por Felipe Pimentel
Em setembro do ano passado, após pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Datafolha divulgou que “um terço dos brasileiros responsabiliza mulheres por estupros sofridos” . O resultado da pesquisa despertou primeiro certo temor por parcelas da sociedade chocadas com o resultado e, depois, um longo debate sobre se o uso de roupas “provocativas” legitima a violência sexual, exatamente nesses termos.
Também no ano passado, alguns meses antes, o deputado Jair Bolsonaro, com a empolgação retórica juvenil que lhe é própria, votou pelo impeachment da então presidente Dilma Roussef em homenagem ao Coronel Brilhante Ustra, célebre acusado de envolvimento em práticas de tortura durante o regime militar. Novamente, à reação de choque em parte da sociedade seguiu-se longa discussão sobre o que foi realmente o regime militar e a prática de tortura (até mesmo se houve ou não) nos subterrâneos dos quartéis.
Recentemente, a exposição Queermuseu, no Santander em Porto Alegre, acusada de incitação à pedofilia e à “ideologia de gênero”, encerrada diante de pressões e atos de repúdios diversos por pessoas comuns e alguns grupos da sociedade civil, suscitou o debate não só sobre o que é arte, mas também sobre o que é liberdade de expressão (vejam-se as matérias de Rodrigo Cássio e Rodrigo de Lemos aqui neste Estado da Arte).
Poucos dias depois, uma polêmica decisão de um juiz deferindo “parcialmente” uma ação popular a favor do tratamento e pesquisa de “reorientação sexual” reavivou debate sobre questão antiga, a saber, se homossexualidade é doença, transtorno ou distúrbio, e se podemos tratar homossexuais para possivelmente “reorientá-los”. (Neste Estado da Arte, Tiago Pavinatto e Marcio Miotto escreveram com profundidade e clareza sobre o tema).
Essas situações, todas bem conhecidas nossas, ocorreram somente no último ano e parecem guardar em comum somente o seu caráter de polêmica, mas não: elas trazem em seu interior algo um pouco mais profundo sobre a sociedade brasileira, a saber, uma necessidade de retornar às perguntas primeiras sobre cada tema. Isto é, os resultados da pesquisa sobre “roupas provocativas” e estupro já eram suficientes para demonstrar o estado primitivo da nossa sociedade, mas, não bastasse isso, as pessoas ainda viram necessidade de debater algo ainda mais primitivo, ou seja, se uma mulher merece ou não ser estuprada pelas roupas que veste. A declaração do deputado Bolsonaro, um elogio a alguém acusado de tortura, já era no mínimo um tipo de afronta, mas mesmo assim, a sociedade viu-se premida a discutir novamente se o regime militar foi bom ou ruim, se houve realmente tortura e se os coronéis e generais acusados de “luta” pelo regime devem ser louvados ou acusados. O debate, curiosamente, segue, a despeito da percepção evidente de que os militares não parecem ser as pessoas mais treinadas para exercer a política e que os regimes militares não parecem ser os mais admirados do mundo, tampouco os que estão a administrar os países decentes por aí. O encerramento de uma exposição de arte pelo suposto ataque aos bons costumes precisa retornar até a mais elementar das perguntas da área, a saber, “o que é arte?” como se nos tornássemos todos subitamente Umberto Eco, grandes conhecedores da História da Beleza. Por fim, uma decisão judiciária precisa regressar a uma pergunta que já foi respondida pela comunidade científica internacional, nos dois únicos manuais diagnósticos em saúde mental do mundo, o DSM e o CID, mas que o Brasil acha que precisa refazer.
A reação dos experts em cada situação (ativistas de direitos humanos, curadores de arte, psiquiatras e psicólogos, etc…) é de absoluto cansaço, como quem diz “Ah, não… vamos discutir isso de novo? Isso já foi pisado e repisado…!”. Percebam como em todos esses casos, os profissionais das áreas praticamente não divergiam entre si, restando somente aos não especialistas das áreas o estranhamento, a indignação e a colocação do problema. De onde vem essa atitude?
Ora, já está anunciado no que trago acima. Uma sociedade que julga necessário fazer novamente um debate primitivo como o da “culpa” pelo estupro, reacender a discussão sobre “cura gay” ou questionar a liberdade artística é, em primeiro lugar, uma sociedade arrogante. Em segundo lugar, a arrogância envolve a (e se alimenta de) falta de informação – razão pela qual os profissionais demonstram interesse, mas cansaço diante dos debates que surgem. Quer dizer, esse arranjo vem do desprezo pelo conhecimento, característica marcante no Brasil em várias esferas e que indica um terceiro fator: no Brasil, cada vez menos se ensina algo, estando as funções da escola, do professor e dos intelectuais cada vez mais desprezadas. Respeitassem a educação e o conhecimento, o primeiro passo seria ouvir os profissionais das áreas e aprender algo com eles, e não somente ouvi-los e reagir diretamente de acordo com a adesão pessoal e afetiva diante das opiniões deles. É possível sustentar, individualmente, qualquer posição em relação a todos esses temas, mas deveria ser um pressuposto básico que essa opinião, privada, leiga e fortemente passional, não pode ser tida como cientificamente idêntica ou até mesmo superior àquela de alguém que há anos trabalha e pesquisa um assunto qualquer, por mais controverso que seja. Em suma, é preciso primeiro querer aprender para depois reagir. E, em quarto lugar, deve-se reconhecer que uma sociedade que precisa a cada polêmica retornar às perguntas mais elementares não possui nem história, nem transmissão. É uma sociedade que precisa refundar a si mesma a cada geração.
Todas as transições no Brasil são feitas não como avanços para uma nova ordem, no sentido hegeliano, de quem aprende algo com a anterior, adiciona a seu conhecimento, e então constrói algo melhor e superior; tampouco esses retornos são ressignificações que tornam mais ricos entendimentos anteriores. Pelo contrário, funcionam como terra arrasada, estão antes para uma refundação originária seja lá do que for – do sistema político, social ou cultural. É como se a cada ruptura fosse necessário apagar o passado, passar a régua e começar de novo. Os mais distintos eventos funcionaram assim. A lei da Anistia funcionou assim. Passa-se a régua para tudo e todos, nada aconteceu, vamos adiante. A instalação da ditadura militar foi assim, tomada pelo espírito “esqueça-se tudo e comecemos de novo”. Até a nossa tão querida constituição foi assim, quando jogaram fora a Comissão Afonso Arinos e partiu-se da folha em branco. Não à toa, somos uma sociedade que não suporta a estabilidade de um regime por mais de uma geração, pois cada geração inicia do zero a fundação das suas instituições – reparem na história recente do Brasil e perceberão: alguma das nossas cinco repúblicas durou mais que uma geração sem interrupção? Posso afirmar que nenhuma delas ou teremos que discutir o que é a República, antes?