História

Idade Média e ancestralidade

por Néri de Barros Almeida

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(Afresco no Castelseprio, c. século X)

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Depois das revoluções do século XVIII, o estatuto da história como instrumento para a autonomia crítica, a cidadania e a identidade coletiva se fortalece. Sua associação aos direitos individuais e coletivos tem impacto sobre a forma como sua produção em ambiente acadêmico e sua difusão por meio do sistema escolar se constituem ao longo de todo o século seguinte. A despeito do grau de simpatia que cada um nutre pelo conhecimento histórico é fato que, depois disso, ele passou a atravessar nossa experiência: todos conhecemos uma infinidade de fatos e explicações históricas que são mobilizados na percepção do mundo e de nós mesmos. Esse saber, no entanto, nos apresenta um paradoxo. Se, por um lado, boa parte das pessoas recebe informações históricas por meio do sistema educacional, dos meios de comunicação e mesmo das trocas interpessoais, por outro, a história não tem sido mobilizada para a tomada de decisões coletivas com a frequência e a intensidade que poderíamos esperar. Isso pode ser verificado na vulnerabilidade social às “fake news” e na maneira como, em diversas partes do mundo políticas públicas têm sido substituídas pelas chamadas “pautas de costumes”. A compreensão, à luz do conhecimento histórico, de que essa não é uma boa troca e de que, ademais, ela não resolve as questões essenciais de nossa existência coletiva e pública, deveria ser automática, mas não é isso que acontece. Há uma cisão entre o conhecimento histórico e a prática da cidadania. Aprendemos história, pensamos historicamente, argumentamos por meio da história, mas, por algum motivo, não estamos disponíveis para mobilizá-la, mesmo que nosso discurso se mostre profundamente convicto de que liberdade e cidadania são importantes. Essa é uma forma de apresentar a questão, mas ela pode ser colocada de forma mais profunda.

O pensador indígena Ailton Krenak afirmou recentemente que o Ocidente está doente porque não tem ancestralidade. Para uma cultura que escolheu a história como forma hegemônica de memória social, essa afirmação pode ser perturbadora. Afinal, se a história não desempenha o papel de ancestralidade para o Ocidente, então, muito provavelmente, nada mais é capaz de fazê-lo. O passado como ancestralidade significa a sua presença consequente, ou seja, valorizada em nossas decisões, não como modelo, mas como experiência real, como parte do que somos e vivemos. No entanto, é fácil perceber que o passado não está envolvido em nossa visão de futuro. A despeito do resgate, organização e armazenamento meticuloso de dados feitos pelos especialistas da memória e de sua circulação programada em um sistema de comunicação complexo, como sociedade, vivemos o passado como superação. Desse modo, temos pensado o futuro sempre a partir do presente. E, perigosamente, o fazemos mesmo quando as potências do presente se mostram corroídas. É o que observamos, por exemplo, na maneira como temos reagido à emergência climática. Os cientistas dizem que as soluções baseadas na natureza são as mais rápidas, eficazes e de menor custo, mas a sociedade e seus governantes continuam não querendo mudar nada, por mais simples e lógico que pareça plantar árvores, preservar florestas, transformar a biodiversidade em fonte renovável de riqueza, limpar a água que bebemos, tornar nossa alimentação saudável, produzir uma economia justa e não predatória, mudando a forma como tratamos e ocupamos a terra. A despeito das evidências, algo nos leva a olhar o nosso presente como dádiva e tudo o que lhe é alternativo por meio de uma concepção não ancestral do que passou, como algo, ao mesmo tempo, encerrado e esgotado. Assim, por toda parte continua-se a destruir o remédio e a apostar na doença, esperando que uma miraculosa tecnologia nascida da lógica destrutiva do atual sistema produtivo venha e resolva rapidamente aquilo que a negligência produziu. É preciso admitir que a inatividade genocida dos governantes só funciona porque, do lado da sociedade, o grande “plano” é mantermos nossa “preciosa” vida presente intocada em seu conforto material, comodismo político e intoxicação. Mas, afinal, por que temos desprezo pelo passado e medo de um futuro que seja algo mais — talvez melhor — do que o presente?

À luz desse exemplo, podemos notar que, se por um lado, a história é eficiente como memória comum em sociedades de população densa e situadas em grandes territórios conformados por fronteiras associadas à representação política, por outro lado, ela não se apresenta mais (ou ainda) como ancestralidade. Embora tenhamos sido levados acreditar que não, essa ligação nos faz falta. Nesse caso não é demais insistir no esclarecimento: pensar a capacidade de a história ter um papel de ancestralidade não significa viver no passado ou do passado, atribuir ao passado funções que são próprias do presente, mas afirmar que tais funções precisam ser desempenhadas junto com a perspectiva do passado.

Por mais paradoxal que pareça, colocar a Idade Média na questão nos ajuda a esclarecê-la. Todo medievalista sabe que não é possível refletir sobre a Idade Média sem a Modernidade no horizonte. E isso ocorre não apenas porque costumamos pensar a “construção” da Modernidade a partir de seu antagonismo com a Idade Média ou porque queiramos “salvar” a Idade Média de seu estatuto de Idade das Trevas, atribuindo-lhe relações genéticas com aspectos da nova era de reputação bem mais aprazível. O fazemos porque a Idade Média é uma das mais importantes e consequentes invenções da Modernidade e o afastamento que esta estabelece em relação aos séculos e experiências que lhe são imediatamente anteriores ajuda a caracterizar a recusa da ancestralidade como um fenômeno moderno e o papel ativo que a história desempenha em sua concretização. Colocar em questão a grande ruptura entre Idade Média e Modernidade é importante para que consigamos enxergar um presente constituído por múltiplas temporalidades e experiências cujas possibilidades não se esgotam por decreto. Viver o passado simultaneamente como potência e retorno a nós mesmos enriquece nossas possibilidades de produção do futuro e nos liberta da solidão de um individualismo abusivo e, no final das contas, impotente.

Embora em flagrante continuidade temporal e geográfica com a Modernidade ocidental, a Idade Média foi configurada como a sua antítese superada. A memória da Modernidade foi definida pela narrativa de triunfo sobre um passado obscurantista, atrasado e opressor, como se o obscurantismo, o atraso e a opressão fossem criações ou monopólio da Idade Média. Assim, a Idade Média é um artifício de auto justificação da Modernidade, que se apresenta assim como original, emancipatória e esclarecida. É por isso que, na Contemporaneidade, que nada mais é do que a fase mais recente desta Modernidade, continuamos a agir como se apenas o presente pudesse oferecer algo de construtivo ao futuro, a despeito das evidências mostrarem que as promessas da Modernidade não foram honradas e que a destruição e a exclusão que ela engendra comprometem as condições de sua própria sustentabilidade. Não se pretende com isso esquecer a importância do que entendemos como Modernidade, mas demonstrar que os valores elevados ligados a essa ideia têm como contrapartida o horizonte estreito de acesso  aos direitos que se apresentam como sua contribuição fundamental ao progresso humano. E isso acontece não porque essas benesses não sejam, necessariamente, genuínas e positivas, mas porque os imperativos civilizacionais em questão não são favoráveis à sua hegemonia para todos, sendo sempre produzidos com uma margem de exclusão. Não há dúvida de que, à luz da tradição histórica ocidental, a Modernidade elevou a ideia de liberdade a um novo patamar. Mas uma abordagem honesta dessa herança deveria nos preparar para admitir com mais facilidade que o caminho político efetivamente trilhado até aqui assegurou mais a liberdade econômica de alguns do que os direitos de todos.

Viver a história como ancestralidade exigiria primeiramente o reconhecimento honesto daquilo que existe em nosso passado e em nosso presente o que significa lembrar com maturidade — sem frustrações, mas com responsabilidade — aquilo de que somos feitos e, nos desígnios elevados de nosso passado e presente, buscar as potências para agir em consonância com essa parte construtiva de nossos valores. Os horrores da Idade Média precisam ser alinhados com os horrores da Modernidade, do mesmo modo que suas experiências precisam ser resgatadas, deixando de ser apenas parte de um patrimônio embalsamado. Porque cada “conquista” da Modernidade foi moldada por gestos de devastação, da “conquista da América” no século XVI à “conquista do espaço pelos bilionários” no século XXI. De forma que as benesses da Modernidade sempre podem ser vistas sob a ótica restritiva, simultaneamente exclusiva e excludente.

O discurso da Modernidade é universal e aquilo que faz parte dela na cultura é vivido como patrimônio de todos, embora a maioria esteja, de fato, à margem de seus benefícios genuinos. Assim, se as coisas materiais prosperam tudo prospera, mesmo que as evidências mostrem que a vida, princípio realista das coisas, fenece. Não se trata, portanto, de destruir a Modernidade, mas de incluir em sua identidade os paradoxos que, como sistema cultural, ela soube tão bem expurgar, fazendo-nos crer que tinha resposta para tudo e que suas respostas foram melhores do que quaisquer outras produzidas pela humanidade. Viver a história como ancestralidade significa aceitar aquilo de que somos feitos e com base nisso realizar escolhas. A partir dessa perspectiva geral percebemos que a chamada pauta inclusiva que causa tanto resistência em alguns meios não é nova, mas caminha junto com a exclusão. E se a víamos tão pouco é porque esteve constrangida a expressar-se do lugar que lhe foi dado, o “lado de fora”, não sendo visibilizada pela história. Portanto, ao contrário de perturbadora ou impertinente, a potência inclusiva faz parte de nossa ancestralidade. Pensar a história como ancestralidade nos tira do lugar comum de seguir apenas as correntes do tempo que são hegemônicas ou foram eleitas como tal e pensar também o que consideramos ser contra-hegemônico fora da lógica da irrelevância.

As potências do passado não agem, mas podemos agir informados por elas. Não se trata apenas de pensar a partir de dados do passado, mas de uma mudança de atitude em relação a ele que nos permita pensar junto com o passado e eleger, no presente, as heranças que interessam ao futuro que gostaríamos de apoiar. Reconstruir as fibras intencionalmente desgastadas entre a Idade Média e a Modernidade, pode nos ajudar a conceber nossa presença no tempo de outras maneiras, a perceber dimensões dos acontecimentos tornadas invisíveis e nossas decisões sobre o futuro como gestos menos solitários e definitivos. Conhecemos bem os limites da vida material na Idade Média. A penúria alimentar, a fragilidade face aos eventos extremos da natureza, os limites técnicos da produção dos meios de vida, as debilidades sanitárias. Seus revezes face à fome, à doença, à guerra e ao poder dos grandes é bem documentada por textos escritos bem como pela cultura material. Colocar esse ancestral frágil na perspectiva de nossa herança temporal pode ser importante para a experiência com nossa própria vulnerabilidade na medida em que seus fatos se tornam mais evidentes. O baixo grau de previsibilidade da ordem e as crises frequentes que obrigaram esses ancestrais à enfrentar sua finitude nos ajudam a pensar em nossas limitações.

É bom lembrar que em meio a suas crises, a Idade Média legou à nossa ancestralidade a ideia de bem comum que acrescenta algo extremamente importante ao conceito de coisa pública dos romanos. O bem comum no contexto medieval remete às ideias de igualdade no pecado e de fraternidade entre todos os homens. Essa perspectiva traz para o contexto social ampliado — que supera os laços de parentesco e vizinhança — a prevalência da ajuda mútua que se desloca da sociedade para o poder organizado da realeza e dos senhores. Embora a Idade Média não tenha superado formas de tratamento cruéis no exercício da justiça, ela estabeleceu, sobre um elemento ético comum, a base de uma dimensão nova da vida comunitária. Seus frutos mais decisivos não foram atingidos, mas não podemos deixar de considerar sua importância para o desenvolvimento das ideias de direitos humanos e de democracia. Se avançamos pelos caminhos menos desejáveis do individualismo extremo, da acumulação e da mercantilização da vida, isso não quer dizer que não tenhamos energias culturais para resgatar outras potências na forma de nossas escolhas para participar de um futuro construído sobre as certezas daquilo que sabemos ser bom.

Ao falarmos em fraternidade evidentemente evocamos o lugar da Igreja e da espiritualidade na produção das sociedades medievais, ambas igualmente temidas e odiadas pelo racionalismo moderno que ajudou a realizar a fusão de ambas — embora na Modernidade a Igreja não tenha deixado de se colocar ao lado de estratégias de dominação. Mas a espiritualidade não se restringe à Igreja e aos ritos. Ela é tradução da transcendência, do sentimento de pertencimento a esferas comuns de existência — a familia, a comunidade, o mundo natural, a ancestralidade – que despertam cuidado e reverência. O sucesso da Igreja como instituição de fé, embora se deva a suas forças políticas e bens materiais, à sua abrangência intelectual veiculada por um sistema de comunicação eficiente, seria impossível se não estivéssemos diante de um mundo que reserva um lugar hegemônico à transcendência, à reverência aos laços invisíveis exteriores à pessoa, uma espécie de empatia universal. Podemos dizer que o cristianismo capturou e domesticou essa transcendência e depois a perdeu para uma forma mais eficiente, a ciência. Como resultado, hoje a transcendência faz falta a nossa ética. Ela se tornou uma questão de crer ou não crer o que nos termos modernos significa provar e isso acontece mesmo nos ambientes religiosos. Hoje Deus tem de provar materialmente as coisas, e os milagres não mostram mais corpos que exibem a realidade da transcendência, mas a imanência das contas correntes, da distribuição de renda seletiva, da multiplicação das elites ou pelo menos do dom da classe média. Sem a transcendência, nossos horizontes se tornaram estreitíssimos. Transcendência como “concernimento” e participação num mundo que vai muito além das coisas que criamos e envolve outras vidas e outras formas de existir além do estatuto de mercadoria.

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A lamentação por Giotto, c. 1304-06

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O que a Idade Média pode nos dizer de útil tem diferentes escalas, indo dos acontecimentos pontuais a suas grandes contradições, debilidades e incongruências, sejam elas superadas ou ainda latentes em nosso tempo como entrave ou possiblidade. Um dos aprendizados gerais que gostaria de destacar é o próprio fato de que a Idade Média encarou de frente as limitações das comunidades humanas. Embora a antropologia colocasse o homem diante de uma missão civilizatória divina, o cotidiano era vivido na consciência da vulnerabilidade — intrínseca por meio do circuito incessante de pecado e castigo e extrínseca por meio de uma natureza parceira e misteriosa. Essa forma de existência — vulnerável, consciente dos limites de suas ações, de impossibilidades — é uma das diferenças mais significativas em relação à Modernidade técnico-científica. Veio desta nossa certeza de que tudo tem uma solução e de que um ser humano heroico, eleito, mais inteligente, pode chegar a ela com ciência e tecnologia. Essa arrogância intelectual é uma das armadilhas de nossa abstração, porque ela estabelece como base de nossa segurança um falso pressuposto. Hoje, certamente um dos impedimentos para a garantia da segurança planetária reside nessa ilusão da cultura ocidental de que somos capazes de tudo. Não somos. Certamente, hoje, encarar as nossas dificuldades pode gerar ansiedade, pânico e uma inelutável vontade de distanciamento ou a apatia. A Idade Média não é certamente nosso objetivo de futuro, mas ela pode nos tranquilizar ao exibir o fato de que nos enganamos e de que outras formas de existir existiram, existem e podem vir a existir.

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(Afresco no Castelseprio, c. século X)

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Néri de Barros Almeida

Néri de Barros Almeida é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e livre-docente pela Universidade Estadual de Campinas. Realizou pesquisas de pós-doutorado nas universidades do Porto (Portugal) e Lyon 2 (França) e no Centre Nationale de la Recherche Scientifique (CNRS/França). Atualmente é professora junto ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). É coordenadora do núcleo UNICAMP do Laboratório de Estudos Medievais (LEME).