Política

Peru e suas encruzilhadas

por Danilo Martuccelli

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Este texto faz parte do livro La Sociedad Desformal: El Perú y sus encrucijadas [“A sociedade ‘desformatada’: Peru e suas encruzilhadas”], publicado pela Plataforma Democrática e disponível para acesso gratuito.

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Desde o fim dos anos 1990 e nas duas décadas seguintes, o Peru vive uma agonizante luta moral contra a corrupção.  A vida coletiva é percebida a partir da moralidade, como o teatro de uma oposição cíclica entre o bem e o mal. Na verdade, uma cruzada entre os bons e os maus. Segundo essa visão, a vida coletiva é um eterno tribunal de justiça. Isso obstrui o enfrentamento dos problemas.

Na raiz da moralização maniqueísta da vida coletiva no Peru se encontram processo econômicos, sociais e políticos que dissolveram antigos marcos de referência da sociedade peruana (classes, sindicatos, partidos, ideologias políticas, etc). Numa sociedade que se foi “desformatando”, a corrupção, ou melhor, o discurso sobre o combate à corrupção se tornou a principal linguagem utilizada para apreender, nomear e diagnosticar as grandes transformações e os males profundos do país.

No Peru, todos reclamam dela. Alguns com sinceridade, vários outros de modo puramente estratégico, muitos com um cinismo explícito. Não há praticamente nenhum partido político ou ator social que não tenha levantado essa bandeira nos últimos anos.

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O nascimento da corrupção como um problema da sociedade

A corrupção se impôs como um dos grandes consensos sobre os males do país. Vários analistas desenvolveram interpretações diferentes: a corrosão da república, o gozo neoliberal, a maldade crioula, a captura do Estado por uma classe dominante selvagem ou por máfias informais. A bandeira-diagnóstico (o combate à corrupção), que une muitos peruanos na aparência, esconde atrás de uma designação comum discordâncias profundas. A primeira questão que surge é entender do que a corrupção é atualmente um sintoma, símbolo ou expressão no Peru.

A corrupção não é um mal peruano, nem as cifras da corrupção (medidas como porcentagem do PIB) são necessária e significativamente mais importantes hoje nesse país do que em outras sociedades. Na história do país, houve outros períodos mais corruptos que o atual — com base em estimativas em proporção ao PIB ou em práticas sociais. Até as consequências da corrupção são objeto de discussão entre especialistas. Vários países não apenas cresceram, mas se desenvolveram economicamente em meio a grandes processos e escândalos de corrupção. Embora a maioria dos estudos mostre os efeitos deletérios da corrupção sobre a economia, outros apontam para suas “virtudes” (de “azeitar” os negócios).

Em resumo: é imperativo reconhecer que atualmente o que está em jogo em relação à corrupção no Peru não se resume à questão econômica. Há mais de vinte anos, o combate à corrupção tornou-se um grande amálgama, concentrando muitas frustrações nacionais. A anticorrupção é um estado de espírito. Um repertório de julgamento que expressa/?canaliza/?elabora frustrações coletivas e individuais plurais e ambivalentes diante de um país em transformação. Na verdade, diante de um país que foi transformado enquanto vivia um conjunto de processos simultâneos, mas distintos, de deformação. A luta contra a corrupção tornou-se progressivamente uma das formas pelas quais a sociedade peruana metabolizou, cheia de ambivalências, a diversidade de anseios, satisfações e frustrações causadas pelas mudanças e pela sociedade “desformatada” no último quarto de século.

Aqui reside uma das maiores características específicas do espírito anticorrupção do Peru: uma estrutura de sentimento que permite apreender, nomear e diagnosticar as grandes transformações e os males profundos do país. O espírito anticorrupção baseia-se na realidade de um país que se transformou enquanto nação e no qual muitas pessoas melhoraram de condição. Mas essa mudança não só não foi igual para todos, como também não foi similar em ambas as medidas. Por mais curioso que possa parecer, essa melhora é mais bem percebida no nível individual que no coletivo.

Essa tensão entre o coletivo e o indivíduo alimenta ambivalências, ou seja, sentimentos simultâneos e opostos em relação às transformações sofridas pelo Peru. As satisfações pessoais mais ou menos frágeis conviveram com a solidez da frustração coletiva. A luta contra a corrupção deu vazão a ambos os sentimentos. Por algum tempo, no entanto, as muito publicizadas curvas de crescimento econômico fizeram com que a indignação dos cidadãos fosse contida pelo que se entendia como um sistema generalizado, embora desigual, de oportunidades.

A desaceleração do crescimento após o fim do boom das commodities e a crise sanitária da Covid-19 mudaram a situação. Ainda mais que foi entre esses dois processos que a grande batalha judicial contra a corrupção realmente se iniciou, em meados da década de 2010. Tudo isso aprofundou a frustração coletiva e deu lugar a manifestações crescentes de frustração individual. As duas frustrações, divergentes há algum tempo, convergiram, dando novo impulso e novo alcance aos sentimentos anticorrupção.

A crise sanitária da Covid-19 não apenas se aprofundou, como também tornou evidente a frustração coletiva. Se deixarmos de lado as controvérsias sobre os números, o Peru é um dos países com mais mortos por cem mil habitantes no mundo. Em nenhum outro país latino-americano a crise sanitária desencadeou um debate tão intenso sobre a nação como no Peru.

O peso inercial das estruturas deu lugar à busca das responsabilidades individuais. A classe política nacional, mais do que a elite econômica ou o capital estrangeiro, foram apontados como os grandes culpados. A acusação: uma ineficiência administrativa comparável apenas ao seu desejo de roubar.

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Sobre a classe política

A classe política. É preciso entender bem o que este termo descreve. Desde o estabelecimento das eleições como um mecanismo para selecionar governantes, no início do século 19, o sistema político tem sido profundamente elitista em toda parte. Também o foi no Peru até a década de 1990. O padrão eleitoral foi escasso por décadas, e os atores políticos pertenciam a uma elite. Entendamos esse termo em seu sentido mais amplo: vinham de famílias aristocratas, eram significativamente mais ricos do que o resto dos peruanos, tinham mais credenciais acadêmicas, mas também eram reconhecidos como elites porque tinham construído sua carreira através de anos de militância política, sindical ou associativa. Cada um, com trajetórias e horizontes muito diferentes, pertencia a uma parte da elite — econômica, partidária, sindical, social, cultural — e, a partir desse grupo, envolveu-se no mundo político.

Progressivamente desde a década de 1990, primeiro de maneira furtiva, depois mais aceleradamente e, por fim, de maneira abrupta, já na década de 2010, esse modo de promoção e seleção de elites sucumbiu. O fenômeno tem sido bem analisado: multiplicação de candidatos independentes, democracia sem partido, antipolítica, crise terminal e total dos partidos políticos.

Muitas das causas desses processos também já foram bem diagnosticadas: o voto nominal; a transformação de partidos em agências de venda de vagas na lista partidária durante o processo eleitoral (partidos se tornaram organizações de leilão de cargos); a multiplicação de agrupamentos políticos não orgânicos submetidos à infidelidade estrutural de seus membros. Resultado: o sistema político não é mais um modo de articulação entre o social (atores, interesses) e sua representação institucional.

No entanto, isso não é tudo. O sistema político peruano também deu origem a outro modo de representação: impôs o sentimento de que qualquer um pode ser deputado, ministro ou presidente no Peru.

“Qualquer um”: mais uma vez devemos tentar esclarecer o que isso significa. Se deixarmos de lado as formas pelas quais indivíduos ou grupos mais ou menos informais decidem (ou não) entrar no sistema político (as modalidades pelas quais compram ou garantem um lugar na lista desse ou daquele partido), o importante é a percepção da sociedade em relação aos representantes eleitos. Por essa medida, o sistema político peruano é altamente representativo, ainda que de forma peculiar:  através da percepção da população de que “qualquer um” pode se tornar um representante eleito. Obviamente, este é um pressuposto da própria democracia, mas, na verdade, de forma geral isso está longe de ser verdade. Uma análise breve da origem social dos representantes eleitos no parlamento de qualquer país do mundo mostraria seu caráter elitista. No Peru isso deixou de ser verdade na percepção coletiva. “Qualquer um”, ou seja, alguém como nós, com um pouco de dinheiro, contatos ou sangue-frio pode ser um congressista. O sistema político peruano não repousa mais, ao contrário de muitos outros países, sobre uma barreira elitista.

Nada mais equivocado nesse contexto do que repetir o refrão do populismo e da luta do povo contra as elites. Isso pode valer para muitos outros regimes políticos no mundo, mas não no Peru. Obviamente, existe uma elite econômica, dividida entre grupos econômicos de naturezas diferentes e que concentra uma parte importante da riqueza nacional. No entanto, não é essa elite que é atacada pelos cidadãos. No Peru, os males são atribuídos ao Estado, mais que ao setor privado, e à classe política mais que à burocracia. Se não há emprego formal suficiente, isso se deve ao mercantilismo do Estado e aos custos trabalhistas, mas nunca às inadequações do setor privado que, no entanto, nas economias capitalistas, é o principal responsável (por meio do lucro) pela geração de empregos. Por mais questionável que possa parecer, os peruanos estão mais insatisfeitos como cidadãos do que como consumidores.

Chegamos a um ponto de inflexão na análise. A convergência da frustração coletiva com o país e da frustração com o destino pessoal está direcionada e excessivamente concentrada na classe política.

A classe política vem deixando de ser uma elite. Pode-se questionar se houve no passado uma classe política estável no país (as “mesmas caras” de sempre), mas essa classe política era globalmente percebida como uma elite. Progressivamente, variaram a composição e a percepção sobre a classe política. Muitos membros dos distintos grupos da elite se afastaram de qualquer participação política partidária ou eleitoral. As elites do passado foram substituídas por candidatos altamente aventureiros e fluidos em suas lealdades, que não são de forma alguma um establishment. A elite peruana está dividida em múltiplos grupos. Salvo honrosas exceções (realmente muito honrosas e respeitáveis), os melhores “não se metem” em política. Os políticos eleitos divorciaram-se dos grupos da elite econômica, social, associativa ou cultural aos quais pertenciam organicamente.

A arrogância tradicional das elites ou sua crescente secessão na era da globalização geram uma inquietação popular bem conhecida e profunda contra suas supostas credenciais de elite (“todos iguais”, “nenhum presta”, “não conhecem a vida real”). No Peru, a rejeição à classe política (“qualquer um”) é expressa em outros termos e questiona sua mediocridade e vulgaridade.

A crítica amarga à corrupção não se dirige aos outros, à elite. As acusações são um bumerangue que os indivíduos dirigem a si mesmos. “Todos” são iguais. Os congressistas e ministros podem mudar, a mediocridade persiste.

As críticas se invertem em relação ao que a retórica populista tradicionalmente tem denunciado, mas, acima de tudo, ampliam seu objeto. As “velhas” elites, as pessoas “de bem”, o “novo” cidadão, todos denunciam em uníssono (com um desprezo dissimulado) a mediocridade da classe política: “não sabem falar”, “não têm conhecimento”, “nem sequer têm diploma”, obviamente “são todos corruptos”. Essas críticas repercutem particularmente entre setores populares que recorrem a esses clichês para criticar a classe política. Mas, ao fazê-lo, mesmo sem querer e de maneira dissimulada, internalizam um certo julgamento elitista sobre sua própria vulgaridade e menosprezam a si mesmos. A corrupção da classe política é ainda mais ilegítima e desperta muito mais a ira do que os pequenos atos de corrupção de “um qualquer”. Na luta contra a corrupção, ainda que de maneira velada, produz-se um ódio peculiar de muitos peruanos a si mesmos. Ou, para ser mais preciso, nessa crítica coletiva à corrupção também se nota uma vingança elitista contra a vulgaridade e a mediocridade. Um mal-estar mais ou menos indescritível se impõe. “Qualquer um” pode ser e é um congressista; mas não é “qualquer um” que deveria ser um congressista.

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O anseio pela desidentificação

O caráter específico do espírito anticorrupção no Peru não é compreendido sem levar em consideração os elementos acima. Essa pronunciada semelhança entre cidadãos e a classe política (sua mediocridade, sua vulgaridade) gera um desejo particular de desidentificação entre eles. Na medida em que a classe política rejeitada é percebida como sendo “como nós”, é imperativo mostrar e repetir que ela “não nos representa”. Além das palavras, dada a semelhança entre si, entre cidadãos e classe política, o mais importante para os primeiros é se livrar desta última.

Essa suposição sobre a classe política ser “como nós” precisa ser bem analisada. A grande maioria dos peruanos não tem dezenas de processos judiciais abertos ou mesmo sentenças na justiça, como é o caso, segundo certas reportagens de jornais, de 68 dos 130 congressistas atuais. Sem presunção de culpa —a inocência deve ser presumida até que haja sentença condenatória —, a opinião pública (mostra pesquisa após pesquisa) é convencida de que o Congresso é composto por atores que recorrem abertamente a atos ilegais tanto na gestão de seus assuntos privados quanto públicos. Corrupção diz respeito a “todos”. E esse julgamento de cunho moral claro permite que a classe política seja mais percebida como “qualquer um” do que “como nós”. De maneira mais ou menos explícita, muitos cidadãos estabelecem, assim, uma fronteira entre suas atividades deformadas que ocorrem num contínuo (muitas vezes altamente sinuoso) entre legalidade, informalidade e até mesmo ilegalidade, no que diz respeito às ações abertamente corruptas da classe política.

No primeiro caso, quando pensam na sinuosidade de suas ações, os cidadãos estão convencidos de sua retidão ética. A motivação pessoal não aponta para a transgressão sistemática das leis; é vivida como um caminho sinuoso necessário em uma sociedade “desformatada”. Muito diferente é que se atribui à classe política, que, aos olhos do público, opera normalmente usando meios informais para incorrer em atos ilegais. A moralidade — a retidão ética das motivações — é o que permite a desidentificação entre ambas. Os membros da classe política são “qualquer um” mais do que “como nós”.

Dada sua natureza não elitista, a classe política no Peru, tanto os congressistas quanto os ministros, são sociologicamente similares a muitos peruanos em seus fenótipos, posição social, escolaridade e atividades. Essa semelhança sociológica é, acima de tudo, visível e palpável em relação aos hábitos, na apresentação de si mesmos, nas formas de falar e fazer, pensar e sentir. Em suma, goste ou não, há semelhanças reais no âmbito dos estilos e sociabilidade entre a sociedade e a classe política. Essa semelhança, dadas as características hierárquicas e discriminatórias da vida social no Peru, não resulta (de maneira alguma) na legitimação da democracia (uma forma de governo do povo), mas aumenta a ansiedade visceral dos cidadãos em se desidentificar com a classe política. Para isso, a arte do riso nacional — de brincadeiras a humilhações, passando pelos memes — é amplamente colocada a prova. Problema: quando se ri e zomba copiosa e profundamente de sua classe política, os cidadãos riem e zombam de si mesmos. A peculiar semelhança sociológica significa que, apesar do anseio popular pela desidentificação, a classe política não seja apenas “qualquer um”, mas também “como nós”.

A desidentificação moral tem que ser mais acentuada que o grau de semelhança sociológica. Talvez a existência de representantes probos permitiria dar consistência ao sentimento popular de ser representado pela classe política. Mas, por ora, não é isso que ocorre. A classe política no Peru (mais no Congresso que nos ministérios) concentra todas as fontes de frustração dos cidadãos: os políticos não são uma elite, são medíocres e vulgares, são responsáveis pelos males do país. Um termo resume tudo isso: são corruptos.

Movida pelo anseio de desidentificação, a luta anticorrupção torna-se uma questão altamente passional. Um desabafo coletivo tão intenso que, no caso da corrupção, persiste uma sensação de que “nada muda”. Os congressistas — não se deve esquecer que o Parlamento é o mais representativo dos poderes em um Estado democrático — tornam-se alvo de todas as críticas.

O espírito anticorrupção é, ao mesmo tempo, a expressão da reserva moral mais saudável do país e uma nova versão do velho e desprezível ódio dos peruanos em relação a si mesmos.

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Lima, 2020 (Foto de Samantha Hare, Flickr)

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Críticas ao espírito anticorrupção

O primeiro objetivo do espírito anticorrupção é atingir a plena desidentificação dos cidadãos com a classe política que — sendo “qualquer um” — é e age “como nós”. De certa forma, o Congresso é um espelho, por pior que seja, do país “desformatado”. Isso é realmente intolerável. O que não pode ser coletivamente aceito ou reconhecido. Os cidadãos, então, se esforçam para construir, com afinco, a fronteira moral com a classe política. É preciso entender bem em toda sua profundidade e significância o que está em jogo neste processo. Dada a semelhança sociológica entre ambos (em formas de fazer, pensar, sentir), a fronteira não pode ser desenhada pela oposição entre uma elite corrupta e um povo saudável. A fronteira será moral. No fim das contas, nem todos os peruanos têm dezenas de processos judiciais em andamento.

No espírito anticorrupção, a moral é estruturada a partir e através do judicial. É a isso que se refere o termo “corrupto” (na classe política) e o vago projeto de “varrê-la”.

O espírito anticorrupção foi dissociado de um objetivo político e tornou-se uma cruzada moral. Às vezes pode-se até dizer que, no caso da corrupção, a moralidade se separou da política. A frase está incompleta. A moralidade tornou-se uma política. Muitos partidos fizeram da proclamada moralidade de seus membros e de sua luta pela institucionalidade uma das grandes clivagens da política peruana.

Ao transformar-se em uma cruzada moral, a luta contra a corrupção passa a buscar heróis e formas de reparação (a limpeza da bandeira peruana). A compreensão e os debates sobre os problemas sociais do país são coloridos de moralidade: todos os cidadãos julgam o bem e o mal, e, acima de tudo, mais cedo ou mais tarde, mais ou menos secretamente, cada cidadão se questiona sobre sua própria cumplicidade moral com a desordem coletiva.

Ninguém é inocente. A realidade social do Peru de hoje e suas múltiplas, ordinárias e generalizadas articulações entre o legal, o informal e o ilegal, ou seja, a experiência da aflição comum da sociedade “desformatada”, transforma silenciosamente o combate à corrupção em uma agonia moral sem fim. O espírito anticorrupção se comprime no moral e, no tribunal da moralidade, ninguém se sente completamente livre de culpa. E, claro, como no subtexto implícito e censurado do relato bíblico, cada um corre para atirar sua pedra.

Ao se tornar uma questão moral, o espírito anticorrupção dificulta involuntariamente o combate institucional à corrupção. Não sabe mais onde ou em quem depositar a confiança, que oscila intermitentemente entre instituições e indivíduos, sem escolher nenhum de forma duradoura. Neste contexto, a única saída possível parece ser a justiça. Nesse estágio já não se trata mais apenas de uma questão de desidentificação. Uma vez que o trabalho de desenhar a fronteira se tornou uma cruzada moral, a vida coletiva se desloca para os tribunais.

Certamente, em meio a evidências, acusações e, por vezes, sentenças judiciais, parte da classe política peruana comete delitos e até atos criminosos. Mas o espírito anticorrupção, transformado em cruzada moral, repousa sobre outras bases e tem muito outros objetivos. Este é o momento de cristalização de um espírito anticorrupção preso entre a difícil desidentificação entre cidadãos e políticos, por um lado, e os objetivos inatingíveis de uma cruzada moral de limpeza, por outro. Os termos mudam. Passa dos debates sobre corrupção sistêmica para a convicção de que o sistema é a corrupção. O problema não se limita mais a uma questão de algumas (ou muitas) pessoas nem da extensão de certos (ou muitos) grupos mafiosos. A corrupção se torna um mal tentacular.

Ao se tornar uma cruzada moral, o espírito anticorrupção atribui ao Judiciário uma função redentora. Só a justiça e os incorruptíveis resgatarão o Peru. No entanto, a associação punitiva entre moralidade e justiça é duplamente problemática e logo implode. Por um lado, o infeliz estado do sistema judiciário do país (orçamento muito baixo, funcionamento corrompido, prazos injustos até a sentença) faz com que os atores do sistema judiciário não só não sejam a solução como se somem ao problema. Por outro lado, ainda mais problemático é o que a sociedade peruana demanda do sistema judiciário: uma redenção nacional. Incapaz de satisfazer institucionalmente essa impossível demanda de salvação, o Judiciário torna-se outro ator sistêmico de abuso, começando pelo recurso indiscriminado à prisão preventiva. O castigo judicial abusivo torna-se um substituto para a justiça. “Bando de filhos da puta”.

No entanto, o espírito anticorrupção, ao se tornar uma cruzada moral redentora do país, pode ter um único destino: o triunfo constante dos “maus”. Sendo uma questão moral salvadora, o combate à corrupção, sem surpresa, se amplia, transforma e distorce politicamente. Mais cedo ou mais tarde, a cruzada moral contra a corrupção retrocede e se vê obrigada a abordar a questão da moralidade dos peruanos (no sentido dos costumes, das formas de agir). O espírito anticorrupção, assim, entroniza um senso de profunda frustração nacional e de angústia coletiva em relação à deformação das últimas décadas.

A cruzada moral do combate à corrupção exige heróis incorruptíveis nos quais acreditar em um país onde, na tradição de suas grandes representações culturais, não há heróis morais vitoriosos. Se formos além dos heróis militares — em cuja narrativa também coexistem muitas vezes a exaltação do valor pessoal e a derrota coletiva —, em termos de heroísmo comum, muitos dos variados personagens da literatura peruana são marcados pelo fracasso.

A cruzada moral contra a corrupção leva seguidas vezes a esse impasse. O destino buscado condena de antemão os resultados que serão obtidos. Sob o olhar moral e a condenação uniforme de um mundo corrupto, a redenção só pode ser obra de indivíduos justos e corretos. A corrupção total do sistema se opõe à moralidade de alguns indivíduos excepcionais e exemplares. Essa postura, mesmo sem querer, leva necessariamente à exaltação de certos indivíduos (líderes políticos, jornalistas, juízes) que, mais cedo ou mais tarde, alguns mais, outros menos, mostram-se moralmente corruptos. A sociedade peruana redescobre que não há pessoas incorruptíveis e se convence de que o mal que a corrói está em suas próprias entranhas.

A fé coletiva busca santos individuais. Esse roteiro é momentaneamente endossado por diversos personagens que, sem exceção, revelam-se intempestivos e, por fim, estéreis e falsos. Tudo bem calculado, não há nada de estranho no fato de que na origem de muitas das identificações morais momentâneas suscitadas pelo combate à corrupção esteja um “belo gesto” (bem “viril”) condensado em um ato individual supra ou anti-institucional. Dadas as postulações do espírito anticorrupção, o resultado é inevitável: para corrigir um sistema corrupto é necessário abusar do sistema. Desde o princípio, a luta sai dos trilhos. O mal está no diagnóstico: “salvar” o país requer os “bagos” de alguém “incorruptível”. A “redenção” das instituições começa por sua violação. O resto, é claro, é apenas a crônica de uma ladainha inevitável de desilusões anunciadas.

Nem sempre se reconhece abertamente, mas essa forma de combater a corrupção é apenas uma nova versão do velho desejo de um caudilho, da mão pesada, do golpe militar redentor. Diante de cada novo ato de fé, a sociedade logo se lembra que a traição é o destino de todos esses redentores: mais cedo ou mais tarde, todos se revelam igualmente corruptos e viciados na partilha do espólio.

Diante do repetido fracasso dos vários redentores e incorruptíveis da vez, o pêndulo da fé-esperança é agitado na direção oposta e volta a ser depositado na reforma institucional refundadora… O movimento entre a fé-esperança e as decepções parece ser o único destino possível. Mas isso resulta do fato de que o espírito anticorrupção não é uma política, mas uma cruzada moral condenada a oscilar entre sua ineficiência institucional e a traição permanente dos supostamente incorruptíveis. A luta anticorrupção naufraga repetidas vezes diante de suas instrumentações recorrentes em meio a decepções cada vez mais avassaladoras. Ao se tornar uma questão moral, e não mais política, inclusive afastando-se dela, a luta contra a corrupção agoniza os peruanos em seu infortúnio. A luta anticorrupção desvia e transforma os conflitos sociais em acusações morais, impedindo sua politização. Além disso, o espírito anticorrupção, ao entrar em colisão (e tensão) com a institucionalidade do país se transforma involuntariamente em outro insumo de sua crise. Enfatiza o dissabor e a desconfiança das instituições existentes, sem propor um programa viável de reengenharia.

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Conclusões

Defendemos que a saída do combate moral contra a corrupção e o enfrentamento dos desafios da sociedade “desformatada” passa por uma cultura do conflito. Ou seja, em um caminho distinto da impunidade ou da punição. Distinto: nem indiferente a esses temas, nem equidistante deles, mas com outro horizonte. Na luta contra as experiências geradas pela sociedade “desformatada” e suas diversas variantes, o essencial é restaurar ou reinventar a cultura do conflito. Isso exige passar da cruzada moral para a dinâmica dos conflitos através de sua politização. O caminho será inevitavelmente abrupto: será como reentrar na atmosfera da Terra depois de gravitar pelo espaço. O confronto será ainda mais difícil, pois significa aceitar a renúncia a certas esperanças.

As pequenas reformas, mais que os pactos sociais refundadores, são o grande caminho da política peruana. Há coisas que podem melhorar muito; muitas outras exigirão muito mais tempo e enfrentarão resistências colossais. Mas é um trabalho diário. Acima de tudo, para fazer pequenas reformas, é essencial deixar o espírito anticorrupção e sua cruzada moral. Ou seja, romper com a compulsão nacional que leva ao lançamento, sempre de forma precipitada, de reformas refundadoras muito grandes, cíclicas e ineficazes.

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Luto em Lima pelos mortos em protestos de 2020 (Foto de Samantha Hare, Flickr)

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Danilo Martuccelli

Danilo Martuccelli é professor de Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Paris-Descartes (Sorbonne) e pesquisador visitante na Universidade Diego Portales no Chile.