de escapar do então mal visto artificialismo, busca-se com isso evitar uma suposta “tendência ao entorpecimento”. Tratava-se de uma busca desenfreada pela verdade. Zola, ideólogo do naturalismo na literatura, zombava da fórmula clássica a ponto de dizer que ela lhe parecia “muito boa, com a condição que se empregue um método científico para estudar a sociedade, como a química estuda os corpos e suas propriedades”. Desde a primeira recusa ao que os clássicos vinham fazendo, de Diderot a Ionesco (ou seja, do drama burguês, passando pelo drama romântico, o drama naturalista, o drama simbolista e o drama contemporâneo), a batalha política-estética se reconfigura na tentativa de solucionar problemas sociais através da arte, sempre com o pretexto de escapar de um suposto artificialismo, alienação ou na busca por um cientificismo, sempre com o objetivo teoricamente nobre de trazer o homem mais próximo de uma “conscientização da realidade”, sempre para o prejuízo das artes dramáticas.

Em se tratando de naturalismo e criação só há duas hipóteses possíveis: conseguir um efeito naturalista ou não conseguir, restringindo-se a tatear esse efeito através de uma técnica aproximativa, que naturaliza apenas a aparência de desenvoltura que um estilo naturalista superficialmente teria como objetivo.

Na verdade, muito do que foi considerado naturalista nas artes dramáticas sempre foi apenas hostil ao naturalismo, e aqui um caso como o do cineasta americano John Cassavetes parece especialmente revelador: o que ocorre em filmes como Noite de Estreia (Opening Night, 1977) e Amantes (Love Streams, 1984) nada tem a ver com um olhar passivo que espera dos atores uma solução mágica que viria pela espontaneidade. Ocorre exatamente o contrário: o preparo, tanto no absurdo (quando fala-se muito porque nada está acontecendo) quanto na farsa ou no melodrama, para se descobrir a palavra que gera a ação ou que impulsiona o tema, é fruto da menos dissimulada das resoluções: o limite – que requer seleção, dosagem e composição.

O artista contemporâneo tem ignorado o que a história da arte e o cinema de ontem revelam. Procurar o efeito naturalista através das recomendações taxativas que vigoram na Escola Naturalismo do Festival de Cinema Contemporâneo e os seus teóricos e críticos militantes, com suas lições sobre afeto, registro documental ou a cena longa que espera pacientemente algo acontecer – não que não possa acontecer, mas pode não acontecer quando se deixa tudo em função do acaso (ora, conseguimos emoção mesmo com vídeo caseiro de gatinhos fofinhos, de bebês recém-nascidos ou uma alma caridosa pega em flagrante por uma câmera de segurança) –, conduz a nada mais que uma arte vulgar. É necessário escapar desses ciclos das tendências direcionadas a enganar os olhos que resultam, na maioria dos casos, em um registro cru que se ampara na sorte da sala de edição.

Os cineastas atuais estão todos, ao que parece, acima do cinema. Esta é uma aberração “novíssima” do cinema contemporâneo. Ora, em princípio e em primeiro lugar: o cinema não existe para reconstruir a realidade, mas para que possamos afrontá-la. “O naturalismo é uma técnica que retoma alguma coisa que lhe preexiste: a sociedade como uma encenação já feita. Trabalhar esse dado, quebrar essa pré-encenação, torná-la visível enquanto tal, é sempre uma empreitada corajosa, difícil, impopular. O realismo é sempre algo a ser conquistado.” Claro que é necessário, antes de se pensar no efeito naturalista, encontrar a própria realidade sem o contato com a matéria-prima esse efeito não resulta. Portanto, não é absolutamente o caso aqui de desprezo aos problemas sociais ou do almejo da arte pela arte, mas de estimar que os filmes devem atingir toda sua potência enquanto filmes. Quem se opõe a tal ideia deveria se questionar sobre um problema atualíssimo: o que fazer com tantos filmes que sobrevivem apenas de poucos “bons momentos”? “Aos vencedores, as batatas”?

“O perigo no cinema é que, ao usar uma câmera, você vê tudo. Tudo está lá, então o que você tem que fazer é tentar enfeitiçar ou criar um sortilégio que faça as coisas que não estão realmente lá emergirem.”
– Orson Welles

Esse feitiço que Welles menciona provém da construção, pela qual o dramaturgo, o cineasta, o artista exerce o seu controle e o seu limite.

Paradoxalmente em relação ao que pretende o cinema naturalista, um naturalismo casual e precoce engendra falsificação e inautenticidade, ressaltando problemáticas de fundo e de forma. O cinema foi feito para se ver o real através do prisma da invenção e não para simplesmente reconstruir o real. Conclusão: há uma tendência ao disforme nos filmes realizados hoje.

Charles Farrell em Sétimo Céu (1927), de Frank Borzage.

Do outro lado da balança, o prejuízo: filmes tão maravilhosos que, após o privilégio de conhecê-los, não escapamos do lamento de não os termos conhecido antes. Filmes como os de Yevgeni Bauer, de Lupu Pick, de Frank Borzage, relegados à própria sorte. E são esses, entre outros grandes expoentes do melodrama, os filmes que alcançaram o tão almejado efeito naturalista, através justamente de um trabalho metódico sobre o artifício.

Borzage e o Controle Estético

Frank Borzage foi um diretor que controlou absolutamente tudo em cena, mesmo o brilho de um olhar ou a importância de um sorriso. Nos seus melhores filmes o alto grau de concentração de informação no plano gera uma força de emoção arrebatadora: uma estrela mais destacada no céu, as águas iluminadas pela luz da lua e um fundo de neve muito branco, nada poderia ser, e não é, mais brilhante que os olhos de Janet Gaynor inundados pela emoção ou mais grandioso que o sorriso bondoso de Charles Farrell.

Seus grandes filmes foram realizados em estúdio, o que explica parcialmente o absoluto controle que exerceu em um ambiente de criação onde tudo pode ser arquitetado e dosado, ou seja, onde existe limite. Vale ressaltar que no universo cinematográfico, talvez mais do que em nenhum outro, limite significa nada mais que liberdade plena. Ora, mesmo no palco do teatro tanto o encenador como o ator trabalham dentro de limites entre o palco e sua plateia; no cinema esses limites são de certa forma mais graves, uma vez que temos a máquina elétrica como ferramenta que diferencia o olho do homem para a vida do olho do cineasta para a sua matéria ficcional. É pela exploração desses limites que se consegue a liberdade total dentro desse universo específico. Os filmes protagonizados pelo casal Janet Gaynor e Charles Farrell (Sétimo Céu, O Anjo das Ruas e Lucky Star) são frutos desse trabalho com os limites e representam a quintessência da arte cinematográfica, da realização fresca que não pode gerar outra coisa que inspiração frente a própria vida.

Em Sétimo Céu, a personagem de Janet Gaynor ao descobrir o que é a felicidade, exclama surpresa: “Engraçado, ela dói!”

No período do cinema mudo a abstração, matéria fundamental da criação artística, havia sido imposta pela “limitação” da ausência de som. Os diretores aproveitaram essa carência para desenvolver essa abstração não como uma falta, mas justamente como potencialidade, como algo que tornava o cinema específico e o orientava a pesquisas e experimentos formais os mais distintos e produtivos.

Frank Borzage, americano, filho de imigrantes (um pedreiro e uma operária de fábrica), tornou-se ator em Hollywood no ano de 1912, e já no ano seguinte dirigiria o seu primeiro filme. Foi contratado pela Fox Film em 1925, na mesma época em que o estúdio também contratou F. W. Murnau (Nosferatu, 1922; Aurora, 1927; Tabu, 1931) e recomendava a todos os seus diretores que estudassem o seu estilo (dentre os futuros influenciados pela obra do renomado diretor alemão estava um ainda jovem John Ford).

No ano de 1929, com Sétimo Céu, Borzage foi o primeiro diretor a ganhar um Oscar na história dessa premiação e se o padrão assim se mantivesse hoje poderíamos falar em um grande prêmio do cinema mundial.

Janet Gaynor e George O’Brien, Aurora (1927), de F. W. Murnau.

Quando a força da poesia pode ser pressentida, não existe sinopse comum e banal.

Esta é a sinopse de Sétimo Céu: “Numa favela parisiense, uma mulher sem lar recebe abrigo de um trabalhador da rede de esgoto com aspirações a se tornar um lavador de ruas. No início o arranjo que os liga é estritamente de negócios, mas logo eles se apaixonam e são arrebatadamente felizes até que ele precisa se juntar à Primeira Guerra Mundial”.

“Para os que irão escalar” – diz o trecho de introdução do filme há uma escada que leva das profundezas, às alturas, do esgoto às estrelas. É a escada da coragem”.

Janet Gaynor e Charles Farrell em Lucky Star (1929), de Frank Borzage.

Não podemos dizer que Borzage enxergou o universo da fabricação cinematográfica pelos mesmos olhos com os quais enxergou o mundo real. Manter uma atenção especial a cada sequência, cena, piscar de olhos, choro ou sorriso através de um brinquedo lúdico como a câmera, que obtém um universo ficcional único, não é “apenas” oferecer os mesmos olhos como o que oferecemos todos os dias frente à vida, mas tornar esse universo ficcional algo autêntico, sem dúvida originário dessa máquina cinematográfica, e irreproduzível em qualquer outro universo dramatúrgico ou na própria realidade.

O Anjo das Ruas, (1928), de Frank Borzage.

E sempre, a cada visão ou revisão, sempre que tivermos a chance de estarmos frente a um desses filmes, mesmo que de forma negligente pela primeira vez, ignorando intelectualmente a presença da retórica acima do nível do ordinário, alguma coisa acontece.

Valeska G. Silva

Valeska G. Silva é crítica de cinema e co-edita a Foco - Revista de Cinema