Artes

Uma pintura no Brasil e o legado de Rafael

por Luciano Migliaccio

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Alguns anos atrás, um colecionador brasileiro adquiriu na Itália uma versão inédita de uma composição criada no ateliê de Rafael, conhecida como “Sagrada Família Spínola”, a partir de um painel atribuído a Giulio Romano, conservado no John Paul Getty Museum de Los Angeles. Segundo parecer emitido em 1969 por Mina Gregori, conhecida especialista de pintura italiana do Renascimento e do Barroco, o autor do quadro poderia ser Giovan Francesco Penni, o outro principal herdeiro do grande mestre.

Os pareceres dos estudiosos no que diz respeito à datação do retábulo de Los Angeles não são unânimes. Segundo alguns remontaria a 1520-23, logo após a morte de Rafael, enquanto para outros deveria ser antecipada para 1517, tendo, portanto, nascido dentro do ateliê sob a supervisão do próprio mestre. De fato, entre as suas obras podem ser mencionados diversos antecedentes para a composição.  Um modelo de referência seria, por exemplo, a chamada Madona do Amor Divino hoje no Museo di Capodimonte, em Nápoles, um trabalho colaborativo, no qual a posição do pequeno São João é semelhante àquela da imagem em exame. A pose está ainda mais perto de uma outra obra de Rafael conhecida a partir de uma gravura de Marcantonio Raimondi, chamada de Madonna della Palma (Madona da Palma).

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La Madonna del Divino Amore di Raffaello

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Em outra Sagrada Família de Giulio Romano conservada no Museu do Louvre a atitude e a posição do pequeno São João são retomadas, enquanto a fisionomia do rosto do idoso José se aproxima de um fragmento de um desenho executado provavelmente por Giulio em preparação da Sagrada Família de Francisco I, conservado no Museu Bonnat de Bayonne.

A maioria dos estudiosos aceitou a atribuição da obra de Los Angeles a Giulio Romano, mas alguns também opinaram que possa ser de autoria de Giovanni Francesco Penni, se não resultado da colaboração entre os dois.  Há indícios de uma possível procedência da pintura da região de Nápoles, onde Penni, conforme o relato de Vasari, terminou a sua vida. Em um artigo recente, dois historiadores italianos, Andrea Zezza e Stefano De Mieri, colocaram a hipótese de que o retábulo originalmente se encontrasse na coleção de Matteo di Capua, príncipe de Conca, Grande Almirante do Reino de Nápoles, um dos mais importantes colecionadores da Itália Meridional à época. A obra seria mencionada no inventário de sua coleção localizada no castelo de Vico Equense nos al redores de Sorrento, redigido imediatamente depois de sua morte, em 1607.

O fato da pintura ter procedência da Itália meridional também seria comprovado pela existência de uma cópia com variantes localizada no coroamento do retábulo da igreja do convento dos Capuchos de Sant’Antonio di Padova em Giffoni Valle Piana, na região de Salerno. Esta obra é de  autoria de Wenzel Cobergher, um pintor flamengo ativo em Nápoles entre 1580 e 1597, que mantinha relações documentadas com Matteo di Capua. Outro documento da procedência da obra da Itália meridional também seria a cópia (óleo sobre painel, 120 x 87 cm) assinada e datada de 1527, feita pelo pintor Nicola Filotesio, mais conhecido como Cola dell’Amatrice (1489-1557) para a igreja de Santa Maria del Suffragio em Amatrice, na fronteira entre Abruzzo e Lácio, hoje no Museo Civico daquela cidade.

Um outro desenho agora preservado na coleção do Castelo de Windsor, limitado apenas à figura feminina à direita, foi atribuído à mão de Giovan Francesco Penni, reforçando a hipótese de que a Sagrada Família Spinola foi um produto criado dentro do ateliê de Rafael. Recentemente outro desenho inédito relacionado à pintura apareceu no mercado de arte em Paris. A obra, executada a lápis preto com traços de alvaiate, capta o motivo principal da cena, excluindo a figura da mulher à direita e a paisagem. No entanto, é possível ver alguns elementos arquitetônicos esboçados e a modificação de alguns detalhes, como a leve inclinação da posição de São João Batista ou os braços de São José. O signo gráfico e o traço excluem que se trate de um autógrafo de Rafael, mas é provável que seja de mão de Penni, e não de Giulio Romano. Não sabemos se o desenho, também nascido dentro do círculo imediato de Rafael, era um estudo preparatório para a Sagrada Família Spinola, mas é certo que ele se originou de uma ideia de Rafael, que — como é sabido — concebia modelos e figuras que poderiam ser utilizados e desenvolvidos com facilidade e rapidez por seus colaboradores, organizando assim uma oficina bem planejada e organizada, cuja produção era controlada por ele mesmo em cada estágio do desenvolvimento das obras.

As investigações científicas realizadas na tela em coleção particular brasileira pelo Laboratório de Arqueometria e Ciências Aplicadas ao Patrimônio Cultural da Universidade de São Paulo em agosto de 2019 por Marcia A. Rizzuto e Elisabeth M. Kajiya, consistindo na Fluorescência de Rajos X (FRX) e em análise por Reflectografia de Infravermelho (TIR) não revelaram alterações ou variantes no desenho preparatório subjacente, que foi transferido diretamente de um cartão.  Os pigmentos utilizados, com forte presença de branco de chumbo, vermelho, vermelhão e amarelo de chumbo, são produtos químicos compatíveis com uma datação ao século XVI, de modo que a obra não pode ser considerada uma cópia tardia, mas uma versão próxima no tempo à época da ideação da composição.

Que a pintura hoje no Brasil seja atribuível à mão ou ao círculo de Penni, portanto, é uma hipótese verossímil. O desenho da figura da criada preservado no castelo de Windsor, assim como o desenho recentemente leiloado em Paris, ambos atribuídos pelos especialistas à mão de Penni, sugerem que este pintor teve que elaborar durante algum tempo a composição, talvez em vista da execução de um cartão ou de um modelo definitivo. Comparada com o painel do Museu J. Paul Getty, a versão hoje no Brasil mantém um cenário idêntico, embora algumas pequenas diferenças apareçam, tais como a abolição das auréolas dos santos, para criar uma cena mais doméstica e familiar, e também uma tonalidade mais viva das cores. Todos esses elementos não contrastam com o estilo de Penni. As tintas cambiantes das roupas, particularmente evidentes naquelas da figura feminina carregando os pombos, são, por exemplo, uma característica da técnica do pintor. Na parte inferior da Madonna di Monteluce, hoje na Pinacoteca Vaticana, realizada certamente por Penni em 1525, após a morte de Rafael, a roupa de um dos apóstolos no canto direito apresenta variações tonais do vermelho, ao laranja, ao verde, semelhantes àquelas da figura da criada na pintura aqui examinada.

A iconografia apresenta alguns elementos originais que sugerem a ideação da imagem com o auxílio de assessores dotados de sólida erudição teológica. O tema do encontro entre Jesus e São João Batista crianças, extraído dos evangelhos apócrifos, foi representado inúmeras vezes. No século XVI, a vida do Batista era conhecida pela maioria daqueles que não sabiam latim através do relato do frade dominicano Domenico Cavalca, autor de uma coletânea de vidas dos santos muito difundida à época, também em edições impressas a partir de 1474. Conforme a fantasiosa narração do religioso, o Batista ainda criança, mas já acostumado a vagar durante longos dias e noites no deserto e nos bosques, teria encontrado o pequeno Jesus, seu parente, e a sua família, de retorno do Egito, onde se refugiara para escapar da perseguição de Herodes.

Na pintura em exame, o pequeno Batista nu ajoelha-se sobre uma pele de cabra ou de camelo, vestimenta que denota sua condição de eremita, apesar da pouca idade. No chão, na sua frente, uma taça de terracota ou de madeira escura lascada na borda, símbolo da pobreza do santo e do batismo, e um filactério com a inscrição em latim, legível apenas em parte: “Agnus Dei qui tollit peccata mundi”, ou seja, “o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”, significando a qualidade de profeta e de precursor de João, e anunciando o papel de vítima sacrifical do Redentor. Olhando carinhosamente para o Menino Jesus, João toca uma página do livro aberto que este carrega nas mãos. Os dedos indicador e médio da mão direita do santo, separando-se, parecem quase indicar o texto sobre o qual pousam os olhares melancólicos de Jesus, da Virgem Maria e de São José.  Este participa da cena, atuando como um pai preocupado, ou um profeta contemplativo, tal como ocorre em outras obras de Rafael e do seu círculo.

O grupo descansa no chão na frente de construções antigas em ruínas, que significam a superação do mundo pagão em virtude do nascimento de Jesus. Contudo, neste caso, as edificações desmoronadas não mostram aspecto grandioso nem fragmentos marmóreos característicos da arquitetura triunfal romana. Nas fissuras das paredes desabadas de alvenaria de tijolos desponta uma vegetação rala; o tom melancólico e sombrio de toda a cena sugere a entrada escura de um sepulcro abandonado.

Atrás do grupo de figuras sagradas, é pintada uma moça que avança do lado direito da composição, carregando na mão esquerda uma cesta contendo duas pombas.  Este personagem não se encontra em outras imagens com a mesma temática. Poderia ser interpretada como uma alusão à Purificação da Virgem Maria. Conforme a lei judaica, todas as mulheres que parissem um menino deviam ir ao templo para oferecer a Deus um sacrifício quarenta dias depois do parto. As vítimas prescritas eram um par de pombas para a purificação da mulher e um cordeiro para resgatar a vida do recém-nascido. Caso a família fosse pobre, era suficiente a oferta das aves. Segundo o evangelho de Lucas, foi este o sacrifício oferecido por Maria pela sua própria purificação e pela vida de Jesus.

Na liturgia católica e ortodoxa este evento é celebrado na festa da Purificação de Maria, chamada também de festa das velas, ou, de Nossa Senhora da Candelária. Desta forma, a imagem uniria tal tema mariano, alusivo também à Imaculada Conceição de Maria, àquele do Batismo de Cristo e da redenção da humanidade através do seu sacrifício que supera o holocausto, ou sacrifício de sangue, prescrito no Antigo Testamento e no paganismo.

As duas pombas são as vítimas que, segundo a lei mosaica, servem para resgatar a vida de Jesus, mas, na verdade, é ele próprio, sem pecado, a vítima do sacrifício destinado a redimir a humanidade toda. Ao ser resgatado pelo holocausto, em conformidade da lei, Jesus escolhe submeter-se à lei judaica, de que ele representa a superação.

O mesmo ocorreu justamente quando o Cristo, ainda que sem pecado, pede o batismo a João, o último profeta da tradição judaica. Ao receber o batismo, Jesus identifica-se com a humanidade pecadora, e assume sobre si suas culpas. A iconografia da composição, carregada, como vimos, de reflexões teológicas e históricas, características do humanismo cristão, sugere que a obra foi encomendada por uma figura envolvida nesta cultura, que foi dominante na corte romana dos papas Júlio II e Leão X. Neste caso, a insistência no paralelismo entre o papel de Maria e o de João Batista poderia sugerir que o destinatário da pintura fosse uma mulher e que fosse destinada à devoção privada, vistas suas dimensões. De fato, o tema do encontro de Jesus e do Batista crianças era uma escolha frequente, ao menos na tradição florentina, para pinturas encomendadas em ocasião do nascimento de um filho.

Durante o último período da sua vida, em Nápoles, Penni esteve certamente em contato com um círculo de damas eruditas reunidas na corte de Alfonso D’Avalos, protetor do artista, na ilha de Ischia. Entre elas estava a cunhada dele, Vittoria Colonna, a marquesa de Pescara, uma das maiores literatas da sua época, futura musa de Michelangelo.

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‘Giovan Francesco Penni (atr.), Sagrada Família, São João Batista menino e mulher carregando uma cesta com duas pombas’, óleo sobre tela. Coleção particular.

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Luciano Migliaccio

Luciano Migliaccio, Doutor em Storia Dell’arte Medievale e Moderna pela Universitá degli Studi di Pisa, é professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade Estadual de Campinas.