Economia

Nobel de Economia 2020: Paul Milgrom e Robert Wilson

por Vinicius Carrasco, em parceria com o Terraço Econômico

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(Reprodução: Stanford University)

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Economia é a ciência que estuda o desempenho de instituições em implantar ganhos de troca (amplamente definidos). Poupadores têm recursos que podem ser úteis para que empreendedores invistam, executivos têm habilidades e capacidade de gerir que são úteis às empresas, um fabricante de carro precisa de fornecedores de pneus, um país pode ser competitivo produzindo carros, enquanto outro pode ser competitivo produzindo vinhos.

Em todos esses exemplos, há ganhos de troca a serem realizados. Com o recurso do poupador, o empreendedor terá condições de gerar resultados que permitam simultaneamente o pagamento (com juros) do recurso e a geração de lucro. Em troca de salários e bônus, um executivo pode trabalhar numa empresa e aumentar a riqueza de seus acionistas. Sem pneus, uma montadora não consegue produzir. Os cidadãos do primeiro país certamente quererão tomar vinho e os do segundo quererão se locomover. Economia estuda as formas pelas quais essas transações podem ser viabilizadas.

Neste texto, estudaremos uma forma de ganho de troca específica. O quanto uma economia pode ofertar de bens e serviços depende da forma pela qual insumos são utilizados. Para uma dada quantidade de insumos, a forma pela qual uma economia consegue combiná-los resultará em mais ou menos produção. Quando economistas falam em produtividade, no fundo, eles têm em mente a forma pela qual insumos são combinados num processo produtivo. Tudo o mais constante, um ativo de infraestrutura gerará mais e melhores serviços se alocado ao agente mais apto a operá-lo. Segue dessa constatação que “descobrir” a quem alocar ativos físicos que provejam serviços de infraestrutura é de primeira ordem de importância. A tarefa não parece trivial. Que mecanismo usar? Uma tarefa não menos árdua é a de se descobrir preços pelos direitos de uso desses ativos, para os quais muitas vezes não há mercados organizados.

Nosso objetivo é descrever, da primeira leva de leilões dos anos 90 até o mais recente Leilão de Incentivos realizado neste ano, as formas pelas quais a teoria econômica ajudou na alocação de faixas de espectro nos EUA e, simultaneamente, na obtenção de montantes relevantes de receita para o governo americano.

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A mais importante instituição econômica:

De todas as instituições econômicas, talvez a mais relevante (certamente a mais estudada por economistas) é o mercado. A discussão sobre o papel e o sucesso de mercados em coordenar, através de preços, as decisões de agentes econômicos que atuam de maneira descentralizada e auto-interessada é das mais antigas em Economia. Desde ao menos a menção de Adam Smith à mão invisível do mercado, economistas tentavam entender de maneira formal as propriedades dos resultados induzidos por mercados competitivos (isto é, mercados para os quais nenhum agente individualmente possa afetar preços). Mais precisamente, tentavam responder a duas perguntas: i) sob quais condições haverá preços que induzam igualdade entre oferta e demanda? Ou, no jargão dos economistas, sob quais condições a existência de um equilíbrio pode ser assegurada? e ii) esse equilíbrio gerará alocações eficientes (“socialmente desejáveis”)[1]?

Por incrível que pareça, de Adam Smith até as respostas às perguntas, houve um período de quase dois séculos. Na década de 1950, Kenneth Arrow e Gerard Debreu, de maneira independente e com argumento tão geral quanto simples, provaram que, se houver mercados competitivos para todos os bens relevantes [2], esses mercados gerarão alocações eficientes sob condições bastante razoáveis. Arrow e Debreu, de maneira independente mas em comunicação, e Lionel Mckenzie, de maneira independente dos dois primeiros, provaram a existência de equilíbrio sob certas condições técnicas [3,4,5]. Para além das curiosidades intelectuais dos economistas, qual a relevância prática de se entender as propriedades de versões abstratas e simplificadas dos mercados estudados por Arrow e Debreu? Um exemplo de aplicação prática que afeta nossa vida cotidiana está relacionado ao fato de modelos de equilíbrio geral serem a base do que se estuda em macroeconomia nos dias de hoje; qualquer banco central tem um modelo de equilíbrio geral para fazer suas previsões e guiá-lo nas decisões de política monetária. Mas há mais: na tradição de Arrow e Debreu (e fazendo uso de conhecimento na área de desenho de mecanismos e teoria dos jogos), economistas têm ajudado a desenhar mercados no mundo real; especialmente, em situações para as quais não haja mercado organizados. Um exemplo: não há um mercado centralizado para a venda dos direitos de exploração de blocos de petróleo.

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Ken Arrow, Paul Milgrom e demais revolucionários e o desenho de mercados no mundo real:

Em 1993, o presidente americano Bill Clinton assinou uma lei que autorizava a Federal Communications Commission (FCC) a alocar direitos de uso de espectro eletromagnético (“vias” transmissoras de informação, como os sinais de telefonia celular) por meio de leilões e exigia que o primeiro leilão se desse num prazo de um ano. Curiosamente, antes dessa nova legislação, os direitos de uso de espectro eram alocados por meio de sorteio. Sim, uma loteria decidia quem seria o primeiro a ter direito de uso! O qualificador “primeiro” é importante porque é improvável que um sorteio aloque ativos de espectro (ou, na verdade, quaisquer ativos) aos mais aptos a operá-los, de modo que, se esse mecanismo for usado, haverá um mercado secundário ativo (embora ilíquido, uma vez que se trata de ativo específico).

Mas há alguma justificativa econômica razoável para se usar sorteios para alocar ativos? Em princípio, um argumento à la Escola de Chicago do meio do século XX pode ser dado e está intimamente relacionado à possibilidade de um mercado secundário existir. Um dos mais belos resultados (mas é um resultado?) da Teoria Econômica, o chamado Teorema de Coase, nos diz que “ausentes custos de transação, a barganha entre pequenos grupos de agentes econômicos resultará em uma alocação eficiente desde que direitos de propriedade estejam bem definidos”. Pois bem, o sorteio inicial define de maneira precisa e inequívoca direitos de propriedade. O Teorema de Coase sugere que, de alguma forma, os agentes econômicos barganharão de maneira a garantir que, qualquer que tenha sido o destino inicial dos direitos a uso de espectro, os ativos terminem nas mãos de quem mais os valora. “Direitos de propriedade bem definidos e a liberdade para que agentes barganhem é suficiente para que se obtenha uma alocação eficiente”, respira aliviado o economista da “Velha Chicago”. Ele está certo?

Bem, na verdade, o Teorema de Coase nos diz que isso prevalecerá “ausentes custos de transação”. Ilya Segal, numa brilhante interpretação, diz que o Teorema de Coase é uma forma de se definir, por meio de sua contrapositiva, custos de transação: sempre que a barganha entre grupos não gerar uma alocação eficiente, há um custo de transação. Num dos resultados mais impressionantes da teoria econômica, o prêmio Nobel de Economia Roger Myerson e Mark Satterthwaite provam um Teorema de Impossibilidade: se a barganha entre os grupos se der com alguma assimetria de informação, não haverá nenhum mecanismo que simultaneamente i) induza participação de vendedores e compradores, ii) obtenha eficiência (isto é, que faça com que os ativos sejam alocados aos mais aptos a operá-los com probabilidade um) e iii) não gere déficit (isto é, não necessite de recursos para cobrir a diferença entre o que os compradores pagam e os vendedores recebem). Colocando de maneira diferente, como é indispensável numa transação que compradores e vendedores queiram participar de maneira voluntária e, em geral, espera-se superávit (os governos esperam obter receitas com as vendas de ativos), o Teorema de Myerson e Satterthwaite – ao qual voltaremos em breve – sugere que não há formas de as partes chegarem a uma alocação eficiente num mercado secundário de espectro. Era, portanto, importante tentar aproximar o resultado eficiente de cara. Para isso, uma loteria era um péssimo mecanismo.

A nova lei exigia mudanças. Os objetivos implícitos eram garantir uma alocação eficiente (dar o direito de uso aos que mais o valorassem) e, em segundo lugar, gerar uma receita decente para o governo. A legislação então aprovada por Bill Clinton propunha leilão como o mecanismo. Mas qual leilão?

Pelo resultado de Arrow e Debreu, mercados competitivos induzem alocações eficientes. Em princípio, isso sugere que, em aplicações práticas, deveríamos tentar desenhar mercados — em particular, os de espectro — à imagem e semelhança dos de Arrow e Debreu. Como proceder? Possíveis passos iniciais seriam i) definir quais eram as licenças a serem leiloadas (os bens relevantes, no caso) e criar um mercado para cada um deles; em outras palavras, assim como em Arrow e Debreu um consumidor decide sobre as compras de manteiga e margarina simultaneamente, as licenças deveriam ser leiloadas de maneira simultânea e ii) criar mecanismos para que os agentes se comportassem de maneira competitiva.

Esses passos, no entanto, não eram suficientes. Por duas razões, a Teoria de Equilíbrio Geral de Arrow e Debreu não é uma teoria de formação de preços. Colocado de outra forma, a Teoria de Arrow Debreu é silenciosa a respeito de como se chegar aos preços de equilíbrio dos bens. Era preciso, então, pensar num mecanismo de ajuste de preços que levasse aos preços de equilíbrio. Em segundo lugar, as condições derivadas por Arrow, Debreu e Mackenzie (ADM) para que um equilíbrio existisse não se aplicavam: nos modelos de ADM as escolhas são perfeitamente divisíveis (um consumidor pode decidir comprar um setenta e cinco avos de um bem), enquanto as licenças eram indivisíveis [6]! Era preciso entender, portanto, se a busca por preços de equilíbrio não estava fadada ao insucesso. Era preciso avançar em relação ao já monumental avanço que a contribuição de Arrow trouxe.

Curiosamente, um artigo teórico em Matching de Alexander Kelso e Vincent Crawford, “Job Matching, Coalition Formation and Gross Substitutes”, publicado na Econometrica em 1982, tinha a resposta para os dois pontos. O artigo, cujas duas primeira palavras são os nomes de Arrow e Debreu, estuda como empresas e trabalhadores são pareados num modelo em que salários vão se ajustando para equilibrar a demanda por trabalhadores das firmas com a oferta de trabalho destes. A suposição fundamental do artigo é que empresas consideram trabalhadores como sendo “substitutos”. Para entender o que isso quer dizer, suponha que haja dois trabalhadores X e Y. Os trabalhadores X e Y são percebidos como substitutos para uma empresa se a seguinte condição vigora: se a empresa quer recrutar X quando seu salário é  e o de Y é , a empresa continuará querendo recrutar X se seu salário se mantiver em  e o de Y aumentar para um valor . Basicamente, o fato de Y ter se tornado mais caro para a empresa não reduz a “vontade” da empresa de recrutar X. Embora pareça razoável, a hipótese nem sempre vigora. Pense no caso em que X e Y precisam trabalhar juntos para produzir algo. Nesse caso, X e Y são complementares, ao invés de substitutos…

O processo de ajuste de salário que Kelso e Crawford consideram é feito por uma espécie de leiloeiro que aumenta salários de trabalhadores que sejam disputados por mais de uma firma. A hipótese de substitutabilidade faz com que, em resposta, a aumentos de salários de um dado trabalhador, as empresas passem a demonstrar interesses por outros para os quais salários não aumentaram. Em outras palavras, se há excesso de demanda pelo trabalhador X e excesso de oferta de trabalho do trabalhador Y, o salário de X aumentará e isso fará com que as empresas passem a ter interesse em Y. Em outras palavras, os mercados tenderão a se equilibrar. De fato, supondo que as empresas e trabalhadores tomam o processo de ajuste como dado (não afetem preço), Kelso e Crawford mostram que o processo de ajuste leva a uma situação na qual oferta é igual à demanda: o processo converge para um equilíbrio competitivo [7].

Para o primeiro conjunto de licenças, parecia razoável supor que interessados a tratavam como substitutas. Um processo de ajuste de preços como o de Kelso e Crawford parecia ser o mecanismo a ser adotado para os mercados induzidos pela definição de licença: de fato, o leilão deveria se dar para todas as licenças simultaneamente em estágios (rounds) nos quais os preços iam subindo para licenças em excesso de demanda. O nome dado ao mecanismo, desenvolvido pelos economistas Paul Milgrom, Robert Wilson e Preston McAfee, foi “Leilão Ascendente Simultâneo”.

Faltava algo fundamental. No modelo de Arrow e Debreu, os agentes se comportam de maneira competitiva (não afetam preços). O desenho do “Leilão Ascendente Simultâneo” deveria fazer com que os agentes se comportassem de maneira mais próxima possível de competitiva (ou seja, que não tivessem incentivos a ser estratégicos). A área de desenho de mecanismos, cujos principais resultados positivos (um deles o já citado Mecanismo de Externalidade Esperada, devido a Arrow e outros economistas) se deram pelo entendimento, derivado do Teorema da Impossibilidade, de que é preciso impor estrutura nas preferências dos indivíduos para que possamos avançar, teve seu papel nesse sentido. Dois aspectos foram introduzidos ao desenho dos leilões simultâneos. Primeiramente, os interessados não davam lances eles mesmos: o aumento nos preços das licenças em excesso de demanda era dado por um incremento exógeno. Por quê? Se os agentes pudessem dar lances, eles poderiam tentar usá-los para se comunicar. Por exemplo, em resposta a um lance mais agressivo feito pela empresa A pela licença de número 16, a empresa B pode retaliar A fazendo um lance agressivo por outra licença de interesse de A (digamos, a licença de número 13) que contenha 16 centavos. A mensagem será: “faço este lance agressivo pela licença 13 em retaliação ao lance que V. fez pela licença 16”. Há inúmeros exemplos práticos nos quais isso de fato ocorreu. É algo sabido por economistas que a possibilidade de comunicação entre competidores arrefece competição. O incremento exógeno, portanto, reduzia as possibilidades de comunicação (e de comportamento estratégico). Em segundo lugar, foi adotada a imposição de uma “regra de atividade”: um participante só poderia qualificado para expressar vontade de ter uma dada licença no estágio n, se o tivesse feito em n-1[8]. A razão de ser da regra é simples: ausente a imposição, os participantes poderiam só expressar interesse em estágios futuros e, com isso, afetar o processo de ajuste de preços, pagando – caso levassem – preços menores. A regra de atividade tinha por objetivo impedir que os agentes manipulassem demanda, ou seja, fazer com que agissem de maneira competitiva.

Este, em suma, é o “Simultaneous Ascending Auction” que foi o desenho utilizado pela FCC.10 O resultado? O que o New York Times chamou “The Greatest Auction Ever”, com receita de alguns bilhões de dólares em 1994, e que impulsionou o uso de leilões em várias aplicações práticas ao redor do mundo — seja na venda de direitos de uso de faixas de espectro, seja na construção de mercados no setor de energia, seja pelo uso de um leilão holandês (em vez do procedimento padrão de bookbuilding) na oferta pública inicial de ações do Google.

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Leilão de Incentivos: sobre o uso de economia e ciência da computação para se desenhar mercados.

Ao longo dos anos, a crescente necessidade de investimento em infraestrutura sem fio para a internet – é difícil imaginar alguém que não esteja virtualmente cem por cento do tempo conectado à grande rede — tem requerido cada vez mais o uso de frequências de espectro. Como tudo na vida, há oferta limitada de frequências de espectro. No entanto, concomitantemente ao aumento da demanda por seu uso para serviços de wifi, há a redução da demanda de usuários por serviços de transmissão de televisão. De fato, shows, séries, filmes, programas jornalísticos têm sido cava vez menos assistidos pela TV e mais pela internet, por meio de telefones e tablets ou mesmo televisão. Desenhar um mercado que realocasse espectro de canais de TV para companhias provedoras de serviços de internet foi a tarefa dada a Paul Milgrom e Ilya Segal, economistas de Stanford.

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Myerson e Satterthwaite, o Teorema de Equivalência de Pagamentos e as dificuldades:

O desafio não era pequeno. Em primeiro lugar, os canais de TV tinham direito de propriedade sobre o espectro usado. Em outras palavras, o status-quo lhes dava o direito de continuar transmitindo como operadoras de TV. A sutileza é que esse direito de propriedade não implicava que, mantido o status-quo, a transmissão se desse na faixa de espectro que correntemente usava. Era possível movê-lo para outra faixa se isso ajudasse nas transações. De qualquer forma, era necessário fazer com que as operadoras de TV participassem voluntariamente das transações. Obviamente, a participação dos operadores de internet também devia ser voluntária. Em segundo lugar, idealmente, sempre que o valor de operar internet numa dada faixa de espectro fosse maior que o valor de se operar TV, a realocação deveria ocorrer. Por fim, e não menos importante, a realocação deveria ocorrer sem a necessidade de se aportar recursos de fora. No jargão dos economistas, o mercado não deveria ser deficitário (e tanto melhor de fosse superavitário, de modo a gerar receita para o governo).

Como já mencionamos, o Teorema de Myerson e Satterthwaithe afirma ser impossível satisfazer os três requisitos (quando não há certeza do melhor uso do ativo em questão – no exemplo, se para TV ou internet). Para entender o Teorema, note-se, em primeiro lugar, que como a participação é voluntária, sempre que não houver transação, nenhuma das partes fará (ou receberá) pagamentos. De fato e como exemplo, se não houver transação e o candidato a comprador for chamado a fazer um pagamento, ele ficará numa situação pior do que se não participasse. Portanto, pagamentos só podem ocorrer caso haja transação; não há como se obter receita por meio, por exemplo, de taxa de entrada ou o que o valha.

Pensemos, então, nos preços que devem prevalecer para que eficiência prevaleça (isto é, transferência de faixa sempre que operador de internet valorar mais seu uso que a rede transmissora de TV). Em princípio, caso haja uma transação, os preços pagos pelos operadores podem ser distintos dos recebidos pelo operador de TV que cede a faixa. Na verdade, para que haja eficiência com certeza, é indispensável que os preços sejam diferentes. A razão é simples. Suponha, por exemplo, que o preço seja o mesmo e tal que os ganhos de troca sejam igualmente repartidos entre comprador e produtor. Nesse caso, o mercado (mecanismo) deve gerar como preço a média do quanto o comprador e vendedor (anunciam o quanto) valoram o ativo. Obviamente, o vendedor terá incentivos a reportar que sobrevaloriza o ativo, enquanto o comprador terá incentivo a reportar que subvaloriza o ativo. Esses incentivos, que não são particulares da suposição de igual divisão dos ganhos de troca, impedirão que a transação ocorra em alguns casos. Quando se força que os preços pago e recebido sejam os mesmos, haverá dois efeitos a se considerar em relação ao alinhamento de comprador e vendedor: por um lado e como sempre, há o interesse comum em fazer com que a transação ocorra sempre que haja ganhos de troca. Por outro, há desalinho com relação à apropriação dos ganhos de troca. Cada parte quererá abocanhar mais desses ganhos (o vendedor puxando o preço para cima, e o comprador fazendo o contrário), o que pode inviabilizar a transação.

Se o mesmo preço para comprador e vendedor não implanta eficiência, quais preços o fazem? De maneira independente William Vickrey, Edward Clarke e Theodore Groves propuseram um mecanismo simples para gerar resultados eficientes. O mecanismo requer que cada parte numa transação receba (ou faça) pagamento igual à sua contribuição para o bem-estar bruto gerado à outra parte. Um exemplo é útil aqui. Considere o caso da venda de um ativo. Caso o vendedor não existisse, não haveria transação e o payoff do comprador seria zero. Sua existência faz com que, em havendo transação, o benefício bruto ao comprador seja sua valoração pelo bem. Portanto, o mecanismo de Vickrey, Clarke e Groves (VCG) impõe que o vendedor receba como pagamento a valoração do comprador pelo ativo. Vejamos agora o caso do comprador. Se não existisse, a transação não ocorreria e o vendedor manteria o ativo em sua posse. Como existe, havendo transação, ele impõe um custo bruto ao vendedor igual ao valor que este atribui ao ativo. Portanto, o comprador deve fazer um pagamento igual à valoração do vendedor pelo ativo.

Duas características são notáveis no VCG. Em primeiro lugar, o fato de os participantes não quererem manipular o mecanismo. Isso porque o preço pago (recebido) pelo comprador não depende de sua valoração. Não há, portanto, como tentar manipular o preço pago (recebido) fingindo, no caso do comprador (vendedor), valorar pouco (muito) o ativo. No linguajar de Teoria dos Jogos, é uma estratégia dominante para os participantes proceder sem tentar manipular a valoração que reportam. Como vimos, esse seria um incentivo que ocorreria caso preços pagos e recebidos fossem os mesmos; o comprador teria incentivo a dizer que não se interessa pelo ativo para reduzir seu preço, enquanto o vendedor tem incentivo a exagerar o valor que atribui ao ativo para aumentar seu preço. O VCG elimina esses incentivos. A segunda característica notável é, repetindonos, que o mecanismo requer que o comprador pague a valoração do vendedor e este receba a valoração do comprador. Ora, sempre que há transação, a valoração do vendedor é menor que a do comprador. Portanto, num VCG, o comprador paga menos do que o vendedor recebe. Em outras palavras, o mecanismo é deficitário e requer aporte de fora!

Como em geral os governos esperam receber pela venda (ou realocação) de ativos, o VCG é de fato inviável. Haveria outros mecanismos capazes de implantar eficiência e que não necessitassem de aporte de fora? A resposta é não e deriva de outro resultado bastante importante de Desenho de Mecanismos, também derivado por Roger Myerson: o Teorema de Equivalência de Pagamentos. Basicamente, no contexto deste artigo, o resultado diz que qualquer mecanismo que implante a alocação eficiente requererá (em média) o mesmo montante líquido de pagamentos entre as partes que o demandado por um VCG. Uma forma simples de entender a razão disso é a seguinte. Para que uma alocação eficiente prevaleça, é necessário um alinhamento entre os interesses individuais e os coletivos. Numa transação em que as valorações sejam informação privativa, isso requer que, na margem, ambas as partes se apropriem de todo o benefício da troca: se os ganhos de troca forem de um real, o vendedor e o comprador se apropriem desse real, o que é claramente impossível, a menos que haja aporte do real extra.

Como satisfazer a tríade “participação voluntária, ausência de déficit e eficiência” é impossível, algo tem que ser deixado de lado. Como as transações devem ser voluntárias e um dos objetivos é sempre obter receita (e não gastar mais), o desenhador está fadado a ter que admitir alguma ineficiência. No caso da venda de um único ativo, isso requer admitir a chance (probabilidade) de não haver transação. Com várias unidades, como no caso da realocação, a ineficiência envolvia admitir que algumas faixas de espectro que tivessem mais valor sendo usadas para internet fossem mantidas por canais de TV. Ou seja, evitar que haja déficit correspondia a reduzir o número de faixas de espectro que seria vendida. O Desenho:

O desenho escolhido envolveu tratar vendedores e compradores de maneira algo separada. Os vendedores ofertavam suas faixas de espectro em um leilão reverso — no qual o governo comprava faixas de espectro utilizada para TV — e os compradores faziam lances para o governo pelo direito de uso dessas faixas em outro. Obviamente, era preciso que esses leilões conversassem de alguma forma: a cada faixa vendida no leilão reverso deveria corresponder uma comprada no outro leilão. Ausentes outras dificuldades, o desenho mais simples – e que foi adotado — envolve um “clock auction” para cada um dos lados do mercado. Na verdade, uma sequência de leilões reversos e de compra tomou lugar. Isso porque a quantidade final a ser realocada devia satisfazer duas condições: igualar oferta e demanda e garantir uma receita-alvo (positiva) para o governo.

O leilão de compra foi um leilão ascendente. Para uma dada quantidade-candidata fixa de faixas ofertada pelo governo, preços iniciais para cada faixa eram baixos e eram aumentados para as faixas com excesso de demanda até que a quantidade demandada se igualasse à oferta. Como os preços não eram “chamados” pelos compradores, era dominante para eles continuar demandando a faixa sempre que o preço fosse menor que sua valoração.

A quantidade-candidata fixa do leilão de compra tinha que ser obtida no leilão reverso. Nele, preços para todas as faixas começavam altos. A preços altos, os incentivos a vender naturalmente são altos. Os preços, então, iam caindo de maneira a, simultaneamente, i) igualar oferta à demanda (dada pela quantidade-candidata) e ii) garantir que uma restrição física que descreveremos em detalhe abaixo fosse satisfeita. Com i) e ii) vigorando, restava verificar se iii) a receita obtida no leilão de compra era suficiente para pagar a aquisição pelo governo das faixas no leilão e reverso e gerar a receita-alvo. Caso não fosse, a quantidade-alvo era reduzida (é preciso lembrar que, pelo Teorema de Myerson e Satterthwaite, a obtenção de receita líquida positiva requeria realocar menos faixas que o “desejável”). O procedimento era iterado até que i), ii) e iii) vigorassem.

As restrições físicas e o leilão reverso: Como já mencionado, as operadoras de TV tinham o direito de continuar a transmitir em alguma faixa, não necessariamente na que correntemente usavam. Embora isso desse alguma flexibilidade ao desenho, ainda havia restrições relevantes. De fato, o direito de continuar a transmitir implicava que, na possível realocação de uma operadora de TV de um canal para outro, isso não gerasse interferências relevantes sobre o sinal da audiência de outras operadoras, de modo a não prejudicar suas transmissões. Dados os números de canais de TV que havia e as possibilidades de realocação desses canais em faixas alocadas para TV após o leilão, o número de possíveis combinações de canais x faixa era enorme. Para ilustrar a ordem de grandeza, Paul Milgrom e Ilya Segal usa o número de átomos no universo: as possíveis combinações canais x faixa eram ordens de magnitude maiores que o número de átomos do universo. Como resultado, as possíveis interferências eram, na prática (isto é computacionalmente), ilimitadas e o problema de eliminar interferências insolúvel de fato. Para reduzir o problema, a FCC permitiu grau máximo de interferência entre faixas, que não prejudicasse de maneira relevante a audiência das diferentes operadoras de TV e, ao mesmo tempo, tornasse factível o cômputo do efeito das realocações de operadoras de TV sobre interferências.

Como o mecanismo funcionava? Preços individuais para cada faixa começavam altos.

Com preços altos, a oferta de faixa é alta e deve exceder a demanda. Uma redução do preço de uma dessas faixas tem dois efeitos: o primeiro é ajudar a equilibrar o mercado, fazendo com que, ao preço menor, o vendedor deixe de ofertar sua faixa. Isso é um benefício do ponto de vista da alocação. Mas pode haver um custo (“sombra”): o vendedor que deixou de ofertar a faixa deve, dado seu direito de propriedade, ser alocado para alguma faixa que permita que ele e outros façam suas transmissões sem interferência relevante. Em cada estágio de redução de preço, o leilão tinha que computar a factibilidade de uma operadora deixar de ser vendedora e passar a exercer seu direito status-quo. Esse cômputo tinha que ser feito em tempo hábil, de forma a não paralisar o leilão, um imenso desafio computacional.

O desenho, então, prescrevia que, sempre que houvesse excesso de oferta, preços caiam para faixas que pudessem ser realocadas sem violar a restrição de interferência. Caso isso não fosse possível, manter o status de vendedora para aquela faixa era indispensável. O prelo ali ficava constante e induzia-se, por meio de redução de seus preços, que outras faixas (aquelas que pudessem ser realocadas sem violar a restrição de interferência) deixassem de ser vendedoras. O problema não era muito distinto daquele com o qual um viajante se depara a fazer sua mala. Fazer o cálculo preciso do quê ou não levar é difícil.

Ao falta espaço, mantém-se o que é indispensável e retira-se o que é, ao menos tempo, relativamente menos relevante e que gerará maior ganho de espaço. Nesse sentido, era útil ajustar os preços individuais iniciais das faixas ao custo-sombra de realocÁ-las. De fato: eles foram multiplicados por um fator “volume”. Faixas para as quais a realocação era mais custosa — por mais verossímil de afetar a restrição de interferência (devido, por exemplo, ao fato de estar em região muito populosa e ter número grande potenciais canais nos quais causasse interferência) quais gera ter audiência muito grande –, os preços eram maiores para induzir sua venda. Isso é o equivalente de darmos, tudo o mais constante, menos prioridade na mala a maiores volumes; procedendo assim, tentarmos incorporar os custos-sombra da restrição de espaço na mala.

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Resultados:

O leilão de incentivos terminou em janeiro de 2017, depois do quarto estágio interativo. Nele, garantiu-se i) igualdade entre oferta e demanda, ii) a satisfação de todas as restrições de interferência, e iii) receita positiva. Faixas foram realocadas de operadoras de TV para operadores de internet sem fio e mais de set bilhões de dólares foram gerados em receita para o Tesouro americano.

O leilão é um exemplo poderoso do uso de Teoria Econômica abstrata, combinada com ciência da computação, para desenhos de mercado no mundo real. Evidencia o papel do economista como engenheiro, como diz Alvin Roth, agraciado com o prêmio Nobel de Economia por suas contribuições em teoria de pareamento e responsável por desenhar mercados que casam médicos e hospitais, advogados candidatos a juízes e tribunais de justiça, alunos e escolas. Seu sucesso é exemplo das inúmeras possibilidades da aplicação de ideias correlatas nos inúmeros leilões porvindouros no país, que busquem aumentar a eficiência de nossa economia e ajudar na dimensão fiscal.

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(Reprodução: Stanford University)

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Notas:

[1] O critério de eficiência utilizado por economistas é o critério de Pareto. Uma alocação é eficiente no sentido de Pareto se não existe uma alocação alternativa que seja factível (i.e., que respeite as restrições físicas da economia) que melhora estritamente uma pessoa sem piorar as outras. Esse critério faz sentido. Independentemente dos pesos que uma sociedade atribua a seus membros, se há uma mudança que melhora uma pessoa sem piorar as outras, ela deveria ser adotada.

[2] Como nos ensinaram Arrow e Gerard Debreu, um bem é descrito não só por seus atributos físicos, mas também pelos estados da natureza e períodos nas quais são consumidos. Um guarda-chuva quando está chovendo é diferente de um guarda-chuva quando faz sol. Consumir hoje é diferente de consumir daqui a um mês. É preciso indexar bens a contingências e períodos nos quais são consumidos. A distinção temporal já existia antes da formulação de Arrow e Debreu e é devida a Sir John Hicks, que dividiu o Prêmio Nobel com Ken Arrow em 1972.

[3] Para uma história da busca pela prova da existência de equilíbrio e de como Lionel Mackenzie foi deixado de lado na descoberta, veja o grande artigo “Lionel W. Mackenzie and the Proof of the Existence of a Competitive Equilibrium”, de Roy Weintraub.

[4] Preferências, conjuntos de escolha e tecnologia devem ser convexos e os problemas dos agentes devem ser “contínuos” (restrições orçamentárias devem ser hemicontínuas superior e inferior e suas utilidades contínuas).

[5] Arrow e Debreu também demonstraram que, sob condições de convexidade, qualquer alocação eficiente pode ser obtida por meio de preços competitivos de equilíbrio, desde que políticas de redistribuição (que não afetem as decisões dos agentes) sejam implantadas. O resultado, chamado de Segundo Teorema do Bem-Estar Social, provê fundamentação teórica para a separação da discussão de políticas redistributivas de políticas de intervenção em mercados. Embora demande condições estritas, o mesmo princípio se aplica de maneira mais ampla (ver, por exemplo, o artigo “Reassessing The Diamond/Mirlees Efficiency Theorem, de Peter Hammond).

[6] Formalmente, indivisibilidades geram não convexidades.

[7] Se os bens leiloados não forem percebidos como substitutos por todos os compradores, pode não haver equilíbrio competitivo. Considere o caso de dois compradores, 1 e 2, e dois bens, A e B. O primeiro comprador atribuir valor de a ao bem A, b ao bem B e a+b+c (com c>) ao pacote A e B. Para o comprador 1, os bens são complementares. O segundo comprador atribui valor de a+0.6c ao bem A, b+0.6c ao bem B e a+b ao pacote A e B. Portanto, os bens são substitutos para o comprador 2. É fácil ver que, para este exemplo simples, não há equilíbrio competitivo. De fato, se houvesse equilíbrio (sejam os preços dos bens nesse equilíbrio) geraria uma alocação Pareto ótima (pelo 1º Teorema do Bem-Estar). A única alocação Pareto ótima envolve posse de ambos os bens pelo comprador 1. Para que isso ocorra, 6? e . Então,  que é a disposição a pagar pelo pacote do consumior 1; uma contradição com comportamento ótimo.

[8] Essa é uma descrição imperfeita da regra de atividade. Para uma melhor descrição, veja o artigo “Putting Auction Theory to Work”, de Paul Milgrom, publicado no Journal of Political Economy em 2000.

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Este artigo é uma parte do projeto Coleção Economistas: Nobel, do Terraço Econômico. Agradecemos profundamente ao autor, Vinicius Carrasco, e a Caio Augusto, do Terraço.
 

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Vinicius Carrasco

Vinicius Carrasco é da StoneCo e do Departamento de Economia da PUC-Rio.