Artes

Tarsila: estudos e anotações

por Michele Petry

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Embora a coleção de 200 obras apresentada na exposição “Tarsila: estudos e anotações”, com a curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, seja representativa da produção de desenhos de Tarsila do Amaral (1886-1973) no período de 1919 a 1940, ela não diz respeito a sua totalidade. No decorrer da sua trajetória, a artista produziu pelo menos 1313 desenhos, conforme aponta o seu Catálogo Raisonné (2008), tendo elaborado obras dessa tipologia em todas as décadas seguintes. No início dos anos de 1970, antes do seu falecimento, talvez numa tentativa de eternizar os seus desenhos, a artista autorizou a sua reprodução em gravuras, entre as quais podemos destacar aquelas realizadas por Roberto Grassmann com o acompanhamento de Marcelo Grassmann, para o álbum Tarsila: gravuras (1971) publicado pela Galeria Collectio. O seu proprietário, José Paulo Domingues, foi também, como aponta Aracy Amaral no texto para o catálogo da exposição, o responsável pela venda desse conjunto de desenhos ao empresário Otávio Oscar Fakhoury. A partir da procedência dessas obras podemos localizar na década de 1970 dois importantes movimentos para a circulação da obra gráfica de Tarsila do Amaral no país: a ampla tiragem de gravuras por meio do referido álbum para comércio e doação a museus, dispersa hoje em 42 instituições brasileiras após a doação do Banco Central do Brasil no final da década de 1990, bem como a venda do conjunto que está à mostra. Tais movimentos situam a Galeria Collectio num ponto de inflexão da obra gráfica de Tarsila do Amaral e, igualmente, na atualidade, as galerias responsáveis pela venda desses desenhos, tendo em vista que tal movimento permitiu a aquisição do conjunto e a sua incorporação a um museu, para ações de pesquisa, conservação e divulgação. No mesmo sentido, essa exposição significa outro olhar para a produção de Tarsila do Amaral, na medida em que visa reuni-la, preservá-la e torna-la acessível ao público, contribuindo para evitar a dispersão, o deterioramento e a invisibilidade das obras. Em 1969, quando ocorrera a exposição retrospectiva de Tarsila do Amaral no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), com a curadoria de Aracy Amaral, e esses desenhos foram expostos, uma matéria no Segundo Caderno do Correio da Manhã, datado de 06 de abril de 1969, assinada por Jayme Mauricio, dizia o seguinte: “Finalmente, depois de 40 anos, as gerações mais jovens — na verdade tôdas as gerações que não viram as exposições de 1929 e 1933 feitas pela pintora no Rio — vão ter a oportunidade de ver e constatar a importância da legendária Tarsila no modernismo brasileiro”. A exposição “Tarsila: estudos e anotações” também foi aberta com a ressalva do colecionador Marcos Amaro: “Depois de 50 anos longe do público, agora todos esses desenhos podem ser conferidos em exposição no FAMA Museu.”. Esses comentários mostram que tais obram restaram, pelo menos, 87 anos sem a visibilidade do público. O impacto dessa ausência no circuito expositivo coloca o problema do olhar para a obra de Tarsila do Amaral, particularmente, no que se refere aos desenhos, o que se traduz nos poucos estudos sobre eles e, consequentemente, no lugar que eles ocupam na crítica de arte da obra da artista. A coleção de desenhos apresentada na FAMA também traz um elemento importante à discussão sobre a relação entre os desenhos e a historiografia da arte sobre eles. Uma análise a esse respeito indica que os mesmos estão contemplados nos estudos acadêmicos sobre os desenhos de Tarsila do Amaral, a exemplo do trabalho de Marta Rossetti Batista (1987), quando a mesma aborda as composições cubistas (Figura 1) que podem ser vistas no recorte do ano de 1923 na exposição; de Nádia Gotlib (1997), quando a autora se refere à relação entre os desenhos e as ilustrações para poemas, como os de Pau Brasil (Figura 2), e de Angela Brandão (1999), sobre os desenhos da Viagem a Minas, ambos localizados no ano de 1924; de Lygia Eluf (2008), que apresenta os desenhos da Viagem ao Oriente, situados no ano de 1926; e da precursora Aracy Amaral (1975; 2003), que realiza importante seleção deles, caso da emblemática A Negra ou do Projeto de Figurino para o “balé brasileiro”, possíveis de serem vistos na periodização do ano de 1923 e de 1925. Esse último, elaborado em série, merece destaque na exposição e no estudo sobre os desenhos de Tarsila do Amaral por ser emblemático quantos aos seus significados. Por um lado, ele permite rever o lugar que o desenho ocupa na trajetória de Tarsila do Amaral a partir de uma das concepções comumente empregadas (a do desenho como ilustração), por outro, o próprio lugar de Tarsila do Amaral no cenário artístico, inclusive internacional. Compreendida como uma artista modernista, influenciada pelos modernos brasileiros e europeus, Tarsila do Amaral tem o reconhecimento do seu caráter inventivo e precursor mesmo diante do mestre Fernand Léger (1881-1955). Brigitte Hedel-Samson, curadora do Musée national Fernand Léger, em 2005, afirmou que “Fernand Léger foi, sem dúvida, influenciado por Tarsila ao fazer os desenhos preparatórios do cenário do balé ‘A Criação do Mundo’”. Datado de 1923, o balé pode ter retornado à artista como inspiração, mais tarde, para o seu próprio projeto. Isso, sem dúvidas, inverte o paradigma da arte moderna brasileira na sua relação com a Europa, particularmente, da arte de Tarsila do Amaral, e nos faz voltar os olhos à produção da artista a partir daquilo que lhe é singular, numa perspectiva decolonial. Na série de figurinos vemos a presença do universo tarsiliano que se manifestou tantas vezes em outras composições. Ali temos, para além de uma relação entre texto e imagem, o texto de Oswald de Andrade e as imagens de Tarsila, o repertório crítico do que a artista via, imaginava, criava. Para compreender tais obras faz-se necessário ir além da peça de Oswald, embora as suas linhas sugestionem alguns caminhos de interpretação. Para compreendê-las é preciso perceber para qual direção Tarsila olhava.. a natureza, as árvores, os animais, as figuras humanas, como bem destacou Regina Teixeira de Barros no catálogo da exposição. Mais especificamente, para o movimento que a natureza viva sugere.. uma dança que personifica a vegetação, que metamorfoseia as plantas em animais e os animais em humanos. O vento nas árvores, nas palmeiras, nos coqueiros, tão seus, os transforma diante do olhar da artista em bichos, “bichos tarsilescos”, como disse Aracy Amaral, a exemplo do Bicho Barrigudo (1925), e em seres humanos, como a Mulher de máscara (1925). Há quase uma encenação, um teatro, um balé ritmado, que podem ser vistos para além das obras, nas imagens do que nos cerca. A obra de Tarsila do Amaral, essa exposta, por exemplo, pode ser retirada do papel como que num movimento inverso do público para a artista. Também sujeito comum, Tarsila via o que vemos, esse conjunto de imagens reais e imaginárias que a habita, nos habita, e faz memória nos desenhos, no registro do olho ou de outros sentidos para o interior. Mais do que estudos, anotações, os desenhos de Tarsila do Amaral são imagens de outras imagens, infinitas, revistas e refeitas pela artista com o domínio da técnica. Necessitam de mais estudos os seus primeiros desenhos, seccionados na exposição — organizada cronologicamente — nos anos de 1919-1920, esboços, e de 1921-1922, nus, retratos, assim como os dos anos de 1929-1940, antropofágicos, e os posteriores. Essa é uma tarefa que a exposição anuncia e que dirime quaisquer dúvidas sobre a sua trajetória ligada à elaboração plástica de desenhos.

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Figura 1 – Estudo de A Negra, 1923. Nanquim sobre papel, 25,5 x 18,4 cm. Fonte: Hugo Curti/Fábrica de Arte Marcos Amaro

Figura 2 – Bicho pernilongo, 1925. Aquarela, crayon e grafite sobre papel, 23,1 x 15,5 cm. Fonte: Hugo Curti/Fábrica de Arte Marcos Amaro

Michele Bete Petry

Michele Bete Petry é historiadora com pós-doutorado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), na Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica.