Religião

Os lobos de Gubbio: Ensaio sobre a alegria e a eternidade

por Caio Morau

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San Francesco e il lupo, Stefano di Giovanni

Ainda que a tenha ouvido há algumas quantas semanas, deitou raízes em minha alma a história que se conta a respeito de São Francisco de Assis e o feroz lobo de Gubbio, rememorada na pregação de conhecido sacerdote brasileiro, dotado de habilidade retórica e bagagem doutrinal capaz de vivificar as melhores tradições de Antônio Vieira na língua portuguesa, cuja perfeita analogia não temo em tomar emprestada, na esperança de aprofundá-la — seria possível? — e difundi-la.

Conta-se que São Francisco, ao chegar em Gubbio, pequena cidade da região da Umbria, na Itália, deparou-se com os moradores atormentados por um lobo que os atacava e colocava em perigo os rebanhos dos pastores. Tomados por um grande medo, os eugubini — nome atribuído aos moradores — resolvem armar-se e partir para a caça do lobo.

Pois Francisco de Assis, que ali residia à época, decide ir ter com o animal. Encontra-o e é recebido em posição de ataque. Chamando-o de fratello lupo — irmão lobo — dá-lhe a ordem de não mais fazer mal a ninguém.

De modo instantâneo, como se pudesse se arrepender de algum ato seu sem gozar da condição humana, o lobo aproxima-se de Francisco e se agacha aos seus pés. Em seguida, acrescenta o frade que era tempo de fazer as pazes com os homens, de modo que se o lobo o tivesse observado, sem causar dano a outrem, teria providenciado que os eugubini o alimentassem até o fim de sua vida.

Aquiescendo ao sacerdote e inclinando a cabeça, o lobo promete que seria pacífico, levanta a pata e a põe nas mãos de São Francisco, como retrata a obra de Federico Brunori.

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Federico Brunori, part. del san Francesco e il lupo, 1612

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Os moradores de Gubbio, estupefatos com o ocorrido, prometeram, unanimemente, prover ao lobo a alimentação de que necessitava, tendo lá vivido por mais dois anos, sustentado com generosidade pelo povo, tornando-se animal de estimação de todos.

Uma curiosa nota a respeito da atuação de São Francisco no episódio, em trato direto com o autor da ameaça e causador do desassossego da população, refere-se à admoestação que lhe dirigiu:

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“Você, irmão lobo, é ladrão e assassino e a esta terra trouxe o medo. Entre você e esta gente eu colocarei a paz, o mal será perdoado, sempre terá comida e nunca mais nesta vida passará fome porque mais do que o lobo, o inferno causa medo.”

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Più del lupo fa l’inferno paura! Mais do que o lobo, o inferno causa medo!

Ao mencionar o temor do inferno, São Francisco quis lembrar ao povo que todas as circunstâncias, em particular o grande medo causado pelo lobo, por mais duras que se apresentem, são nada e menos que nada diante do que é eterno.

A vida de São Francisco de Assis esteve sempre repleta desse sentido sobrenatural. Até que se lhe abrissem as portas da eternidade, soube enxergar em cada um dos lobos de Gubbio de sua vida — as doenças, os conflitos familiares e na Ordem que fundou — uma preciosa oportunidade para alcançar, por antecipação, uma alegria autêntica que desde os inícios do cristianismo tem se colocado como um grande paradoxo, por ser aparentemente incompatível com o sofrimento, a dor, o desprezo.

Dirigindo-se, em pleno inverno, de Perugia, também na região da Umbria, para Santa Maria degli Angeli, contava com a companhia de Frei Leão, que lhe pergunta onde poderia encontrar a perfeita alegria, ao que lhe responde Francisco:

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“Quando chegarmos a Santa Maria degli Angeli, completamente molhados pela chuva e mortos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: ‘Quem são vocês?’. E nós dissermos: ‘Somos dois dos vossos irmãos.’ E ele disser: ‘Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui!’ E não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva, com frio e fome até à noite. Então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele […] escreve que nisso está a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser:Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem.’ E sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó. Se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor, ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria […]”

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O parodoxo alegria-sofrimento é atemporal. O motivo? Em uma perspectiva exclusivamente humana, há uma espécie de consenso de que o que importa, no final das contas, é a saúde ou uma espécie de bem-estar que anestesie as contrariedades. Quando desejam-nos feliz aniversário ou se compadecem de alguma pena, como um revés econômico, não raro dizem-nos que estejamos em paz porque o importante é ter saúde.

E se nos faltam os meios de sobrevivência e a própria saúde? Que nos resta?

Contra spem in spem. Essa fórmula, retirada de um trecho mais extenso, abre outro horizonte paradoxal: esperar contra toda a esperança. Traduz, assim, o que de mais humano há nos homens e nas mulheres de todos os tempos.

Esperar em condições favoráveis é dado a qualquer um fazê-lo. Amar o que tem atrativos, da mesma forma. Assim o definiu brilhantemente G.K. Chesterton:

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“Amar significa amar o que é difícil de ser amado, do contrário não seria virtude alguma; perdoar significa perdoar o imperdoável, do contrário não seria virtude alguma; fé significa crer no inacreditável, do contrário não seria virtude alguma. E esperar significa esperar quando já não há esperança, do contrário não seria virtude alguma.”

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G.K. Chesterton

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Houve e haverá sempre ao longo da história diferentes lobos de Gubbio. Deixam-nos um sabor amargo na boca, apanham-nos quando menos damos por eles. Não há, contudo, alegria possível neste mundo que deles seja apartada.

Pobres lobos de Gubbio.

Importam — pouco — nesta vida.

Depois — e para sempre —, “tudo que não é eterno é eternamente inútil.”

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Caio Morau

Caio Morau é professor de Direito Civil e Empresarial da Universidade Católica de Brasília.É doutorando e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) e assessor jurídico de Senador da República.